Antes de mais nada, não estou
entre aqueles que detestam Bohemian Rhapsody. A minha crítica sobre o longa não
me deixa mentir. É um filme com inúmeras virtudes e também pecados. O maior
deles, fora a bagunça na produção, ficou pela maneira reverente com que a obra
abordou a vida do seu astro, o catártico Freddie Mercury. Os altos e baixos do
Queen foram diluídos numa mistura regada por empolgantes ‘hits’, ‘fan-service’
e inúmeras conveniências narrativas. No fim, bastou a poeira do show baixar
para o sentimento de potencial desperdiçado ficar evidente. Uma sensação, a meu
ver, potencializada por Rocketman, uma cinebiografia capaz de expurgar os
fantasmas mais íntimos de Elton John com peso, energia e originalidade. Mesmo
com algumas problemáticas soluções narrativas, o longa 100% dirigido por Dexter
Fletcher (o escolhido para tocar o barco em Bohemian Rhapsody após a polêmica
dispensa de Bryan Singer) compensa ao investigar a persona desta estrela da
música sem grande pudor. O que vemos aqui é um bio com a essência do
biografado. Um musical capaz de narrar a história de um tímido e genial músico
britânico sob a perspectiva glamourosa\fantasiosa que ajudou a consagra-lo. E
isso sem nunca distorcer a realidade dos fatos.
Numa sacada brilhante, Rocketman
é perspicaz ao sustentar todo o filme numa sessão de terapia em uma clínica de
reabilitação. Um lugar em que as pessoas realmente precisam se abrir para
superar o vício. Um ambiente em que todos buscam compreender e serem
compreendidos. Um espaço naturalmente intimista que surge como o agente
catalisador da trama. Enquanto se concentra na figura de Elton John (Taron
Egerton), na verdade, o argumento assinado por Lee Hall é assertivo ao
encontrar a voz do biografado e ao devassar a sua vida pessoal ao longo das
envolventes duas horas de projeção. Logo na primeira cena nos deparamos com um
homem quebrado, em frangalhos, engolido pelo personagem que ajudou a criar. Um
astro como poucas vezes vimos. Disposto a se abrir, a contar a sua verdade dos
fatos. Um processo de análise que nasce de dentro para fora. Sob a irreverente
óptica musical proposta por Dexter Fletcher nos deparamos com o turbilhão de
emoções que desde cedo sempre tomou conta da vida de Elton. Conhecemos a
criança carente de afeição paterna, o adolescente obrigado a conviver com a
deterioração do seu núcleo familiar, o rapaz reprimido às avessas com a sua
própria sexualidade, o jovem repentinamente engolido pelo mundo da fama, o
adulto “consumido como um foguete” por quase todos ao seu redor, a estrela
solitária, o errático dependente químico, o astro egoísta. Por mais que os
magníficos números musicais surjam como uma espécie de atenuante, é difícil não
se sentir desconfortável com o peso deste relato, com a falta de sentido nas
coisas, com o sentimento de vazio escondido nas plumas e das lantejoulas.
Rocketman acerta em cheio ao focar na fase mais caótica\deteriorante de Elton
John e, a partir deste recorte de três décadas, escancarar o quão dilacerante
pode ser o mundo do showbiz.
Uma abordagem por si só poderosa,
mas que cresce graças a sagacidade de Dexter Fletcher em trazer o elemento
fantástico para o centro da trama. Numa proposta quase fabulesca, o criativo
cineasta invade o repertório de Elton John de forma poucas vezes vistas dentro
do gênero, extraindo o significado das suas próprias músicas em números
empolgantes, imponentes e sempre intimistas. Um retrato, volto a frisar, com a
cara desta icônica estrela da música. A literalidade é substituída pela poesia
musical. Em cada um dos imagéticos números musicais Fletcher extrai um pouco
mais da identidade de Elton. Não existe espaço para o ‘fan-service’ ou para
referências gratuitas. As canções aqui passam a ser parte não da jornada
profissional do músico, mas da sua jornada pessoal. O realizador não parece
preocupado com a ordem dos fatos. Nem poderia. Na lógica quase surreal do
filme, Elton está se expondo como nunca havia feito. As músicas refletem o
estado de espírito do músico. A sua genialidade autodidata, o seu grito de
libertação, a sua ascensão midiática, a sua confusão sentimental, a sua
devastação, a sua tristeza, a sua dor, os seus lapsos e também a sua
resiliência. Fletcher é particularmente cuidadoso ao ressignificar as
composições, ao transforma-las no mais íntimo espelho de um homem devasso e
devassado. Como não citar, por exemplo, o efeito doce causado pela sensível (e
fiel aos fatos) performance em Your Song, ou o clima de catarse ocasionado na
fantástica sequência da “gravidade zero” em Crocodile Rock, ou então a euforia
perigosa de Pinball Wizard, a solidão embutida em Tiny Dancer, a raiva que
abastece Rocketman, a inércia que impregna Bennie and the Jets. Com um senso de
plasticidade fascinante, Fletcher viaja pelos (poucos) altos e (muitos) baixos
desta fase da vida de Elton John com vigor, permitindo que o público enxergue o
pior e o melhor de um homem consumido pelos sentimentos citados acima.
