sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Pacotão de Críticas | Ad Astra, Dumbo, Godzilla: Rei dos Monstros, Velozes e Furiosos: Hobbs e Shaw, Yesterday e mais...


O ano de 2019 foi daqueles corridos. Tão corrido que alguns grandes lançamentos não ganharam a devida atenção aqui no Cinemaniac. Neste artigo, portanto, decidi analisar alguns destes filmes num pacotão com pequenas críticas. Entre eles estão o subestimado Dumbo, da Disney, o profundo Ad Astra, da Plan B, o gigantesco Godzilla: Rei dos Monstros, da Warner Bros, o popular Hobbs e Shaw, da Universal, e alguns outros.

- Ad Astra (Plan B)


Poucos títulos recentes teceram comentários tão profundos sobre a paternidade quanto o enervante Sci-Fi Ad Astra. Por trás de uma expressiva jornada rumo ao desconhecido existe um drama existencial sobre o impacto da ausência, o peso da solidão e as sequelas da obsessão na vida de dois homens ligados pelo elo consanguíneo. Sob a intensa e virtuosa batuta de James Gray (Era Uma Vez em Nova Iorque, Z: A Cidade Perdida), o longa estrelado por um soberbo Brad Pitt camufla no viés científico\futurista uma trama genuinamente familiar sobre laços repentinamente rompidos e o vácuo causado na rotina daqueles que são deixados para trás. Num estudo de personagem primoroso, Gray, também responsável pelo roteiro ao lado de Ethan Gross, invade a intimidade de um astronauta, o respeitado e pragmático Roy (Pitt), após ele descobrir que o seu estimado pai (Tommy Lee Jones) poderia estar vivo num planeta remoto. Inteligente ao alimentar o mistério em torno desta complexa figura paterna, o realizador é igualmente cuidadoso ao gradativamente entender os motivos do seu protagonista. Estamos diante de um homem que se acostumou ao largar tudo em prol da sua profissão, que evitou criar raízes profundas. Fazendo um pontual uso do recurso da narração e dos flashbacks, o passado, aqui, é tão nebuloso quanto o futuro, Gray esbanja astúcia ao desconstruí-lo perante o público. À medida que ele se aproxima das respostas, a sua impavidez é colocada em cheque. Escondida na carapuça inabalável de Roy existia dor, fragilidade, solidão, tristeza, esperança. Um processo de “humanização” conduzido com absoluto comedimento por Pitt. Sem querer revelar muito, a sequência em que ele finalmente se abre na busca por diálogo é de partir o coração. Uma das performances mais desafiadoras e bem-sucedidas da carreira do ator.


Um predicado, verdade seja dita, potencializado pela sagacidade de James Gray em utilizar as convenções do gênero em prol da construção deste arco intimista. Mesmo com os dois pés na ficção científica, as sequências em órbita, por sinal, são sufocantes e impactantes, o cineasta vai além do balé espacial ao encontrar nas respectivas missões de pai e filho as principais respostas. Embora separados por trinta anos, os dois seguiram tendo muito em comum. A ausência moldou o protagonista. A solidão “aniquilou” o seu pai. Ambos queriam tanto algo que esqueceram de enxergar o óbvio. À medida em que o choque entre as expectativas e as frustrações acontecem, Gray é enfático ao traduzir a força do elo paternal, o estrago causado pelo vazio, as sequelas alimentadas pelos traumas, a influência das respostas nunca obtidas, a crença em uma saída. Nem todas as feridas, porém, o tempo é capaz de curar. Consciente disso, o realizador causa uma comoção natural ao capturar o turbilhão de emoções em torno deste tardio processo de reconexão\revelação, contornando o esquematismo do roteiro (Roy é um para raio de problemas) com diálogos pesados, indagações profundas e um precioso uso dos símbolos. Neste aspecto, inclusive, o longa remete a um outro grande ‘hit’ espacial da década, o potente Gravidade (2013), principalmente pela capacidade do diretor em extrair um novo significado de situações pertencentes ao universo dos personagens. Indo além da sua sólida carga dramática, Ad Astra é também um espetáculo visual de primeira mão. Com uma perspectiva de futuro factível, os astronautas são os novos colonizadores\expedicionários da vez, Gray capricha na construção desta visão de mundo expansiva, minimalista e ‘hi-tech’. O CGI é de primeira e funciona bem tanto nas passagens mais enervantes, quanto na composição dos detalhes cênicos. O sofisticado desgin de produção confere um senso de autenticidade às naves e colônias. A vistosa fotografia saturada em tons primários de Hoyte Van Hoytema só torna tudo mais estiloso. A refinada iluminação das cenas valoriza a expressividade dos atores. Somado a isso, Gray surpreende ao explorar com maestria elementos como a força gravitacional e a relação dos personagens com o ambiente espacial, nos presenteando, por exemplo, com a espetacular sequência de perseguição em solo lunar. Um dos muitos ‘highlights’ da produção. No fim, embora escorregue no terreno da condescendência nos seus minutos finais, Ad Astra é uma das grandes surpresas cinematográficas de 2019. James Gray consegue saciar o apetite dos fãs de um Sci-Fi provocante numa obra espetacular quando pode e dramática quando precisa.


- Dumbo (Disney)


Lançado em 1941, ou seja, há quase oitenta anos, a adaptação de Dumbo era um grande desafio. Fruto do seu tempo, o original, embora um clássico inquestionável, não envelheceu tão bem em diversos aspectos. Por trás da história do bebe elefante que sabia voar existia uma trama sobre maus tratos com animais, com arquétipos um tanto quanto racistas e um teor soturno bem típico das animações da Disney dos anos 1940. O desafio era atualizar o conto sem descaracteriza-lo. Algo que Tim Burton, me arrisco a dizer, fez com maestria. De volta a sua melhor forma após uma longa entressafra, o aclamado realizador captura o clima sombrio do original numa adaptação dinâmica, contextualizada, com personagens cativantes e um visual encantador. Extraindo o máximo do comovente ‘plot’ familiar, Burton troca o teor fabulesco da animação pelo drama com toques de aventura ao conseguir ir além da figura do paquiderme voador. Por mais que o fofíssimo Dumbo siga como a estrela do show, Burton é habilidoso ao criar um cenário decadente, triste e pessimista. O circo surge como um sinônimo de esperança em meio à guerra. Com um elenco de primeira, Eva Green, para variar, atrai as atenções, Burton é habilidoso ao criar um esperto paralelo entre Dumbo e os protagonistas infantis, os irmãos Milly (Nico Parker) e Joe (Finley Hobbins). Além disso, o diretor é sagaz ao imprimir em tela o clima de transformação tecnológica da década de 1920, o que torna o vilão vivido por Michael Keaton particularmente maléfico. Uma espécie de Walt Disney versão ‘evil’. O que joga contra o novo Dumbo, além do maniqueísmo infantilizado do roteiro, é o herói trágico vivido por um desconectado Colin Farrell. Um personagem oco e mal desenvolvido que, de certa forma, “rouba” o tempo de tela das crianças e do próprio protagonista. Um deslize, verdade seja dita, atenuado pelo conjunto visual da obra. Burton tira do papel um espetáculo empolgante. O CGI do expressivo Dumbo impressiona. As sequências aéreas são fascinantes. O design de produção\figurino capricha ao capturar os contrastes do contexto proposto pela obra. Ainda que peque ao explorar elementos importantes do longa com certo desdém, o senso de unicidade entre os membros do circo, por exemplo, merecia ser trabalhado com maior afinco, Dumbo atualiza o clássico com propriedade ao tecer um comentário singelo sobre o poder da amizade e a importância do respeito às diferenças.


- Velozes e Furiosos: Hobbs e Shaw (Universal)


É fato dizer que Dwayne Johnson e Jason Statham ajudaram a revitalizar a franquia Velozes e Furiosos. Ajudaram não, foram peças chave. Em momentos diferentes da octologia, a dupla marcou a transição da série protagonizada por Vin Diesel e pelo saudoso Paul Walker do ‘heist movies’ para o cinema de ação absurdo. Dois reforços de luxo que, gostem ou não, atraíram o protagonismo para si com carisma, humor afiado e uma indispensável presença física. Após a curiosa parceria dos dois em Velozes e Furiosos 8 (2017), estava claro que a Universal não iria perder a oportunidade de expandir o universo Fast and Furious. Nasceu então Hobbs e Shaw, um ‘spin-off’ que empolga ao abraçar o escapismo sem um pingo de vergonha. Sob a estilosa batuta de David Leitch (John Wick), o longa eleva o nível de insanidade ao colocar os dois contra uma ameaça quase super-heroica. Tem supersoldado, tem vírus mortal, tem “exército” de samoanos, tem sequências de ação surtadas, tem organização secreta. Nenhuma lei da física é respeitada aqui. O que passou a fazer todo o sentido dentro da lógica da série. O problema é que no momento em que deveria ir além da ação pela ação, Hobbs e Shaw derrapa no seu fraco argumento. Como se não bastasse o genérico ‘plot’, o texto de Chris Morgan não faz jus ao que vimos anteriormente no quesito humor, reduzindo a instável dinâmica entre os protagonistas à provocações de quinta-série e trocadilhos infames. Somado a isso, as exageradas duas horas e quinze de película são preenchidas com um dispensável drameco envolvendo uma vaga rixa entre irmãos. O resultado são diálogos de uma breguice sem tamanho, dispersões narrativas e uma tentativa de forçar um romance que nunca decola. O que, por sinal, até diminui a presença ‘bad-ass’ de Vanessa Kirby. Menos mal que, quando embarca no território da ação, Leitch se comprova mais uma vez como um “Ás” do segmento na atualidade. Num ‘mise en scene’ criativo, o cineasta capricha tanto nos embates físicos, quanto nas perseguições, se movimentando pelo cenário como poucos a fim de colocar o espectador no centro da ação. As coreografias de luta são divertidas. Os planos longos injetam tensão. O ‘slow motion’ torna tudo expressivo aos olhos do público. O clímax é audacioso. As sequências “protagonizadas” pela moto inteligente do vilão vivido por Idris Elba (no espírito da brincadeira), em especial, são magníficas e ajudam a elevar o nível do sarrafo dentro da franquia. Embora falhe enquanto comédia, o que não chega a ser novidade na franquia, Hobbs e Shaw extrai o máximo da dupla Johnson\Statham num filme pipoca enérgico capaz de reunir o melhor e o pior de Velozes e Furiosos.


- Godzilla: O Rei dos Monstros (Warner Bros)


Lançado em meio a grandes expectativas, Godzilla: O Rei dos Monstros seria um belo filme de MONSTRO se não fosse o seu pífio núcleo humano. Tornar as criaturas coadjuvantes no clímax é imperdoável. Quer vilão melhor que o aquecimento global? Era fácil de resolver isso sem apelar para o sentimentalismo barato e para um esdrúxulo subplot sobre ecoterrorismo. Escrito e dirigido por Michael Dougherty (do divertido Contos do Dia das Bruxas), o imponente longa frustra em relação ao seu antecessor ao tentar transformar os cientistas em protagonistas\antagonistas da história. Ao contrário do subestimado primeiro longa, que, com comedimento e um inteligente senso de construção da tensão, conseguiu permitir que o núcleo humano coexistisse com a presença de Godzilla, O Rei dos Monstros renega o seu subtítulo ao perder tempo demais com os dilemas de um casal de cientistas divorciado (Vera Farmiga e Kyle Chandler) diante um grupo de terroristas liderado por um subaproveitado Charles Dance. O texto não ajuda. As “desculpas” para que os humanos tivessem alguma função nos embates entre os titãs são esdrúxulas. Nem se a Millie Bobby Brown estivesse vivendo a poderosa Eleven de Stranger Things ela seria “útil” neste confronto. Ao menos o cientista nipônico vivido por Ken Watanabe finalmente ganha o seu momento após dois filmes como uma mera ferramenta didática do roteiro. Por pior que seja o núcleo humano, entretanto, Godzilla: O Rei dos Monstros compensa quanto decide entregar aquilo que os fãs do subgênero Kaiju gostariam de assistir. Como se não bastasse os impressionantes predicados estéticos, o CGI é marcante, o design das feras expressivo, a noção de escala imponente, Dougherty é astuto ao justificar o embate entre as gigantescas criaturas usando elementos biológicos. Sem grandes pirações narrativas, a continuação é esperta ao se apropriar de elementos da natureza selvagem, tornando tudo bastante intuitivo aos olhos do público. O que, de certa forma, só torna mais irrelevante a presença de tantos personagens humanos. A imagética continuação, aliás, empolga quando entrega aquilo que deveria ser a sua prioridade: as devastadoras batalhas entre os monstruosos titãs. Elas são devastadoras, lentas, reluzentes. Um choque de proporções épicas que impede Godzilla: Rei dos Monstros de se tornar uma verdadeira catástrofe. Vou além, torna a experiência até divertida. Imperfeita, mas empolgante.


