segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Fugindo do Hype | Rocketman

Tudo que Bohemian Rhapsody poderia ter sido e não foi

Antes de mais nada, não estou entre aqueles que detestam Bohemian Rhapsody. A minha crítica sobre o longa não me deixa mentir. É um filme com inúmeras virtudes e também pecados. O maior deles, fora a bagunça na produção, ficou pela maneira reverente com que a obra abordou a vida do seu astro, o catártico Freddie Mercury. Os altos e baixos do Queen foram diluídos numa mistura regada por empolgantes ‘hits’, ‘fan-service’ e inúmeras conveniências narrativas. No fim, bastou a poeira do show baixar para o sentimento de potencial desperdiçado ficar evidente. Uma sensação, a meu ver, potencializada por Rocketman, uma cinebiografia capaz de expurgar os fantasmas mais íntimos de Elton John com peso, energia e originalidade. Mesmo com algumas problemáticas soluções narrativas, o longa 100% dirigido por Dexter Fletcher (o escolhido para tocar o barco em Bohemian Rhapsody após a polêmica dispensa de Bryan Singer) compensa ao investigar a persona desta estrela da música sem grande pudor. O que vemos aqui é um bio com a essência do biografado. Um musical capaz de narrar a história de um tímido e genial músico britânico sob a perspectiva glamourosa\fantasiosa que ajudou a consagra-lo. E isso sem nunca distorcer a realidade dos fatos.



Numa sacada brilhante, Rocketman é perspicaz ao sustentar todo o filme numa sessão de terapia em uma clínica de reabilitação. Um lugar em que as pessoas realmente precisam se abrir para superar o vício. Um ambiente em que todos buscam compreender e serem compreendidos. Um espaço naturalmente intimista que surge como o agente catalisador da trama. Enquanto se concentra na figura de Elton John (Taron Egerton), na verdade, o argumento assinado por Lee Hall é assertivo ao encontrar a voz do biografado e ao devassar a sua vida pessoal ao longo das envolventes duas horas de projeção. Logo na primeira cena nos deparamos com um homem quebrado, em frangalhos, engolido pelo personagem que ajudou a criar. Um astro como poucas vezes vimos. Disposto a se abrir, a contar a sua verdade dos fatos. Um processo de análise que nasce de dentro para fora. Sob a irreverente óptica musical proposta por Dexter Fletcher nos deparamos com o turbilhão de emoções que desde cedo sempre tomou conta da vida de Elton. Conhecemos a criança carente de afeição paterna, o adolescente obrigado a conviver com a deterioração do seu núcleo familiar, o rapaz reprimido às avessas com a sua própria sexualidade, o jovem repentinamente engolido pelo mundo da fama, o adulto “consumido como um foguete” por quase todos ao seu redor, a estrela solitária, o errático dependente químico, o astro egoísta. Por mais que os magníficos números musicais surjam como uma espécie de atenuante, é difícil não se sentir desconfortável com o peso deste relato, com a falta de sentido nas coisas, com o sentimento de vazio escondido nas plumas e das lantejoulas. Rocketman acerta em cheio ao focar na fase mais caótica\deteriorante de Elton John e, a partir deste recorte de três décadas, escancarar o quão dilacerante pode ser o mundo do showbiz.


Uma abordagem por si só poderosa, mas que cresce graças a sagacidade de Dexter Fletcher em trazer o elemento fantástico para o centro da trama. Numa proposta quase fabulesca, o criativo cineasta invade o repertório de Elton John de forma poucas vezes vistas dentro do gênero, extraindo o significado das suas próprias músicas em números empolgantes, imponentes e sempre intimistas. Um retrato, volto a frisar, com a cara desta icônica estrela da música. A literalidade é substituída pela poesia musical. Em cada um dos imagéticos números musicais Fletcher extrai um pouco mais da identidade de Elton. Não existe espaço para o ‘fan-service’ ou para referências gratuitas. As canções aqui passam a ser parte não da jornada profissional do músico, mas da sua jornada pessoal. O realizador não parece preocupado com a ordem dos fatos. Nem poderia. Na lógica quase surreal do filme, Elton está se expondo como nunca havia feito. As músicas refletem o estado de espírito do músico. A sua genialidade autodidata, o seu grito de libertação, a sua ascensão midiática, a sua confusão sentimental, a sua devastação, a sua tristeza, a sua dor, os seus lapsos e também a sua resiliência. Fletcher é particularmente cuidadoso ao ressignificar as composições, ao transforma-las no mais íntimo espelho de um homem devasso e devassado. Como não citar, por exemplo, o efeito doce causado pela sensível (e fiel aos fatos) performance em Your Song, ou o clima de catarse ocasionado na fantástica sequência da “gravidade zero” em Crocodile Rock, ou então a euforia perigosa de Pinball Wizard, a solidão embutida em Tiny Dancer, a raiva que abastece Rocketman, a inércia que impregna Bennie and the Jets. Com um senso de plasticidade fascinante, Fletcher viaja pelos (poucos) altos e (muitos) baixos desta fase da vida de Elton John com vigor, permitindo que o público enxergue o pior e o melhor de um homem consumido pelos sentimentos citados acima.


Nos momentos em que se vê obrigada a se distanciar da figura de Elton, entretanto, Rocketman repete alguns dos piores “deslizes” de Bohemian Rhapsody. Por mais que a narrativa em primeira pessoa atenue parte destes problemas, o argumento geralmente peca pela unidimensionalidade quando decide dar voz ao outro lado. Aqueles que, ao longo dos anos, se tornaram parte do problema. O que fica bem claro, em especial, no momento em que a figura de John Reid surge em cena. Embora, volto a frisar, parte desta representação quase maquiavélica possa ser atribuída ao senso de amargura do interlocutor desta história, Dexter Fletcher exagera nas tintas ao criar um personagem detestável, ardiloso e visualmente soturno. Um desnível acentuado pela gélida performance de Richard Madden. Ainda que, a rigor, o argumento sustente essa visão com situações que realmente aconteceram, a complexa relação amorosa\profissional entre ele e Elton é prejudicada pela maneira com que o roteiro reduz todo o conflito à nefasta presença de Reid. Um problema que, aliás, se repete na igualmente complicada interação entre Elton e a sua expansiva mãe. Se por um lado a carismática Bryce Dallas Howards rouba a cena ao capturar os humanos anseios de uma figura materna errática e um tanto quanto ferina, por outro o roteiro limita o efeito dramático causado por ela ao gradativamente reduzi-la a figura da megera sem coração. Pode até ser que em alguma fase da sua vida Elton tenha a enxergado desta forma, mas o longa, ao acentuar os traços mais negativos dela, acaba por “protegê-lo” desnecessariamente. Como se o músico não tivesse parcela de responsabilidade em tudo isso. A culpa por diversas vezes é terceirizada aqui. Em contrapartida, a relação entre Elton e o seu amigo Bernie (Jamie Bell, excelente) surge justamente para mostrar a face egocêntrica\hostil do biografado. Mais do que estreitar o sólido elo entre os dois, Fletcher é perspicaz ao usar a lucidez do compositor como uma espécie de contraste, como o portador da verdade que o pianista demorou demais para enxergar.


Boa parte destas problemáticas soluções narrativas, porém, são atenuadas pela gigantesca performance de Taron Egerton. No trabalho da sua carreira, o jovem ator surpreende ao interiorizar os pesados conflitos sentimentais de Elton John com rara propriedade. Como se não bastasse a nítida semelhança física entre os dois, a estrela de Kingsman (2014) abraça a irreverência espetacular proposta por Dexter Fletcher com muita energia, conseguindo ir bem além da figura do ‘showman’ ao encontrar a voz reprimida do músico. Tudo soa mais real graças ao trabalho de Egerton. Uma atuação monumental potencializada no momento em que o ator solta a voz nos já elogiados impressionantes números musicais. Aqui a simples dublagem não tem vez. Com um timbre vocal próximo ao do cantor e muito alcance, Egerton traduz com maestria o vigor eclético do artista nos palcos, nos presenteando com uma performance completa. Uma atuação que, verdade seja dita, não seria tão espetaculoso sem o primoroso trabalho da equipe de direção de arte\figurino. Mais do que simplesmente reproduzir o clima dos anos 1970 e 1980, o longa resgata alguns dos “trajes” mais icônicos de Elton John neste período, o que só ajuda a estreitar o senso de identificação entre o público e o personagem.


Embebecido pela energia vital de Elton John, Rocketman é um espetáculo surpreendentemente intimista. Por trás do glamour, da explosão de cores, da efervescência visual, dos magnéticos números musicais e da reverente trilha sonora (Matthew Margeson), o que vemos é um retrato por vezes desconcertante de um homem ofuscado pelo seu alter-ego estrelar. Um relato ora nostálgico e fascinante, ora amargurado e triste sobre um artista em busca do seu eu, em busca da fagulha apagada por uma rotina de excessos e desilusões. Um outro lado da fama revelado pela potente voz de Elton John.

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