E o melhor filme de 2019 que
pouquíssima gente assistiu é... As Loucuras de Rose. Com uma abordagem real e
genuinamente feminina, o longa dirigido por Tom Harper (Os Aeronautas) causa um
fascínio natural ao narrar as desventuras de uma impulsiva cantora às avessas
com a imaturidade. Usando a rebeldia da música country como um esperto pano de
fundo, o longa esbanja sinceridade ao revelar o tamanho dos obstáculos
enfrentados por uma mãe solteira dividida entre um sonho remoto e as suas
verdadeiras responsabilidades. Sem um pingo de condescendência quanto a figura
da sua protagonista, a errática Rose (Jessie Buckley), Harper é cuidadoso ao
invadir a rotina desta mulher caótica disposto a compreendê-la.
Estamos diante de uma ex-presidiária impulsiva, relapsa enquanto figura materna, que insistia em colocar a sua liberdade acima dos filhos. Ela queria a qualquer custo ir para Nashville, viver da sua música, embarcar numa empreitada um tanto arriscada. Entre Rose e o seu sonho, porém, existiam pesados obstáculos. Um oceano de problemas que age como uma âncora nos planos da jovem escocesa. Com extrema honestidade, o argumento assinado por Nicole Taylor é enfático ao questionar as falhas de Rose sem desmerecer as suas virtudes. Por trás das mentiras, do jeito grosso e do comportamento destrutivo existia uma mulher com anseios verdadeiros. O seu talento era natural. A sua presença encantadora. O seu crescente esforço em recuperar o tempo perdido evidente. É interessante ver como Tom Harper é astuto ao usar as evidentes facilitações narrativas a favor deste estudo de personagem. Diante do inesperado entusiasmo da nova patroa, a ingênua Susannah (Sophie Okonedo, cativante), o diretor encontra uma grande oportunidade para realçar os desvios morais da protagonista, a sua incapacidade em estabelecer prioridades. E isso sem nunca a julgar.
A partir desta radiante
personagem, o cineasta é categórico ao escancarar a dura rotina de uma mulher
diante de barreiras tão reconhecíveis. À medida que tenta andar com as suas próprias
pernas, Rose esbarra não só nos seus problemas pessoais (imaturidade, instabilidade,
inquietude), mas principalmente na dificuldade que é assumir a criação dos
filhos sozinha, na falta de rumo durante o período de ressocialização, na
constante sensação de desconfiança. Com dinamismo narrativo, sequências
comoventes e muita verdade, Tom Harper consegue dar voz a Rose cantora, a Rose
mãe, a Rose inconsequente, a Rose pressionada, a Rose perdida, a Rose persistente.
E não só a ela. Muito mais do que um símbolo de experiência, por exemplo, a
matriarca vivida pela veterana Julia Waters (excelente) surge para causar o
choque de realidade na vida da protagonista. Para mostrar a realidade, por mais
dura que ela seja. É na relação entre as duas, aliás, que o comentário social
sobre o círculo vicioso em torno do abandono parental se faz mais claro. Ao
invés de tentar entender motivos, As Loucuras de Rose é enfático ao estabelecer
o impacto da ausência na criação, o distanciamento entre mãe e filhos, o
delicado processo de recuperação da credibilidade dentro do seio familiar. Um
arco por si só complexo conduzido com sutileza e humanidade por Harper. Rose
não vira uma ótima mãe da noite para o dia. A jornada de amadurecimento é
tortuosa. O aprendizado vem do erro, do sofrimento, das inúmeras portas
fechadas.
Impecável enquanto um por vezes
desconcertante drama familiar, Wild Rose (no original) é também um musical de
primeira. Em meio aos inúmeros passos em falso da protagonista, Tom Harper
mostra categoria ao traduzir os tormentos de Rose e transformá-los no
combustível que a move. Para o bem e para o mal. Indo além da eletricidade dos
números musicais, o longa trata o talento dela ora como uma válvula de escape,
ora como uma luz no fim do túnel, ora como um fantasma que atormenta. À medida
que a trama avança, em especial, o roteiro é habilidoso ao confrontá-la também
nos palcos, ao colocar em cheque as suas convicções, ao questionar as suas
motivações, ao plantar dúvidas. Na transição para o fim, inclusive, Harper faz
um belíssimo uso dos símbolos (o palco vazio, os cds no porta-malas, os bares
lotados) para mostrar a realidade como ela é. Sem facilitações, sem convites
repentinos, sem astros decadentes dispostos a alavancar a sua carreira. Os
entendedores entenderão. Embora não cause o impacto de musical de um ‘hit’ como
Nasce Uma Estrela, o longa compensa com a sublime performance de Jessie
Buckley. Radiante em cena, ela absorve o turbilhão de emoções da sua Rose com
uma franqueza comovente, fazendo jus ao profundo texto ao abraçar a fragilidade
imatura da sua personagem. Uma das grandes performances femininas da temporada.
Além disso, nos momentos em que
precisa soltar a voz, Jesse Buckley o faz com uma potência avassaladora, nos
presenteando com apresentações recheadas de sentimento e paixão. Com um visual
expressivo, a luminosa fotografia em tons rosé de George Steel realça a
feminilidade da protagonista (e da produção como um todo) com autenticidade, As
Loucuras de Rose pinta um retrato realista sobre uma jovem falha obrigada a
redefinir as suas expectativas na busca pela tão sonhada independência. No fim,
mais difícil do que andar na linha é superar os obstáculos que surgem ao longo
dela.
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