- Suprema (Focus Features)


É duro perceber que, em meio ao emaranhado de blockbusters que tem tomado conta das salas de cinema ao redor do mundo, títulos como Suprema não têm conquistado o espaço necessário para brilhar. Sob a delicada batuta de Mimi Leder (Impacto Profundo), o longa estrelado por uma radiante Felicity Jones é firme ao revelar os obstáculos em torno da luta de Ruth Bader Ginsburg na luta pela igualdade de gênero nos EUA. Num recorte sucinto, denso e esclarecedor, a realizadora vai além da sua icônica protagonista ao olhar para uma América regida pelas leis dos homens. Fiel ao tom moderado de RBG, que, embora entendesse o valor dos movimentos mais radicais, sempre defendeu que a igualdade só viria com uma drástica mudança na constituição, Leder é categórica ao enxergar o macro a partir do micro. Ao focar na primeira grande batalha de Ruth e no caminho que ela percorreu até esse momento, no início dos anos 1970, a realizadora acompanha um período de transformações na sociedade norte-americana sob uma perspectiva lúcida e ao mesmo tempo indignada. Aos olhos da jovem advogada percebemos a segregação das mulheres, o machismo\paternalismo enraizado, a falta de voz perante temas que só diziam respeito a elas. É fácil enxergar o entusiasmo dela ao entrar numa instituição formada majoritariamente por homens, o desconforto dela ao ser tratada com condescendência por seus colegas, a frustração dela em não poder exercer a sua profissão, a dor dela em não poder fazer a diferença. Mimi Lader, em especial, é inteligente ao traduzir o choque geracional entre Ruth e a sua determinada filha Jane (Cailee Spaeny). Estamos diante de uma mulher idealista em constante atualização, modificada pelo contexto em que habitava. Um predicado, volto a frisar, valorizado pela rigidez polida de Felicity Jones, impecável ao dar vida a uma mulher cansada de satisfazer os anseios daqueles que a cercavam. Quando se distancia da figura de RBG, entretanto, Suprema dá as suas derrapadas. No momento em que deveria ouvir o outro lado, o lado dos que queriam a manutenção do ‘status quo’, Leder peca pela unidimensionalidade. Com exceção do advogado vivido pelo carismático Justin Theroux, os homens ou são sensíveis e compreensivos, ou insensíveis e pedantes. O que diminui a força da crítica proposta. Nada que, de fato, atenue o impacto de Suprema, um drama que, embora preso aos clichês dos filmes biográficos, consegue refletir sobre a posição feminina dentro de uma sociedade machista com peso e inteligência.


- Guava Island (Amazon Studios)


Ambientado numa ensolarada ilha caribenha, Guava Island é tudo menos paradisíaco. Por trás dos cativantes números musicais, da brilhante performance de Donald Glover, da radiante presença de Rihanna e do tom aparentemente festivo existe um drama poderoso. Consciente do período em que estamos vivendo, o talentoso diretor Hiro Murai retorna a década de 1970 para acompanhar as desventuras de um músico disposto a usar o seu talento para desafiar um sistema inclemente. Ao longo dos seus enxutos cinquenta minutos, o longa é categórico ao pintar um retrato crítico e realista sobre o impacto da repressão na rotina de uma comunidade. A música, aqui, é tratada como um instrumento de transformação. Murai é enfático ao defender a responsabilidade social daqueles que são ouvidos. O Deni de Donald Glover é um símbolo de esperança. Com as suas “armas”, ele quer levar algo para o seu povo. Mais do que sua música, ele quer igualdade, respeito e liberdade. Claramente influenciado por títulos como o brasileiro Cidade de Deus, o cineasta surpreende ao entregar um drama bem mais profundo e denso do que o esperado. Mesmo com pouco tempo, o realizador toca em feridas muito reconhecíveis ao refletir sobre qualidade de vida, sobre o preço cobrado pelo regime capitalista, sobre os reais interesses daqueles que ditam as normas. Ao ir além dos elétricos números musicais, com destaque absoluto para a versão “industrial” de This is America, Murai é categórico ao revelar a verdade como ela é. Sem atenuantes. Sem saídas fáceis. No fim, o choque é natural, assim como o efeito inspirador. Guava Island defende o poder de uma ideia ao ecoar as vozes dos oprimidos.


- Yesterday (Universal Pictures)


