Poucos fatos históricos abrem
tanto espaço para a interpretação quanto a Crise dos Mísseis entre EUA e URSS
no ano de 1962. Um marco na Guerra Fria entre as duas potências, o pseudo
conflito causou pavor e um frisson no mundo. Um passo em falso e a Terceira
Guerra Mundial poderia ter eclodido. No melhor estilo “quando um não quer, dois
não brigam”, porém, as manobras militares não se concretizaram. O anúncio do
bloqueio a ilha de Cuba foi recebido com alívio por todos, inclusive pelos
países envolvidos. O que teria motivado isso, no entanto, é a grande questão.
Muito se fala sobre o tema, sobre as possibilidades, mas o recuo repentino
ainda levanta discussão. No cinema, por sinal, a Crise dos Mísseis serviu de
pano de fundo até para filme de super-herói, o excelente (por sinal) X-Men:
Primeira Classe (2011). Produção original Netflix, Partida Fria segue um caminho bem parecido ao usar o iminente conflito
como o estopim para uma das muitas versões ficcionais sobre o que teria
acontecido. Levemente inspirado em fatos, o longa escrito e dirigido por Lukasz
Kosmicki é astuto ao usar uma partida de xadrez em território soviético como
uma espécie de cortina de fumaça para um plano bem mais audacioso. Um thriller
de espionagem tenso e envolvente que, apesar dos problemas de tom, compensa ao
traduzir com veracidade a vulnerabilidade das peças deste perigoso jogo entre
nações.
Influenciado por títulos como
Intriga Internacional (1959), Partida Fria convence ao se apropriar dos
fatos ao seu bel prazer. No que diz respeito ao aspecto macro, o longa preza
pela verossimilhança ao expor os bastidores do iminente embate entre nações com
fluidez e propriedade. O senso de urgência está presente nos noticiários, no
clima de insegurança, no recorte de imagens de arquivos e (didáticas) soluções
narrativas propostas por Lukasz Kosmicki. É possível entender o que
representaria o choque entre USA e URSS a partir dos olhos de americanos e
soviéticos. Os fatos, porém, param por ai. No momento em que invade o micro, Partida
Fria sugere a sua visão do que teria acontecido. Uma missão de espionagem
envolvendo um enxadrista bêbado, o atormentado Joshua Mansky (Bill Pullman),
dois agentes infiltrados na delegação (Lotte Verbeek e James Bloor) e uma
partida contra o campeão russo em solo polonês. A partir deste plot totalmente
ficcional, Kosmicki é sagaz ao construir a atmosfera de perigo em torno de um
herói improvável. A fragilidade física de Mansky ajuda a reforçar a sua tênue
posição dentro desta incursão em território inimigo. Se por um lado o
protagonista se revela um tipo bem mais superficial do que o esperado, por
outro o roteiro compensa ao tornar a sua escalada de tensão surpreendentemente
natural. E imprevisível, outro trunfo da película. Kosmicki acerta ao nunca
pecar pelo exagero neste aspecto. Tal qual num jogo de xadrez, um movimento errado pode desestruturar
tudo. Ele não vira um James Bond da noite para o dia. Mansky é um agente das
circunstâncias.
Embora se embaralhe ao tentar emular
simultaneamente o charme escapista de Ian Fleming e o realismo impiedoso de John
Le Carré, Partida Fria contorna esta crise de identidade ao realçar os limites
dos seus personagens. E este talvez seja o grande trunfo do filme. Ao longo da
trama é fácil se perguntar quantos grandes conflitos foram “evitados” por homens
e mulheres de carne e osso. Por mais que o visual dos agentes seja requintado,
uma abordagem típica dos clássicos de James Bond, os atos deles são frios e calculados,
no melhor estilo O Espião Que Sabia Demais (2011). Todos estão expostos. Todos
estão vulneráveis. Os gadgets de espionagem e contraespionagem nos levam para
uma época de bastante desconfiança. À medida que Mansky se vê mergulhado numa
partida que valia muito mais do que o orgulho do seu país, Lukasz Kosmicki realça
a sensação de paranoia e constante vigilância. O contexto, aliás, é bem
trabalhado pelo roteiro. Ao situar o longa na Polônia, um dos países mais
devastados pela Segunda Guerra Mundial, o cineasta amplifica a sensação de
volatilidade. Era aquilo que eles queriam evitar. Nem o mais impiedoso dos exércitos
se equivaleria a ameaça atômica. É aqui, por outro lado, que Partida Fria
esbarra no exagero. Para justificar o estado de constante embriaguez de Mansky,
o longa o superestima ao colocá-lo no centro de algo muito maior. O problema,
na verdade, não está nem na opção em si, mas no parco desenvolvimento deste
arco dramático. As feridas da Segunda Guerra do protagonista poderiam ser bem mais plausíveis. Menos mal que, ao contrário das
expectativas, o thriller em nenhum momento se rende aos clichês redentórios. O
que torna este excesso menos danoso.
Num todo, porém, estamos diante
de um protagonista bem mais oco do que o filme precisava para ir além. Partida Fria reduz o
tormento de John Manski ao seu segredo. Na ânsia de protegê-lo, o longa peca ao
não se aprofundar nos sentimentos deste homem quebrado pelo seu passado. Ao
sugerir um ‘background’ complexo e até trágico, Jonasz Kosmicki precisava
entregar algo mais sólido. Um estudo de personagem mais intenso. O que não
acontece aqui. Bill Pullman, por sua vez, compensa parte deste problema com uma
performance humana. A sua força nasce da sua fragilidade. O carismático ator
nos faz crer na genialidade de Manski, na angústia dele diante do perigo e na
sua utilidade dentro deste jogo de xadrez entre nações. O elenco como um todo,
aliás, cumpre bem a sua missão. Com um claro valor de produção, a expressiva
direção de arte combinada com a fria fotografia em tons cor de vinho de Pawel
Edelman elevam o nível do longa, Partida Fria remonta um dos conflitos mais
ambíguos da história recente global numa obra intrigante, esperta e a sua
maneira alarmista. No fim, a ameaça atômica ainda segue viva, desta vez num
mundo em que enxadristas infiltrados dificilmente teriam alguma utilidade.
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