segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Crítica | Ford Vs Ferrari

Miles, Miles, Miles...

Ao contrário do que o título parecia sugerir, Ford Vs Ferrari não é um filme sobre corporações automobilísticas. Longe disso. Com um claro desprezo pela figura dos executivos e pelo que eles representam para o mundo do automobilismo, o longa dirigido por James Mangold (Logan) é enfático ao reverenciar o feito de homens que verdadeiramente colocaram os seus sonhos em prática. Como de costume nas suas melhores produções, o cineasta, tal qual os seus personagens, enxerga mais uma vez a oportunidade de ir além. Mesmo quando escorrega no terreno do maniqueísmo, Mangold o faz com motivações justas. Sem nunca derrapar nas curvas do sentimentalismo, a sutileza, por sinal, é uma das suas marcas registradas, o realizador usa o cinema para fazer justiça e reconhecer o trabalho de homens domados por marcas. No papel, o filme se chama Ford Vs Ferrari, mas o justo seria Miles e Shelby. Infelizmente, porém, existia uma obra para ser vendida. James Mangold tem total consciência disso.




E que filme, amigos e amigas. Ford Vs Ferrari é um bólido a 7000 RPM conduzido com muita humanidade e sentimento. Assim como já havia feito no memorável Johnny e June (2005), James Mangold renega o tradicionalismo dos dramas biográficos ao mergulhar na mente dos seus protagonistas. Por mais que, narrativamente, o longa até siga um caminho convencional, o realizador é astuto ao nunca dedicar tempo demais àquilo que já conhecemos. Os feitos de outrora já estão devidamente cronometrados. Os mitos já estão criados. Tal qual outro grande título do gênero, o magnífico Rush: No Limite da Emoção, Mangold trata a busca pela velocidade (e o triunfo nas pistas) como o agente catalisador de uma história de amizade rica, emotiva e muito sincera. Uma jornada de homens distintos unidos por seus sonhos, pela cumplicidade e pela determinação em concretizá-los. Ford Vs Ferrari, acima de tudo, se esforça para entender o mundo dos seus personagens. Para validar as suas buscas. Para habitar neste universo. A partir da indignação de Shelby Carroll (Matt Damon) com a sua precoce (e forçada) aposentadoria nas pistas, por exemplo, Mangold nos mostra o que a corrida representava para estes homens. Sem excessos, sem dramalhão, sem autopiedade. Estar longe das pistas representava o começo do fim, o ponto final no grande prazer da vida deles. Já a partir da relação entre Miles (Christian Bale) e o seu querido filho Peter (Noah Jupe), o cineasta nos faz enxergar a pureza dos sentimentos que movia os seus protagonistas. Os carros são parte da vida deles. As corridas só estreitam o elo entre pai e filho. A mecânica é o ganha pão desta família. Eles devem tudo às suas máquinas.


O grande trunfo de Ford Vs Ferrari, na verdade, está no esmero com que o argumento captura a essência deste mundo. Com pulso narrativo e uma condução muito elegante, James Mangold é categórico ao, só depois de entender os seus personagens, invadir a jornada deles. Desconstruir o que viria a se tornar o triunfo de uma grande montadora. Por trás da vitória existe suor, existe politicagem, existe pressão, existe sacrifício. O realizador nos faz crer que os seus personagens têm muito a perder em caso de falha. Ele é habilidoso ao gradativamente nos levar ao limite de Miles e Shelby. E isso sem nunca sacrificar a naturalidade da obra, ou reduzir a temática à clichês do gênero. A questão, aqui, não é uma obsessão. Não é vaidade. Eles só querem correr, superar as suas próprias barreiras. Ao mesmo tempo em que constrói a franca e intensa amizade entre piloto e projetor, Mangold é inteligente ao revelar os obstáculos que os cercaram. Por mais que, num primeiro momento, a figura do executivo “sabotador” vivido por Josh Lucas soe um tanto dispensável, à medida que a trama avança o diretor compensa ao realçar a insensibilidade do meio corporativo. Os interesses capazes de corromper (ou causar desgosto) em um ser humano. Uma linha tênue traduzida com riqueza na figura do presidente da companhia, Henry Ford II (Tracy Letts). O tipo de personagem tridimensional que faz toda a diferença em filmes como esse. O homem capaz de chorar copiosamente por ter vivido uma experiência que o seu vanguardista pai não pôde é o mesmo que não consegue entender a verdade daqueles que trabalhavam tanto para isso. Nas entrelinhas, inclusive, Ford Vs Ferrari tem muito a dizer sobre este processo de desumanização, sobre a insensibilidade daqueles que visam o lucro a qualquer custo. Para Mangold, é o fator humano que torna a vitória nas pistas tão memorável.


O que, mais uma vez, me leva a defender que Ford Vs Ferrari deveria ter se chamado Miles e Shelby. Até porque, quanto a rivalidade proposta pelo título, o filme tem pouco a oferecer. Ao contrário de, volto a referendar, Rush: No Limite da Emoção, a rixa entre as montadoras surge como o elo mais fraco desta equação. O roteiro, aqui, comete o erro de verbalizar mais do que expor. Se por um lado o longa é certeiro ao não glamourizar as corporações, por outro flerta com o exagero (e até com estereótipos) ao diminuir o lado italiano. Ao menos a figura de Enzo Ferrari, tão complexa quanto a de Ford II, também é observada com a devida propriedade. Um pequeno desvio que, no final das contas, pouco interfere no resultado longa. Muito em função, primeiro, das poderosas atuações das suas estrelas. Enquanto Matt Damon, esbanjando carisma na pele do descolado criador do carro Shelby Cobra, energiza a trama ao capturar o espírito empreendedor indomável do seu personagem, Christian Bale arrebata como de costume ao tornar ao tratar a inabalável dedicação de Ken Miles com muita propriedade e sem maneirismos. Magérrimo em cena e com o seu sotaque inglês de volta, sim, ele é britânico, o ator vai muito além da metamorfose visual ao nos fazer crer no misto de grandeza, obstinação e orgulho do seu personagem.


Duas grandes atuações valorizadas pela enérgica direção de James Mangold. Quando assume a sua face mais intimista, Ford vs Ferrari é um filme denso, envolvente, capaz de capturar as emoções dos seus personagens com elegância e comedimento. Quando invade as pistas, no entanto, Mangold exibe o seu melhor ao, mais uma vez, escancarar o peso das ações dos personagens. Só que desta vez no asfalto. Num balé automobilístico impressionante, o cineasta arranca suspiros com naturalidade ao traduz a perícia dos pilotos com um realismo impressionante. A sua câmera se move junto aos carros e entre eles como um competidor disposto a tudo para chegar ao topo do pódio. Mangold troca o caos pela precisão. Em alguns momentos é possível sentir a força gravitacional dos veículos. Volto a frisar, ele trabalha a noção de limite como poucos. Um processo de imersão, verdade seja dita, potencializado pelo primoroso trabalho da equipe de design de som. O ronco dos motores captura com precisão a fragilidade das máquinas e (por consequência) dos seus pilotos.


Um sentimento de vulnerabilidade que, por si só, explica de onde vem a força de Ford Vs Ferrari. Um filme sobre o triunfo de homens comuns com sonhos gigantes. No fim, embora a cartela de encerramento lembre da sequência de vitórias da Ford nas 24 horas de Le Mans, o público não fica em dúvidas sobre quem é o verdadeiro vencedor desta história.

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