domingo, 16 de fevereiro de 2020

Crítica | Partida Fria (The Coldest Game)

Intriga Internacional

Poucos fatos históricos abrem tanto espaço para a interpretação quanto a Crise dos Mísseis entre EUA e URSS no ano de 1962. Um marco na Guerra Fria entre as duas potências, o pseudo conflito causou pavor e um frisson no mundo. Um passo em falso e a Terceira Guerra Mundial poderia ter eclodido. No melhor estilo “quando um não quer, dois não brigam”, porém, as manobras militares não se concretizaram. O anúncio do bloqueio a ilha de Cuba foi recebido com alívio por todos, inclusive pelos países envolvidos. O que teria motivado isso, no entanto, é a grande questão. Muito se fala sobre o tema, sobre as possibilidades, mas o recuo repentino ainda levanta discussão. No cinema, por sinal, a Crise dos Mísseis serviu de pano de fundo até para filme de super-herói, o excelente (por sinal) X-Men: Primeira Classe (2011). Produção original Netflix, Partida Fria segue um caminho bem parecido ao usar o iminente conflito como o estopim para uma das muitas versões ficcionais sobre o que teria acontecido. Levemente inspirado em fatos, o longa escrito e dirigido por Lukasz Kosmicki é astuto ao usar uma partida de xadrez em território soviético como uma espécie de cortina de fumaça para um plano bem mais audacioso. Um thriller de espionagem tenso e envolvente que, apesar dos problemas de tom, compensa ao traduzir com veracidade a vulnerabilidade das peças deste perigoso jogo entre nações.



Influenciado por títulos como Intriga Internacional (1959), Partida Fria convence ao se apropriar dos fatos ao seu bel prazer. No que diz respeito ao aspecto macro, o longa preza pela verossimilhança ao expor os bastidores do iminente embate entre nações com fluidez e propriedade. O senso de urgência está presente nos noticiários, no clima de insegurança, no recorte de imagens de arquivos e (didáticas) soluções narrativas propostas por Lukasz Kosmicki. É possível entender o que representaria o choque entre USA e URSS a partir dos olhos de americanos e soviéticos. Os fatos, porém, param por ai. No momento em que invade o micro, Partida Fria sugere a sua visão do que teria acontecido. Uma missão de espionagem envolvendo um enxadrista bêbado, o atormentado Joshua Mansky (Bill Pullman), dois agentes infiltrados na delegação (Lotte Verbeek e James Bloor) e uma partida contra o campeão russo em solo polonês. A partir deste plot totalmente ficcional, Kosmicki é sagaz ao construir a atmosfera de perigo em torno de um herói improvável. A fragilidade física de Mansky ajuda a reforçar a sua tênue posição dentro desta incursão em território inimigo. Se por um lado o protagonista se revela um tipo bem mais superficial do que o esperado, por outro o roteiro compensa ao tornar a sua escalada de tensão surpreendentemente natural. E imprevisível, outro trunfo da película. Kosmicki acerta ao nunca pecar pelo exagero neste aspecto. Tal qual num jogo de xadrez, um movimento errado pode desestruturar tudo. Ele não vira um James Bond da noite para o dia. Mansky é um agente das circunstâncias.


Embora se embaralhe ao tentar emular simultaneamente o charme escapista de Ian Fleming e o realismo impiedoso de John Le Carré, Partida Fria contorna esta crise de identidade ao realçar os limites dos seus personagens. E este talvez seja o grande trunfo do filme. Ao longo da trama é fácil se perguntar quantos grandes conflitos foram “evitados” por homens e mulheres de carne e osso. Por mais que o visual dos agentes seja requintado, uma abordagem típica dos clássicos de James Bond, os atos deles são frios e calculados, no melhor estilo O Espião Que Sabia Demais (2011). Todos estão expostos. Todos estão vulneráveis. Os gadgets de espionagem e contraespionagem nos levam para uma época de bastante desconfiança. À medida que Mansky se vê mergulhado numa partida que valia muito mais do que o orgulho do seu país, Lukasz Kosmicki realça a sensação de paranoia e constante vigilância. O contexto, aliás, é bem trabalhado pelo roteiro. Ao situar o longa na Polônia, um dos países mais devastados pela Segunda Guerra Mundial, o cineasta amplifica a sensação de volatilidade. Era aquilo que eles queriam evitar. Nem o mais impiedoso dos exércitos se equivaleria a ameaça atômica. É aqui, por outro lado, que Partida Fria esbarra no exagero. Para justificar o estado de constante embriaguez de Mansky, o longa o superestima ao colocá-lo no centro de algo muito maior. O problema, na verdade, não está nem na opção em si, mas no parco desenvolvimento deste arco dramático. As feridas da Segunda Guerra do protagonista poderiam ser bem mais plausíveis. Menos mal que, ao contrário das expectativas, o thriller em nenhum momento se rende aos clichês redentórios. O que torna este excesso menos danoso.


Num todo, porém, estamos diante de um protagonista bem mais oco do que o filme precisava para ir além. Partida Fria reduz o tormento de John Manski ao seu segredo. Na ânsia de protegê-lo, o longa peca ao não se aprofundar nos sentimentos deste homem quebrado pelo seu passado. Ao sugerir um ‘background’ complexo e até trágico, Jonasz Kosmicki precisava entregar algo mais sólido. Um estudo de personagem mais intenso. O que não acontece aqui. Bill Pullman, por sua vez, compensa parte deste problema com uma performance humana. A sua força nasce da sua fragilidade. O carismático ator nos faz crer na genialidade de Manski, na angústia dele diante do perigo e na sua utilidade dentro deste jogo de xadrez entre nações. O elenco como um todo, aliás, cumpre bem a sua missão. Com um claro valor de produção, a expressiva direção de arte combinada com a fria fotografia em tons cor de vinho de Pawel Edelman elevam o nível do longa, Partida Fria remonta um dos conflitos mais ambíguos da história recente global numa obra intrigante, esperta e a sua maneira alarmista. No fim, a ameaça atômica ainda segue viva, desta vez num mundo em que enxadristas infiltrados dificilmente teriam alguma utilidade.

Nenhum comentário: