Campo do Medo começa como algumas
das inúmeras obras de Stephen King. Um casal (aqui de irmãos) é surpreendido no
meio do nada pela voz de um menino dentro de um matagal. Numa sucessão de
decisões estúpidas, eles decidem se embrenhar na plantação para resgatar o garoto,
o que logo se revela uma péssima escolha. No papel, nada de muito novo dentro
da seara de adaptações deste aclamado escritor. A diferença, aqui, está na
execução. Ao contrário de muitas das obras inspiradas nos contos de King, In
The Tall Grass (no original) ganha um desenvolvimento à altura do seu ‘plot’, conseguindo
enervar e instigar à medida que invade este labiríntico cenário. E muito se
deve a angustiante direção de Vincenzo Natali. Responsável por uma das mais
influentes pérolas ‘cult’ dos anos noventa, o singular Cubo (1997), o
realizador norte-americano volta a mostrar categoria ao extrair a tensão de um
único ambiente, compensando a superficial veia dramática do texto ao arquitetar
um thriller de horror intuitivo, atmosférico e narrativamente dinâmico.
Para quem não conhece, em Cubo
Vincenzo Natali narra a jornada de um grupo de desconhecidos isolados numa
misteriosa instalação. Uma espécie de avô da franquia Jogos Mortais, o longa obriga
os personagens a encontrar a solução para alguns pequenos ‘puzzles’ e pistas
que indicassem a eles uma das quatro saídas certas. A cada nova sala os
desafios ficam mais “complexos” e as consequências mais dolorosas. É isso. Sem
respostas, sem porquês, sem explicações. A sobrevivência é o grande objetivo.
Uma dinâmica que, de certa forma, é replicada em Campo do Medo e se torna um
dos seus principais trunfos. Indo de encontro ao exagerado didatismo dos filmes
do gênero, Natali não subestima a inteligência do público ao tornar tudo o mais
intuitivo possível. Não existe pausa para grandes explanações. O dinamismo narrativo
só ajuda a potencializar o clima de tensão. Embora ofereça o bastante para que
possamos criar um sólido vínculo com os protagonistas, o foco do realizador
está na relação deles com o cenário, na reação deles aos enigmáticos “eventos”
que os cercam. Também responsável pelo roteiro, Natali é sucinto ao estabelecer
o ‘modus operandi’ do tal campo, ao mostrar como a ordem natural dos fatos não
se aplica ali. As quebras de expectativas surgem com naturalidade, assim como a
crescente sensação de angústia em torno da tentativa de fuga dos personagens.
Na verdade, Campo do Medo fisga ao
praticamente brincar com as noções de tempo e espaço dentro deste labirinto
verde. O foco não está só no mistério em torno do matagal, na entidade que o
comanda, mas na dinâmica dos personagens dentro dele. Sem querer
revelar muito, Vincenzo Natali é cuidadoso ao desenvolver a estrutura cíclica do
roteiro. A objetividade com que ele trata\monta a linha narrativa ajuda a
descomplicar as coisas. No momento em que as peças parecem já ter se encaixado, o cineasta não foge da raia ao bagunça-las mais uma vez, conseguindo
criar uma atmosfera de tensão sem necessariamente apelar às convenções do
gênero. As respostas não são verbalizadas, mas expostas. Como disse acima, In
The Tall Grass causa muito mais angústia do que medo. O que, diga-se de
passagem, faz todo o sentido, principalmente quando entendemos do que os
protagonistas estão tentando escapar. Sem grandes firulas estéticas, Natali
coloca o espectador no olho do furacão, investindo em enérgicos planos fechados
e desconfortáveis planos subjetivos. A sensação de que estamos sendo observados
é incomoda, assim como o gradativo clima de caos. Eu gosto, em especial, da
forma intensa com que o diretor explora a sensação de estar perdido. Por mais
que o viés fantástico salte aos olhos, os sentimentos experimentados pelos
personagens são reais, são reconhecíveis. É fácil se colocar na situação deles.
Impecável ao explorar o aspecto
sensorial da trama, Vincenzo Natali é igualmente sucinto ao investigar os
mistérios em torno do lugar. Mais uma vez com extremo dinamismo, o realizador
não parece interessado em dar respostas óbvias. Talvez por consciência de que
tinha em mãos uma premissa para lá de requentada, o realizador se distancia dos
clichês quanto ao comentário sobre o fanatismo religioso ao tornar tudo o mais
hermético possível. O foco está no elemento tribal, na ameaça que vem da terra,
no destino dos personagens e nos motivos deles estarem ali. Por mais que, à
medida que a trama avança, Natali se renda à personificação do antagonista, o
mal que reside ali está muito além da sua figura. Na transição para o último
ato, inclusive, o realizador aquece o clima de desconforto ao explorar também o
horror gráfico, confiando muito mais na força das suas imagens do que no
didatismo usual. O resultado é um clímax genuinamente dilacerante. Uma pena
que, no momento em que decide focar no arco dramático dos seus personagens,
Campo do Medo perca tanto da sua energia vital. Embora o elenco cumpra o seu
papel com competência, a brasileira Laysla de Oliveira, o pequeno Will Buie Jr.
e o versátil Patrick Wilson, em especial, injetam dor, inocência e insanidade à
trama, Natali não consegue ir além da superfície quanto ao drama familiar
proposto pelo roteiro. Por mais que a crise entre o casal de irmãos e o cunhado
(Harrison Gilbertson) “alimente” de certa forma a estrutura cíclica do ‘plot’, o realizador tenta em meio ao caos desenvolver uma forçada rixa, culminando em soluções
repentinas e totalmente deslocadas. Nas entrelinhas, porém, Natali é criativo ao embutir na trama um inteligente comentário sobre a responsabilidade da paternidade, usando o fantástico para sobre um mal extremamente reconhecível. Do círculo vicioso causado pelo abandono paterno nasce a excruciante jornada dos protagonistas.
Com inúmeros predicados
narrativos e também estéticos, a imersiva fotografia em tons azulados de Craig
Wrobleski, por sinal, ajuda a potencializar a sensação de perigo iminente, Campo
do Medo mantém o nível das adaptações Netflix do mestre Stephen King ao valorizar
o aspecto sensorial da premissa. De volta aos holofotes após um longo período
longe de projetos mais autorais, Vincenzo Natali consegue ir além das
convenções do gênero ao extrair o terror da vulnerabilidade dos seus
personagens e da relação deles com o inóspito cenário em que estão inseridos.
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