Richard Curtis me fez gostar de comédias românticas. Roteirista de Quatro Casamentos e um Funeral (1994), O Diário de Bridget Jones (2001) e Simplesmente Amor (2003), o realizador escreveu seu nome do gênero com produções criativas, inteligentes e adoráveis. Uma combinação de predicados que, de certa forma, está presente em Yesterday. Longe de ser inquestionável, o longa dirigido por Danny Boyle (Extermínio) é o tipo de produção que contorna as suas falhas com uma revigorante aura ‘feel good’. Com base numa premissa genial, a comédia romântica britânica ganhou um marketing natural ao narrar a jornada de um cantor de bar que repentinamente acorda em uma realidade em que Os Beatles não existiram. Um musical com ‘hits’ do quarteto de Liverpool, por si só, já era atraente o bastante. Tudo fica melhor com música. Se for com Beatles então nem se fala. Consciente disso, Boyle não perde tempo ao mergulhar no mundo de sucessos deste ícone do rock. O que ajuda a explicar o seu claro desleixo quanto a construção dos personagens. Se por um lado Curtis, com autenticidade, acerta ao construir um peculiar casal preso na ‘friendzone’, por outro a sua singular trama custa a emplacá-lo. A impressão que fica ao longo do irregular primeiro ato é que Yesterday peca ao se distanciar da relação entre os personagens de Himesh Patel e Lily James. A química entre os dois é consistente. Ela, como sempre, surge radiante em cena. O argumento descomplica as coisas ao tornar a dinâmica entre o músico e a sua dedicada empresária muito franca.
O problema é que, talvez pela pressão em focar no universo dos Beatles, o romance demora a engrenar. Os obstáculos que os separam são frágeis. O humor é irregular e abusa dos estereótipos quanto a família do cantor. A participação de Ed Sheeran é forçada e diminui o peso da crítica sobre a indústria da música. Hey Dude mostra o quão difícil seria a vida dos Beatles se eles tivessem nascido nos dias atuais. Ainda assim, na transição para a metade do longa, o longa é perspicaz ao fugir do lugar comum no que diz respeito aos conflitos do simpático protagonista. Mais uma vez, o argumento acerta ao descomplicar as coisas, ao não se prender tanto às questões morais, ao discutir o plágio sob uma perspectiva humana. Sem nunca se explicar demais sobre os mistérios em torno do “desaparecimento” da clássica banda, Yesterday sobe de nível quando decide focar no seu adorável casal e nos obstáculos ocasionados pelo sucesso. Boyle é astuto ao, na iminência do afastamento causado pelo showbiz, catalisar o clima de romance. Um arco esperto incrementado por uma solução narrativa corajosa. Sem querer revelar muito, o cineasta abraça o fantástico com convicção ao guiar o protagonista rumo a decisão que norteia o último ato. Uma homenagem que, isoladamente, já seria o bastante para valer o ingresso. Entre altos e baixos, Yesterday extrai o máximo desta mitológica banda com uma trilha sonora escolhida a dedo, cativantes números musicais (Patel segura a responsabilidade com naturalidade) e uma aura descontraída que ajuda a aquecer uma trama mais morna que o esperado.


- Thunder Road (Vanishing Angle)



Um inusitado exercício de autopiedade, Thunder Road é uma tragicomédia de difícil tradução. Responsável pela direção, roteiro e pela atuação, Jim Cummings faz de tudo num filme conveniente, sentimentalista, mas ao mesmo tempo sensível e realista. Existe muito coração, talento e ironia na obra, mas também muito exibicionismo. Embora a premissa cause uma empatia natural e o desenvolvimento do arco principal toque em feridas reconhecíveis, não sei dizer o que foi involuntário e o que foi proposital na construção da jornada de Jim Aranud. Não consegui precisar até que ponto Cummings está satirizando a masculinidade frágil de um homem à beira do caos com a morte da sua matriarca ou sendo condescendente com ele. No seu primeiro grande trabalho, o realizador ousa ao transitar por temas tão desconcertantes com um senso de humor peculiar. Jim reage quase sempre mal aos problemas que o cerca. Ele é imaturo, irritadiço, instável. Sentimentos que não combinam com um oficial da lei. O que por si só gera respostas inesperadamente cômicas. Neste aspecto, Thunder Road acerta ao tratar a pressão da rotina policial como um complicador. Uma abordagem comum gera uma reação explosiva. Uma morte acidental causa um efeito mais drástico. Uma reação intempestiva gera consequências na luta pela guarda da sua filha após o divórcio. Sim, Jim também está se separando. Uma conjuntura de problemas que, à medida que a trama avança, merecia uma abordagem mais profunda. Sem amarras, Cummings, porém, centraliza tudo ao seu redor. Se prende demais as reações histriônicas do protagonista a cada novo empecilho. O humor perde sentido. Em vários momentos o sentimento de desconforto soa mais evidente que o ideal. E, volto a frisar, não sei afirmar se propositalmente ou não. O que não funciona tão bem na extravagante (e longuíssima) sequência do funeral, por exemplo, soa drástico e genuinamente perigoso na cena da explosão da delegacia. Esse sentimento de incerteza, combinado com o claro (e por vezes dispensável) 'show off' de Cummings, enfraquece o senso de tragicomédia da obra e o impactante clímax como um todo. No fim, entretanto, Thunder Road é o tipo de obra que merece o benefício de dúvida. Mesmo se levando a sério demais, um drama imprevisível que, nos seus melhores momentos, coloca o dedo em feridas reais com propriedade e particularidade.

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