Logo na sua primeira cena, Judy: Muito Além do Arco-Íris revela o seu grande problema: a completa falta de sutileza. Nela, o produtor Louis B. Mayer (Richard Cordery) escancara tudo aquilo que assombrou a vida da atriz e cantora Judy Garland da forma mais literal possível. Na base do puro maniqueísmo. Que a biografada foi vítima do showbiz todo mundo sabe. Desde cedo ela sucumbiu a uma máquina sedenta por beleza, por talento, por jovialidade. Ela teve que se sacrificar para pertencer a este mundo. O longa dirigido por Rupert Goold (A História Verdadeira), no entanto, se contenta em investigar este processo com uma visão rasa dos fatos. Falta profundidade. Falta entender verdadeiramente o estrago causado pela pressão de homens como Meyer, pela imposição da indústria. O preço cobrado pelo sucesso. O resultado é uma cinebiografia protocolar que, ao contrário da estrela Judy Garland, só não é esquecível graças a soberba performance de Renée Zellweger. O corpo, a alma e principalmente a atormentada voz deste show.
No papel, o roteiro assinado por
Tom Edge, com base na peça End of The Rainbow, de Peter Quilter, é astuto ao
focar nos últimos meses de vida de Judy Garland. O presente, por si só, já
seria o bastante para que possamos enxergar as sequelas impostas pelo seu
passado. Embora faça um cuidadoso uso do recurso do recurso do flashback,
Rupert Goold frustra ao nunca mergulhar verdadeiramente na psique desta artista
quebrada. Sempre que se aproxima de uma emoção mais genuína, o argumento foge
da raia, se rende ao superficial. O que fica bem claro, por sinal, no piegas
desfecho. Tal qual muitas outras estrelas da sua geração, Judy Garland foi
consumida pelas imposições do showbiz. Para se manter magra, uma exigência dos
principais estúdios, ela desenvolveu um distúrbio alimentar crônico. Para
estrelar tantos projetos simultaneamente, ela se tornou uma dependente química
de remédios. Judy tinha problemas com a bebida, dormia pouco, se alimentava
mal, abusava das medicações. Um coquetel explosivo que, verdade seja dita, o
filme explora bem. É angustiante ver o que ela se tornou. Nesta camada mais
rasa, Goold faz o dever de casa com precisão ao traduzir a destrutiva rotina da
atriz. Cantar se tornou um fardo. O prazer, inicialmente, nasce de situações
fortuitas. Um encontro com um homem interessante, um jantar com um casal de
fãs, uma breve passagem de lucidez. Estamos diante de uma estrela anestesiada.
Engolida por uma realidade que ela já desistiu de controlar.
No momento em que deveria ir a
fundo neste turbilhão de sentimentos, no entanto, Judy: Muito Além do Arco-Íris
falha enquanto estudo de personagem. Ao invés de entender o impacto da
imposição midiática na identidade da biografada, Rupert Goold reduz tudo aos
problemas em si. A crise de autoestima dela, por exemplo, é apenas insinuada em
uma passagem. A sequelas causadas pela dependência são expostas muito mais no
físico, do que no emocional. Ouvimos a Judy cantora. Vemos a Judy deteriorada.
Mas e a Judy mãe? E a Judy mulher? E a Judy decadente? E a Judy falha? E a Judy excessiva? Goold
confunde reverência com condescendência. Ou piedade. A relação entre a cantora
e os filhos, por sinal, é repentinamente esquecida. Um grave deslize
potencializado pelo pragmatismo do roteiro. O realizador acompanha os últimos
meses de vida de Garland dentro de uma estrutura antecipável. Sempre que a
melancolia e a solidão se avizinham, surge um fato novo. Um sopro de esperança.
Uma conveniente quebra de clima. Por mais que, nestes momentos mais “luminosos”,
o longa faça jus ao ícone Judy Garland, o argumento não consegue justificá-los
com a devida propriedade. Falta voz aos personagens de apoio. Falta sinceridade
no elo entre eles. O seu último casamento com Michey Deans (Finn Wittrock), em
especial, é explorado ao bel prazer do roteiro. E mais uma vez de forma maniqueísta. É fácil enxergar as inúmeras
oportunidades perdidas por Goold. É fácil enxergar os exageros na condução do filme.
Todos estes perceptíveis problemas,
por sua vez, são atenuados graças a soberba performance de Renée Zellweger. Num
dos melhores trabalhos da sua carreira, a carismática atriz norte-americana eleva
o nível do longa ao mergulhar de verdade nas emoções da biografada. A estrela de O Diário de Bridget Jones, à sua maneira, também sentiu na pele as sequelas da pressão midiática. Também conviveu com as críticas à sua aparência, com a depressão, com a falta de oportunidades. Ao
contrário do argumento, ela invade com intensidade a psique desta estrela
corroída pelo showbiz. Estamos diante de uma mulher travada, um tanto inerte e
claramente frustrada. No que diz respeito ao aspecto físico, o trabalho de
Zellweger é o grande responsável pelo sentimento de angústia causado pelo
filme. Ela captura com rara sensibilidade o olhar perdido\vidrado de Judy, a
fragilidade corporal da atriz na intimidade, os seus gestos pouco naturais, a sua peculiar dicção. Os
seus primeiros números musicais são de partir o coração. Tudo ali é
propositalmente artificial. Zellweger brilha ao mostrar esta Judy Garland no
piloto automático. O seu trabalho, entretanto, só melhora quando o assunto é a
intimidade da estrela de O Mágico de Oz. Mesmo quando o texto não ajuda,
Zellweger consegue expor os tormentos desta mulher. O misto de vaidade e
desconexão. Dor e prazer. Tristeza e esperança. O seu trabalho vocal, por
sinal, é brilhante. Tudo aquilo que Judy não consegue expressar no seu rosto,
ela exibe na sua fala. Algo perceptível nos números musicais. Com uma direção
apenas operacional na maior parte do longa, Rupert Goold compensa ao dar nos
números musicais a liberdade que Renée Zellweger precisa para encarar o ícone
Judy Garland. A partir de planos médios e centralizados, o cineasta é astuto ao
interferir o mínimo possível nas performances da atriz nos palcos londrinos. O
que confere uma bem-vinda aura de teatralidade a estes momentos. São essas
passagens, indiscutivelmente, as mais naturais da película. Até porque, após um
longo período de treinamento, Zellweger impressiona ao emprestar a sua voz para
as apresentações. E com um alcance que, sinceramente, eu não esperava
encontrar.
Refém de alguns dos mais
tradicionais vícios das cinebiografias, Judy contorna a superficialidade ao
nos oferecer um triste e realístico vislumbre do que esta gigantesca estrela da
Sétima Arte encontrou no fim do seu colorido arco-íris. Embora sirva também como uma crítica ao impiedoso ‘modus operandi’ do showbiz, o melhor do longa
reside na poderosa performance de Renée Zellweger e na maneira com que ela nos
permite enxergar o talento de uma mulher mergulhada na dependência, na
decadência e na solidão. No fim, é impossível não se enternecer por ela e por tantas
outras artistas obrigadas a se submeter a tudo isso na busca pelo seu pote de
ouro.
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