Nos momentos em que se vê
obrigada a se distanciar da figura de Elton, entretanto, Rocketman repete
alguns dos piores “deslizes” de Bohemian Rhapsody. Por mais que a narrativa em
primeira pessoa atenue parte destes problemas, o argumento geralmente peca pela
unidimensionalidade quando decide dar voz ao outro lado. Aqueles que, ao longo
dos anos, se tornaram parte do problema. O que fica bem claro, em especial, no
momento em que a figura de John Reid surge em cena. Embora, volto a frisar,
parte desta representação quase maquiavélica possa ser atribuída ao senso de
amargura do interlocutor desta história, Dexter Fletcher exagera nas tintas ao
criar um personagem detestável, ardiloso e visualmente soturno. Um desnível
acentuado pela gélida performance de Richard Madden. Ainda que, a rigor, o
argumento sustente essa visão com situações que realmente aconteceram, a
complexa relação amorosa\profissional entre ele e Elton é prejudicada pela
maneira com que o roteiro reduz todo o conflito à nefasta presença de Reid. Um
problema que, aliás, se repete na igualmente complicada interação entre Elton e
a sua expansiva mãe. Se por um lado a carismática Bryce Dallas Howards rouba a
cena ao capturar os humanos anseios de uma figura materna errática e um tanto
quanto ferina, por outro o roteiro limita o efeito dramático causado por ela ao
gradativamente reduzi-la a figura da megera sem coração. Pode até ser que em
alguma fase da sua vida Elton tenha a enxergado desta forma, mas o longa, ao
acentuar os traços mais negativos dela, acaba por “protegê-lo”
desnecessariamente. Como se o músico não tivesse parcela de responsabilidade em
tudo isso. A culpa por diversas vezes é terceirizada aqui. Em contrapartida, a
relação entre Elton e o seu amigo Bernie (Jamie Bell, excelente) surge
justamente para mostrar a face egocêntrica\hostil do biografado. Mais do que
estreitar o sólido elo entre os dois, Fletcher é perspicaz ao usar a lucidez do
compositor como uma espécie de contraste, como o portador da verdade que o
pianista demorou demais para enxergar.
Boa parte destas problemáticas
soluções narrativas, porém, são atenuadas pela gigantesca performance de Taron
Egerton. No trabalho da sua carreira, o jovem ator surpreende ao interiorizar
os pesados conflitos sentimentais de Elton John com rara propriedade. Como se
não bastasse a nítida semelhança física entre os dois, a estrela de Kingsman
(2014) abraça a irreverência espetacular proposta por Dexter Fletcher com muita
energia, conseguindo ir bem além da figura do ‘showman’ ao encontrar a voz
reprimida do músico. Tudo soa mais real graças ao trabalho de Egerton. Uma
atuação monumental potencializada no momento em que o ator solta a voz nos já
elogiados impressionantes números musicais. Aqui a simples dublagem não tem
vez. Com um timbre vocal próximo ao do cantor e muito alcance, Egerton traduz
com maestria o vigor eclético do artista nos palcos, nos presenteando com uma
performance completa. Uma atuação que, verdade seja dita, não seria tão
espetaculoso sem o primoroso trabalho da equipe de direção de arte\figurino.
Mais do que simplesmente reproduzir o clima dos anos 1970 e 1980, o longa
resgata alguns dos “trajes” mais icônicos de Elton John neste período, o que só
ajuda a estreitar o senso de identificação entre o público e o personagem.
Embebecido pela energia vital de
Elton John, Rocketman é um espetáculo surpreendentemente intimista. Por trás do
glamour, da explosão de cores, da efervescência visual, dos magnéticos números
musicais e da reverente trilha sonora (Matthew Margeson), o que vemos é um
retrato por vezes desconcertante de um homem ofuscado pelo seu alter-ego
estrelar. Um relato ora nostálgico e fascinante, ora amargurado e triste sobre
um artista em busca do seu eu, em busca da fagulha apagada por uma rotina de
excessos e desilusões. Um outro lado da fama revelado pela potente voz de Elton
John.
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