sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Crítica | Joias Brutas (Uncut Gems)

Que tiro foi esse

Com Bom Comportamento (2017), os irmãos Benny e Josh Safdie entraram no radar de Hollywood com total merecimento. Estiloso, enervante e vigoroso, o thriller estrelado por Robert Pattinson ganhou quase que instantaneamente um status cult. Eles passaram a ser vistos, comentados, elogiados. O que, naturalmente, gerou certa expectativa quanto aos próximos projetos da dupla. Muitos outros realizadores já estiveram nesta posição e não conseguiram entregar um segundo ‘hit’. E o patamar estabelecido pelo primeiro era por si só alto. Em Joias Brutas, porém, o que vemos não é uma produção à altura do seu trabalho anterior. É melhor, mais intensa e ainda mais impactante. Embora, no papel, o longa estrelado por Adam Sandler traga consigo um pouco da dinâmica de Bom Comportamento, os Irmãos Safdie elevam o nível da brincadeira numa obra elétrica, implacável e bem mais perigosa. Um estudo sobre a natureza daqueles que fazem da sua vida uma grande aposta ao ponto de não conseguirem distinguir mais a ambição da ganância. 



Incessante do primeiro ao último minuto de projeção, Joias Brutas é o tipo (raro) de filme que não desperdiça um segundo da nossa atenção. Se você achou Bom Comportamento tenso, espere para ver o que os irmãos Ben e Josh Safdie têm a oferecer aqui. Com um olhar humano e imprevisível sobre um mundo materialista, os realizadores são astutos ao investigar esta realidade a partir da óptica do vendedor de joias Howard Ratner (Adam Sandler), um ambicioso homem de meia idade que fez do risco o seu grande negócio. Sua loja atraia celebridades. Sua família tinha uma vida luxuosa. Seus produtos era uma boa fonte de renda. O que muitos não sabiam era que Howard tinha um problema: o vício nos jogos. Prestes a vender um dos seus mais caros artefatos, ele vê uma oportunidade de ouro surgir quando um jogador da NBA (Kevin Garnett) passa a tratá-lo como uma espécie de amuleto. Sem medir as consequências, Howard decide empregar o que não podia (ou tinha) numa aposta de risco, ligando o sinal de alerta de sócios, negociantes e principalmente dos agiotas para quem ele devia. O que era para ser um dinheiro “fácil”, entretanto, se torna um baita problema quando as coisas não saem do esperado. Na mira de todos, Howard se vê obrigado a usar toda a sua lábia na busca de uma solução, sem sequer desconfiar que essa talvez tenha sido talvez a aposta mais perigosa da sua vida.


Embora explore uma dinâmica semelhante a apresentada em Bom Comportamento, mais uma vez temos um homem desesperado numa corrida contra o tempo para recuperar o controle da sua vida, Joias Brutas reoxigena esta estrutura ao invadir um contexto ainda mais urgente. Howard Ratner tem muito a perder. O seu poder de barganha é pequeno. A sua lábia já não surte mais o efeito de outrora. Os cobradores são tantos. O roteiro assinado pelos cineastas, ao lado mais uma vez de Ronald Bronstein, é habilidoso ao mergulhar de corpo e alma no mundo do personagem. Desde os primeiros minutos percebemos que algo está errado. E isso da forma mais frenética possível. Sem freios e\ou filtros, Ben e Josh não titubeiam em investigar a rotina de Howard. O seu perigoso “estilo de vida”. Escondido no carisma e na confiança existe alguém com problemas. Uma bola de neve que, pouco a pouco, é desvendada pelo argumento. Um passo em falso leva a outro passo em falso. Ao contrário de títulos com ‘plots’ semelhantes, como o excelente Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, entretanto, a comédia de erros não tem vez aqui. A realidade é impiedosa. A ambição é perigosa. Com um pulso narrativo impressionante, os diretores injetam eletricidade à medida que Howard se vê obrigado a se expor mais e mais.


Enquanto estudo de personagem, Joias Brutas é brilhante. Sem nunca sacrificar o ritmo do longa, os Irmãos Safdie causam um misto de sensações ao tentar entender as agruras de um homem de meia idade próximo do seu limiar. Howard é um tipo multifacetado. Por querer mais ele tem que sacrificar mais. Hipnótico em cena, Adam Sandler consegue traduzir as falhas e virtudes do seu personagem com extrema humanidade. No olho do furacão em 90% da película, o ator esbanja naturalidade ao traduzir a espiral de sentimentos e deterioração emocional que cerca a jornada do seu Howard. Ele faz tudo se tornar muito real aos olhos do público. Como se não bastasse a toada incessante proposta pelos realizadores, Sandler nos faz sentir pelo corretor de joias, torcer por ele, nos identificar com ele, sofrer com ele, se indignar com ele. Ao expor a sua fraqueza de forma tão franca, ele nos permite compreender o protagonista. Mesmo diante das suas decisões mais estúpidas. Estamos perante o produto de um meio materialista. A sua corrida contra o tempo dialoga também com o seu estado de espírito. 


Benny e Josh são habilidosos ao, a partir dele, refletir sobre clichês masculinos reconhecíveis. Ele é menor do que queria ser. Ele já não é mais tão atraente quanto gostaria de ser. Ele gosta de impressionar. Ele tem um status a zelar. Ele tem contas a pagar. Ele tem muito a perder. Mas, no fim, a sua frustração nasce daquilo que ele ainda não possui. Tal qual muitos homens, ele aposta com a sua vida, com os seus relacionamentos, com os seus sentimentos, com a sua família. A sua peculiar relação com a esposa (Idina Menzel), por exemplo, só realça as sequelas desta postura. O prêmio, as vezes, pode ser bem indigesto. À medida que a trama avança, inclusive, o roteiro é inteligente ao se aprofundar no constante flerte dele com a especulação. Mais do que um mero ‘mcguffin’, a joia bruta que dá título ao longa só ajuda a reforçar isso. O amuleto, que deveria ser o símbolo máximo da ambição, é o que melhor sintetiza a fragilidade deles. O que eles perseguem é uma reafirmação. O que eles querem já possuem. Algo, no entanto, insistem em os cegar para esta realidade.


O melhor de Joias Brutas, na verdade, está na feroz visão crítica com que o roteiro desnuda este mundo materialista. Com muito a dizer sobre o tema, os Irmãos Safdie enxergam a oportunidade de ir além ao determinar o quão tênue é a linha que separa a ambição da ganância nos grandes centros urbanos. O descontrole toma conta de Howard (e da trama como um todo) no momento em que percebemos o quanto aquele homem carismático, inteligente e bem relacionado está disposto a sacrificar para tirar “a sorte na loteria”. A partir de desgastante jornada do protagonista, Benny e Josh são enfáticos ao não reduzir tudo ao vício propriamente dito. O foco, aqui, está na raiz dele. Nas imposições do meio em que ele habita, nos padrões, nas oportunidades cada vez mais raras. Na visão dos cineastas, o capitalismo é mais viciante do que qualquer jogo. Com isso, porém, não quero dizer que Joias Brutas é condescendente quanto ao seu personagem. Ele não é uma vítima. Muito pelo contrário. As mesmas oportunidades que ele tem para entrar na “jogada”, ele tem para sair. Parte da tensão do longa nasce disso. Por mais que, com o avançar da trama, o argumento nos brinde com algumas espertas soluções narrativas, daquelas que só ajudam a catalisar as coisas, a natureza imprevisível do longa está diretamente ligada ao protagonista. Qual será o seu próximo passo? Qual será as consequências dele? Até onde ele está disposto a ir? Perguntas que martelam a nossa cabeça até o poderosos clímax.


Um senso de adrenalina, mais uma vez, potencializado pela direção estilosa de Benny e Josh Safdie. A veia autoral deles salta aos olhos. Os seus planos, quase sempre livres, tornam tudo muito imersivo. Os seus enquadramentos invadem muitas vezes o espaço dos personagens. O foco na expressão dos mesmos beira o incômodo em alguns momentos. Assim como Howard, os dois estão em constante movimento. O sentimento de desespero do protagonista é valorizado pelos pequenos 'set pieces' pensados pela dupla. Uma simples porta que não abre, poucas vezes, angustiou tanto. A sensação de caos controlado é empolgante. Uma inquietação refletida também na enervante trilha sonora, na expressiva fotografia noturna, na condução naturalista do elenco. Sem querer revelar muito, os diretores esbanjam originalidade no que diz respeito ao uso do personagem de Kevin Garnett. O que só ajuda a tornar tudo mais factível. Contando ainda com um elenco de apoio fantástico, a ferina Idina Menzel, a magnética Julia Fox e o dúbio LaKeith Stanfield preenchem as brechas narrativas com vigor e agregam muito ao arco central, Joias Brutas extrai a tensão da realidade numa obra com um implacável senso de consequência. Um filme sobre os apostadores do dia a dia, sobre as “oportunidades” que cegam e o preço cobrado por elas.

Nenhum comentário: