Ao contrário do que o título
parecia sugerir, Ford Vs Ferrari não é um filme sobre corporações
automobilísticas. Longe disso. Com um claro desprezo pela figura dos executivos
e pelo que eles representam para o mundo do automobilismo, o longa dirigido por
James Mangold (Logan) é enfático ao reverenciar o feito de homens que
verdadeiramente colocaram os seus sonhos em prática. Como de costume nas suas
melhores produções, o cineasta, tal qual os seus personagens, enxerga mais uma
vez a oportunidade de ir além. Mesmo quando escorrega no terreno do
maniqueísmo, Mangold o faz com motivações justas. Sem nunca derrapar nas curvas
do sentimentalismo, a sutileza, por sinal, é uma das suas marcas registradas, o
realizador usa o cinema para fazer justiça e reconhecer o trabalho de homens
domados por marcas. No papel, o filme se chama Ford Vs Ferrari, mas o justo
seria Miles e Shelby. Infelizmente, porém, existia uma obra para ser
vendida. James Mangold tem total consciência disso.
E que filme, amigos e amigas.
Ford Vs Ferrari é um bólido a 7000 RPM conduzido com muita humanidade e
sentimento. Assim como já havia feito no memorável Johnny e June (2005), James
Mangold renega o tradicionalismo dos dramas biográficos ao mergulhar na mente
dos seus protagonistas. Por mais que, narrativamente, o longa até siga um
caminho convencional, o realizador é astuto ao nunca dedicar tempo demais
àquilo que já conhecemos. Os feitos de outrora já estão devidamente
cronometrados. Os mitos já estão criados. Tal qual outro grande título do
gênero, o magnífico Rush: No Limite da Emoção, Mangold trata a busca pela
velocidade (e o triunfo nas pistas) como o agente catalisador de uma história
de amizade rica, emotiva e muito sincera. Uma jornada de homens distintos
unidos por seus sonhos, pela cumplicidade e pela determinação em concretizá-los.
Ford Vs Ferrari, acima de tudo, se esforça para entender o mundo dos seus
personagens. Para validar as suas buscas. Para habitar neste universo. A partir
da indignação de Shelby Carroll (Matt Damon) com a sua precoce (e forçada)
aposentadoria nas pistas, por exemplo, Mangold nos mostra o que a corrida
representava para estes homens. Sem excessos, sem dramalhão, sem autopiedade.
Estar longe das pistas representava o começo do fim, o ponto final no grande
prazer da vida deles. Já a partir da relação entre Miles (Christian Bale) e o
seu querido filho Peter (Noah Jupe), o cineasta nos faz enxergar a pureza dos
sentimentos que movia os seus protagonistas. Os carros são parte da vida deles.
As corridas só estreitam o elo entre pai e filho. A mecânica é o ganha pão
desta família. Eles devem tudo às suas máquinas.
O grande trunfo de Ford Vs
Ferrari, na verdade, está no esmero com que o argumento captura a essência
deste mundo. Com pulso narrativo e uma condução muito elegante, James Mangold é
categórico ao, só depois de entender os seus personagens, invadir a jornada
deles. Desconstruir o que viria a se tornar o triunfo de uma grande montadora.
Por trás da vitória existe suor, existe politicagem, existe pressão, existe
sacrifício. O realizador nos faz crer que os seus personagens têm muito a
perder em caso de falha. Ele é habilidoso ao gradativamente nos levar ao limite
de Miles e Shelby. E isso sem nunca sacrificar a naturalidade da obra, ou
reduzir a temática à clichês do gênero. A questão, aqui, não é uma obsessão.
Não é vaidade. Eles só querem correr, superar as suas próprias barreiras. Ao
mesmo tempo em que constrói a franca e intensa amizade entre piloto e projetor,
Mangold é inteligente ao revelar os obstáculos que os cercaram. Por mais que,
num primeiro momento, a figura do executivo “sabotador” vivido por Josh Lucas
soe um tanto dispensável, à medida que a trama avança o diretor compensa ao
realçar a insensibilidade do meio corporativo. Os interesses capazes de
corromper (ou causar desgosto) em um ser humano. Uma linha tênue traduzida com
riqueza na figura do presidente da companhia, Henry Ford II (Tracy Letts). O
tipo de personagem tridimensional que faz toda a diferença em filmes como esse.
O homem capaz de chorar copiosamente por ter vivido uma experiência que o seu
vanguardista pai não pôde é o mesmo que não consegue entender a verdade
daqueles que trabalhavam tanto para isso. Nas entrelinhas, inclusive, Ford Vs
Ferrari tem muito a dizer sobre este processo de desumanização, sobre a insensibilidade
daqueles que visam o lucro a qualquer custo. Para Mangold, é o fator humano que
torna a vitória nas pistas tão memorável.
O que, mais uma vez, me leva a
defender que Ford Vs Ferrari deveria ter se chamado Miles e Shelby. Até
porque, quanto a rivalidade proposta pelo título, o filme tem pouco a oferecer.
Ao contrário de, volto a referendar, Rush: No Limite da Emoção, a rixa entre as
montadoras surge como o elo mais fraco desta equação. O roteiro, aqui, comete o
erro de verbalizar mais do que expor. Se por um lado o longa é certeiro ao não
glamourizar as corporações, por outro flerta com o exagero (e até com
estereótipos) ao diminuir o lado italiano. Ao menos a figura de Enzo Ferrari,
tão complexa quanto a de Ford II, também é observada com a devida propriedade.
Um pequeno desvio que, no final das contas, pouco interfere no resultado longa.
Muito em função, primeiro, das poderosas atuações das suas estrelas. Enquanto
Matt Damon, esbanjando carisma na pele do descolado criador do carro Shelby
Cobra, energiza a trama ao capturar o espírito empreendedor indomável do seu personagem,
Christian Bale arrebata como de costume ao tornar ao tratar a inabalável
dedicação de Ken Miles com muita propriedade e sem maneirismos. Magérrimo em
cena e com o seu sotaque inglês de volta, sim, ele é britânico, o ator vai
muito além da metamorfose visual ao nos fazer crer no misto de grandeza,
obstinação e orgulho do seu personagem.
Duas grandes atuações valorizadas
pela enérgica direção de James Mangold. Quando assume a sua face mais
intimista, Ford vs Ferrari é um filme denso, envolvente, capaz de capturar as
emoções dos seus personagens com elegância e comedimento. Quando invade as
pistas, no entanto, Mangold exibe o seu melhor ao, mais uma vez, escancarar o
peso das ações dos personagens. Só que desta vez no asfalto. Num balé
automobilístico impressionante, o cineasta arranca suspiros com naturalidade ao
traduz a perícia dos pilotos com um realismo impressionante. A sua câmera se
move junto aos carros e entre eles como um competidor disposto a tudo para
chegar ao topo do pódio. Mangold troca o caos pela precisão. Em alguns momentos
é possível sentir a força gravitacional dos veículos. Volto a frisar, ele
trabalha a noção de limite como poucos. Um processo de imersão, verdade seja
dita, potencializado pelo primoroso trabalho da equipe de design de som. O
ronco dos motores captura com precisão a fragilidade das máquinas e (por
consequência) dos seus pilotos.
Um sentimento de vulnerabilidade
que, por si só, explica de onde vem a força de Ford Vs Ferrari. Um filme sobre
o triunfo de homens comuns com sonhos gigantes. No fim, embora a cartela de
encerramento lembre da sequência de vitórias da Ford nas 24 horas de Le Mans, o
público não fica em dúvidas sobre quem é o verdadeiro vencedor desta história.
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