sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Crítica | Campo do Medo

Menos medo, mais angústia

Campo do Medo começa como algumas das inúmeras obras de Stephen King. Um casal (aqui de irmãos) é surpreendido no meio do nada pela voz de um menino dentro de um matagal. Numa sucessão de decisões estúpidas, eles decidem se embrenhar na plantação para resgatar o garoto, o que logo se revela uma péssima escolha. No papel, nada de muito novo dentro da seara de adaptações deste aclamado escritor. A diferença, aqui, está na execução. Ao contrário de muitas das obras inspiradas nos contos de King, In The Tall Grass (no original) ganha um desenvolvimento à altura do seu ‘plot’, conseguindo enervar e instigar à medida que invade este labiríntico cenário. E muito se deve a angustiante direção de Vincenzo Natali. Responsável por uma das mais influentes pérolas ‘cult’ dos anos noventa, o singular Cubo (1997), o realizador norte-americano volta a mostrar categoria ao extrair a tensão de um único ambiente, compensando a superficial veia dramática do texto ao arquitetar um thriller de horror intuitivo, atmosférico e narrativamente dinâmico.



Para quem não conhece, em Cubo Vincenzo Natali narra a jornada de um grupo de desconhecidos isolados numa misteriosa instalação. Uma espécie de avô da franquia Jogos Mortais, o longa obriga os personagens a encontrar a solução para alguns pequenos ‘puzzles’ e pistas que indicassem a eles uma das quatro saídas certas. A cada nova sala os desafios ficam mais “complexos” e as consequências mais dolorosas. É isso. Sem respostas, sem porquês, sem explicações. A sobrevivência é o grande objetivo. Uma dinâmica que, de certa forma, é replicada em Campo do Medo e se torna um dos seus principais trunfos. Indo de encontro ao exagerado didatismo dos filmes do gênero, Natali não subestima a inteligência do público ao tornar tudo o mais intuitivo possível. Não existe pausa para grandes explanações. O dinamismo narrativo só ajuda a potencializar o clima de tensão. Embora ofereça o bastante para que possamos criar um sólido vínculo com os protagonistas, o foco do realizador está na relação deles com o cenário, na reação deles aos enigmáticos “eventos” que os cercam. Também responsável pelo roteiro, Natali é sucinto ao estabelecer o ‘modus operandi’ do tal campo, ao mostrar como a ordem natural dos fatos não se aplica ali. As quebras de expectativas surgem com naturalidade, assim como a crescente sensação de angústia em torno da tentativa de fuga dos personagens.


Na verdade, Campo do Medo fisga ao praticamente brincar com as noções de tempo e espaço dentro deste labirinto verde. O foco não está só no mistério em torno do matagal, na entidade que o comanda, mas na dinâmica dos personagens dentro dele. Sem querer revelar muito, Vincenzo Natali é cuidadoso ao desenvolver a estrutura cíclica do roteiro. A objetividade com que ele trata\monta a linha narrativa ajuda a descomplicar as coisas. No momento em que as peças parecem já ter se encaixado, o cineasta não foge da raia ao bagunça-las mais uma vez, conseguindo criar uma atmosfera de tensão sem necessariamente apelar às convenções do gênero. As respostas não são verbalizadas, mas expostas. Como disse acima, In The Tall Grass causa muito mais angústia do que medo. O que, diga-se de passagem, faz todo o sentido, principalmente quando entendemos do que os protagonistas estão tentando escapar. Sem grandes firulas estéticas, Natali coloca o espectador no olho do furacão, investindo em enérgicos planos fechados e desconfortáveis planos subjetivos. A sensação de que estamos sendo observados é incomoda, assim como o gradativo clima de caos. Eu gosto, em especial, da forma intensa com que o diretor explora a sensação de estar perdido. Por mais que o viés fantástico salte aos olhos, os sentimentos experimentados pelos personagens são reais, são reconhecíveis. É fácil se colocar na situação deles.


Impecável ao explorar o aspecto sensorial da trama, Vincenzo Natali é igualmente sucinto ao investigar os mistérios em torno do lugar. Mais uma vez com extremo dinamismo, o realizador não parece interessado em dar respostas óbvias. Talvez por consciência de que tinha em mãos uma premissa para lá de requentada, o realizador se distancia dos clichês quanto ao comentário sobre o fanatismo religioso ao tornar tudo o mais hermético possível. O foco está no elemento tribal, na ameaça que vem da terra, no destino dos personagens e nos motivos deles estarem ali. Por mais que, à medida que a trama avança, Natali se renda à personificação do antagonista, o mal que reside ali está muito além da sua figura. Na transição para o último ato, inclusive, o realizador aquece o clima de desconforto ao explorar também o horror gráfico, confiando muito mais na força das suas imagens do que no didatismo usual. O resultado é um clímax genuinamente dilacerante. Uma pena que, no momento em que decide focar no arco dramático dos seus personagens, Campo do Medo perca tanto da sua energia vital. Embora o elenco cumpra o seu papel com competência, a brasileira Laysla de Oliveira, o pequeno Will Buie Jr. e o versátil Patrick Wilson, em especial, injetam dor, inocência e insanidade à trama, Natali não consegue ir além da superfície quanto ao drama familiar proposto pelo roteiro. Por mais que a crise entre o casal de irmãos e o cunhado (Harrison Gilbertson) “alimente” de certa forma a estrutura cíclica do ‘plot’, o realizador tenta em meio ao caos desenvolver uma forçada rixa, culminando em soluções repentinas e totalmente deslocadas. Nas entrelinhas, porém, Natali é criativo ao embutir na trama um inteligente comentário sobre a responsabilidade da paternidade, usando o fantástico para sobre um mal extremamente reconhecível. Do círculo vicioso causado pelo abandono paterno nasce a excruciante jornada dos protagonistas. 


Com inúmeros predicados narrativos e também estéticos, a imersiva fotografia em tons azulados de Craig Wrobleski, por sinal, ajuda a potencializar a sensação de perigo iminente, Campo do Medo mantém o nível das adaptações Netflix do mestre Stephen King ao valorizar o aspecto sensorial da premissa. De volta aos holofotes após um longo período longe de projetos mais autorais, Vincenzo Natali consegue ir além das convenções do gênero ao extrair o terror da vulnerabilidade dos seus personagens e da relação deles com o inóspito cenário em que estão inseridos.

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