Laços de sangue
Disposto a se livrar do rótulo de galã 'teen' conquistado na saga
Crepúsculo, Robert Pattinson tem trilhado um caminho extremamente autoral em
Hollywood nos últimos anos. Longe dos blockbusters, o talentoso ator resolveu experimentar
o melhor do cinema autoral, brilhando - desta vez sem a ajuda da luz do sol -
em títulos como subestimado thriller pós-apocalíptico The Rover: A Caçada (2014), na esnobada cinebiografia Life: A Vida de James Dean (2015) e no
elogiado drama aventureiro Z: A Cidade Perdida (2016). Um salto de qualidade/maturidade que,
indiscutivelmente, atinge o seu ápice no seu mais novo trabalho, o denso e
realístico Bom Comportamento. Sob a batuta dos respeitados irmãos Safdie, duas
das mais relevantes vozes do cinema 'indie' americano, Pattison praticamente
some dentro do seu personagem, se tornando o coração de um vigoroso e nada
concessivo thriller de perseguição. Uma obra estilosa e tecnicamente impecável
que, ao valorizar a incessante atmosfera de tensão, só estreita os laços entre
dois irmãos separados pelo sonho da prosperidade numa América vil e desigual.
Misturando o frenesi de Corra Lola Corra (1998), com a inconsequência estúpida
de Jogos Trapaças e Dois Canos Fumegantes (1998) e o naturalismo transgressor do
recente Victoria (2015), o roteiro assinado por Ronald Bronstein e pelo próprio Josh
Safdie é inicialmente primoroso ao estabelecer a sincera conexão entre os
irmãos Connie (Robert Pattinson) e Nick (Benny Safdie). Numa impetuosa proposta
narrativa, o longa precisa de menos de quinze minutos para introduzir tanto a
personalidade dos dois, quanto os dilemas da dupla, equilibrando agilidade e
profundidade ao arquitetar o plot com absoluta originalidade. Geralmente vazios, os créditos iniciais, por exemplo, aqui se transformam num
poderoso elemento narrativo, realçando a forte carga sentimental do filme num
recorte intenso e contextualizador. Na verdade, guiado por sentimentos como o
amor e o desespero, Bom Comportamento é uma daquelas raras películas que se
impõem (literalmente) do primeiro ao último minuto de projeção, resgatando a
adrenalina dos filmes de perseguição sem "sacrificar" o conteúdo e a
dramaticidade do argumento. Com um teor crítico\realista típico do cinema 'indie', o longa acompanha as desventuras de Connie, um rapaz sem grandes
perspectivas que, na tentativa de dar um pouco mais de conforto para o seu
irmão, o autista Nick, resolve assaltar um banco e conseguir o
dinheiro necessário para deixar a cidade grande. Durante a fuga, entretanto, os
dois são surpreendidos por uma patrulha policial. Enquanto o mentor consegue
escapar, Nick se assusta, sofre um acidente e é preso. Sem dinheiro e o seu tão
estimado irmão, Connie terá que correr contra o tempo para reparar o seu erro, lutando
para conseguir os dez mil dólares da fiança enquanto se depara com a face mais
desigual de uma grande metrópole.
Impulsionado pelo excepcional primeiro ato, Bom Comportamento segue com
o pé no acelerador ao desenvolver a desesperada jornada de Connie. Com um
roteiro sem "gorduras", Josh e Bennie Safdie são incisivos ao se
concentrar no que realmente importa, se esquivando das informações
desnecessárias ao explorar o temperamento do assaltante e o impacto da prisão
durante uma agitada noite. Sem explicações óbvias, a dupla de realizadores se
concentra no momento, no improviso, na crescente sensação de impotência do
protagonista, extraindo as suas mais sinceras emoções com intimidade e
nervosismo. Fazendo um imersivo uso da granulada fotografia noturna de Sean
Price Williams (Rainha do Mundo), os irmãos Safdie mostram fluidez cênica ao
colocar a sua câmera bem próxima da ação, realçando a incessante atmosfera de
tensão ao investir em claustrofóbicos planos fechados e em expressivos
close-ups. O enérgico 'mise en scene' soa muito natural,
principalmente pela precisão dos diretores ao capturar a reação dos personagens
a cada novo obstáculo imposto. É aqui, aliás, que o longa encontra as brechas
necessárias para tecer uma refinada crítica envolvendo a realidade de uma
grande metrópole norte-americana. Assim como David Mackenzie fez no recente
filme de assalto A Qualquer Custo, os Safdie esbanjam maturidade ao fazer um
inteligente uso do subtexto, subvertendo os clichês do "sonho americano"
ao expor a desigualdade, a opressão policial e a realidade de uma camada da
sociedade que frequentemente é esnobada em Hollywood. Por trás de tipos
propositalmente vazios, repare na dependente relação dos coadjuvantes com as
suas figuras maternas, os Safdie's apontam a sua mira para os
"filhos" de uma América desleixada, evidenciando a face mais vil da "Terra das Oportunidades". Nas entrelinhas, inclusive, o longa é inteligente ao dar voz aos imigrantes, realçando os contrastes
sem se esquivar dos enraizados problemas raciais nos EUA.
Em meio aos inúmeros predicados técnicos\narrativos, Robert Pattinson
surge como a força motora do longa ao traduzir com energia a complexidade do ardiloso Connie. Completamente imerso no personagem, o ex-galã 'teen' entrega uma
performance explosiva, traduzindo o misto de esperança, desespero, obsessão e
desilusão do assaltante com extrema naturalidade. Quando necessário, porém,
Pattinson é igualmente sutil ao interiorizar o aspecto mais sentimental da trama, o
que fica claro na comovente relação com o seu irmão. Embora separados durante a
maior parte da película, o vínculo entre os dois é perfeitamente compreensível,
muito em função do excelente primeiro ato e do intenso trabalho de Pattinson.
Assim como ele, aliás, o também diretor Benny Safdie enche a tela de sentimento
ao viver o relutante Nick. Sem nunca soar artificial, o ator é cuidadoso ao
absorver a deficiência do seu personagem, um trabalho minucioso capturado
em sua máxima potência logo na sequência de abertura. Num todo, aliás, o elenco
cumpre os seus respectivos papeis com louvor, vide a mimada namorada vivida por Jennifer Jason Leigh, o verborrágico "parceiro" interpretado por Ben Edelman e a ingênua adolescente vivida pela promissora Taliah Webster.
Um trabalho consistente que, na verdade, ajuda a reparar os poucos deslizes
do roteiro, a maioria deles envolvendo algumas ligeiras conveniências
narrativas. Sem querer revelar muito, embora renda uma curiosa reviravolta, uma
solução, em especial, soa um tanto quanto forçada, o tipo de coincidência que enfraquece o tom realístico proposto pela película. Além disso, por mais
que o desfecho em si seja memorável e completamente coerente com o teor do arco
central, o longa perde parte da sua força dentro do clímax, principalmente
quando decide fazer uma ligeira mudança de foco e mostrar as decisões do
protagonista sob um (apressado) prisma mais distante.
Uma pequena derrapada que de maneira alguma reduz o impacto de Bom
Comportamento, um thriller imponente que desponta como uma das grandes
surpresas cinematográficas de 2017. No embalo da afiada montagem e dos
refinados riffs de guitarra sintetizados da trilha de Daniel Lopatin (The Bling
Ring), os irmãos Benny e Josh Safdie conseguem se aproximar do
"cinemão" hollywoodiano sem abdicar da sua veia autoral, equilibrando
estilo (o neon definitivamente voltou à moda) e realidade para a construção de
uma película tensa, imprevisível e genuinamente humana.
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