sábado, 28 de dezembro de 2019

Crítica | As Loucuras de Rose

Entre o sonho e a ilusão

E o melhor filme de 2019 que pouquíssima gente assistiu é... As Loucuras de Rose. Com uma abordagem real e genuinamente feminina, o longa dirigido por Tom Harper (Os Aeronautas) causa um fascínio natural ao narrar as desventuras de uma impulsiva cantora às avessas com a imaturidade. Usando a rebeldia da música country como um esperto pano de fundo, o longa esbanja sinceridade ao revelar o tamanho dos obstáculos enfrentados por uma mãe solteira dividida entre um sonho remoto e as suas verdadeiras responsabilidades. Sem um pingo de condescendência quanto a figura da sua protagonista, a errática Rose (Jessie Buckley), Harper é cuidadoso ao invadir a rotina desta mulher caótica disposto a compreendê-la.

Estamos diante de uma ex-presidiária impulsiva, relapsa enquanto figura materna, que insistia em colocar a sua liberdade acima dos filhos. Ela queria a qualquer custo ir para Nashville, viver da sua música, embarcar numa empreitada um tanto arriscada. Entre Rose e o seu sonho, porém, existiam pesados obstáculos. Um oceano de problemas que age como uma âncora nos planos da jovem escocesa. Com extrema honestidade, o argumento assinado por Nicole Taylor é enfático ao questionar as falhas de Rose sem desmerecer as suas virtudes. Por trás das mentiras, do jeito grosso e do comportamento destrutivo existia uma mulher com anseios verdadeiros. O seu talento era natural. A sua presença encantadora. O seu crescente esforço em recuperar o tempo perdido evidente. É interessante ver como Tom Harper é astuto ao usar as evidentes facilitações narrativas a favor deste estudo de personagem. Diante do inesperado entusiasmo da nova patroa, a ingênua Susannah (Sophie Okonedo, cativante), o diretor encontra uma grande oportunidade para realçar os desvios morais da protagonista, a sua incapacidade em estabelecer prioridades. E isso sem nunca a julgar.


A partir desta radiante personagem, o cineasta é categórico ao escancarar a dura rotina de uma mulher diante de barreiras tão reconhecíveis. À medida que tenta andar com as suas próprias pernas, Rose esbarra não só nos seus problemas pessoais (imaturidade, instabilidade, inquietude), mas principalmente na dificuldade que é assumir a criação dos filhos sozinha, na falta de rumo durante o período de ressocialização, na constante sensação de desconfiança. Com dinamismo narrativo, sequências comoventes e muita verdade, Tom Harper consegue dar voz a Rose cantora, a Rose mãe, a Rose inconsequente, a Rose pressionada, a Rose perdida, a Rose persistente. E não só a ela. Muito mais do que um símbolo de experiência, por exemplo, a matriarca vivida pela veterana Julia Waters (excelente) surge para causar o choque de realidade na vida da protagonista. Para mostrar a realidade, por mais dura que ela seja. É na relação entre as duas, aliás, que o comentário social sobre o círculo vicioso em torno do abandono parental se faz mais claro. Ao invés de tentar entender motivos, As Loucuras de Rose é enfático ao estabelecer o impacto da ausência na criação, o distanciamento entre mãe e filhos, o delicado processo de recuperação da credibilidade dentro do seio familiar. Um arco por si só complexo conduzido com sutileza e humanidade por Harper. Rose não vira uma ótima mãe da noite para o dia. A jornada de amadurecimento é tortuosa. O aprendizado vem do erro, do sofrimento, das inúmeras portas fechadas.


Impecável enquanto um por vezes desconcertante drama familiar, Wild Rose (no original) é também um musical de primeira. Em meio aos inúmeros passos em falso da protagonista, Tom Harper mostra categoria ao traduzir os tormentos de Rose e transformá-los no combustível que a move. Para o bem e para o mal. Indo além da eletricidade dos números musicais, o longa trata o talento dela ora como uma válvula de escape, ora como uma luz no fim do túnel, ora como um fantasma que atormenta. À medida que a trama avança, em especial, o roteiro é habilidoso ao confrontá-la também nos palcos, ao colocar em cheque as suas convicções, ao questionar as suas motivações, ao plantar dúvidas. Na transição para o fim, inclusive, Harper faz um belíssimo uso dos símbolos (o palco vazio, os cds no porta-malas, os bares lotados) para mostrar a realidade como ela é. Sem facilitações, sem convites repentinos, sem astros decadentes dispostos a alavancar a sua carreira. Os entendedores entenderão. Embora não cause o impacto de musical de um ‘hit’ como Nasce Uma Estrela, o longa compensa com a sublime performance de Jessie Buckley. Radiante em cena, ela absorve o turbilhão de emoções da sua Rose com uma franqueza comovente, fazendo jus ao profundo texto ao abraçar a fragilidade imatura da sua personagem. Uma das grandes performances femininas da temporada.


Além disso, nos momentos em que precisa soltar a voz, Jesse Buckley o faz com uma potência avassaladora, nos presenteando com apresentações recheadas de sentimento e paixão. Com um visual expressivo, a luminosa fotografia em tons rosé de George Steel realça a feminilidade da protagonista (e da produção como um todo) com autenticidade, As Loucuras de Rose pinta um retrato realista sobre uma jovem falha obrigada a redefinir as suas expectativas na busca pela tão sonhada independência. No fim, mais difícil do que andar na linha é superar os obstáculos que surgem ao longo dela.

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