quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Crítica | Ártico (Arctic)


Na natureza selvagem

Segurar um filme “sozinho” é uma missão muito difícil. Poucos realmente conseguiram. Tom Hanks em Náufrago. Robert Redford em Até o Fim. Sandra Bullock em Gravidade. James Franco em 127 Horas. É um desafio para poucos. Adicione, porém, mais um nome nesta lista. O que Mads Mikkelsen faz em Ártico é digno de nota. Sob a virtuosa batuta do brasileiro Joe Penna, o ator dinamarquês encara a excruciante jornada do seu personagem com peso e intensidade. Ele nos faz crer do primeiro ao último minuto de película que poderia realmente sobreviver na opressão gélida do polo norte. 


À rigor, Ártico tem tudo que um grande filme de sobrevivência precisa ter. É tenso, imponente, angustiante, doloroso... Com uma premissa simples em mãos, Joe Penna cumpre as expectativas ao se concentrar no aspecto sensorial do ‘plot’. A ideia é, claramente, interferir o mínimo possível nas ações do personagem. Ao contrário de muitos títulos do subgênero, Ártico luta contra as facilitações narrativas. O tempo avança de forma natural. O cineasta brasileiro, por sinal, encontra soluções visuais inteligentes para contextualizar o público quanto a situação do protagonista. Com o lápis, por exemplo, o sobrevivente estabelece a transição temporal. A cada novo traço percebemos a urgência dele. A fala surge só nos momentos de desespero, de frustração, de dor. A solidão é sentida. Ao logo do imersivo primeiro ato, Penna é habilidoso ao nos mostrar que estamos diante de um homem preparado para lidar com o cenário ao seu redor. À medida que a trama avança, entretanto, o realizador é igualmente cuidadoso ao “expor” o seu personagem às condições climáticas. A maquiagem é realística. O desgaste fala por si só e se reflete gradativamente na expressão de Mads Mikkelsen. O risco cresce quando ele decide partir rumo a um lugar seguro.


Sem a intenção de se preocupar com respostas fáceis, os motivos, de fato, são o que menos importam aqui, Ártico não titubeia em levar o seu protagonista ao limite e, com isso, nos fazer experimentar dos seus sentimentos. Após solidificar o laço entre o público e o personagem, uma conexão que, diante do cenário proposto, acontece instintivamente, Joe Penna mostra repertório ao criar obstáculos factíveis. Transitando com fluidez entre planos panorâmicos e enquadramentos mais fechados, o realizador, para começo de conversa, é astuto ao escancarar a pequenez do sobrevivente. À medida que se distancia do seu “porto seguro”, um avião abandonado após uma queda, ele se torna menor. O cenário pouco a pouco o engole. A imensidão gélida do ártico é por si só predadora. O frio é sentido. As subidas são cansativas. As quedas ferem. Os imprevistos potencializam o senso de urgência da trama. Após algum tempo lutando apenas pela sua sobrevivência, ele agora tem o que perder. O altruísmo é ao mesmo tempo um incentivo e um fardo. Penna consegue, a partir de sentimentos tão puros, enriquecer a jornada do personagem. Um predicado, volto a frisar, potencializado pela robusta performance de Mads Mikkelsen. Reconhecido pela sua intensidade, o ator de 54 anos extravasa os sentimentos do seu personagem com rara naturalidade. Penna vê o seu trabalho facilitado graças a enorme fisicalidade do protagonista. Ao mesmo tempo em que nos convence da força do sobrevivente, Mikkelsen mostra também a sua vulnerabilidade. Ele teme, ele sofre, ele sente dor. As suas cicatrizes são visíveis. Um passo em falso e será o fim. Ou algo perto disso. O grande trunfo do longa, na verdade, está nesta sensação\certeza de que tudo pode acabar a qualquer momento. Desde o subestimado Evereste (2015) não via um ‘survivor movie’ tão verossímil.


Embora derrape no terreno da condescendência na transição para o clímax, Ártico é uma experiência cinematográfica impactante. Um filme que, de maneira alguma, merecia ser lançado diretamente no streaming em solo brasileiro. Impulsionado pela robusta performance de Mads Mikkelsen, o diretor brasileiro Joe Penna causa um misto de emoções ao enxergar a grandeza humana à medida que escancara a nossa fragilidade.

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