sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Crítica | El Camino: A Breaking Bad Movie (Um Filme Breaking Bad)

Por conta própria

Breaking Bad é um dos maiores fenômenos culturais desta década. Fato. Em cinco temporadas, o criador Vince Gilligan nos brindou com uma série de máfia moderna e irônica que se tornou peça chave na revolução da TV nos EUA. O “professor” de química Walter White (Bryan Cranston) virou um ícone pop tão imponente quanto qualquer grande vilão do cinema. Sua distorcida saga de ambição\poder em busca do Sonho Americano permitiu que o realizador tocasse em mazelas urbanas extremamente reconhecíveis. O que, de fato, só ajudou a estreitar o elo entre público e personagens. Uma série sobre homens e mulheres comuns corrompidos pelo meio em que viviam\se inseriram. E uma das grandes “vítimas” de Breaking Bad foi Jesse Pinkman (Aaron Paul). Aos olhos de Gilligan, o traficante ‘junkie’ sempre foi o elo mais fraco da história. O vício era o menor dos problemas. Ao contrário do seu tutor, o jovem assistente nunca mostrou estômago para aquilo. A sua dependência, aqui, era sentimental. Afetiva. Jesse era vítima da sua inocência, da sua estupidez. O resultado, bem, vocês sabem. Ninguém sofreu\perdeu tanto em BB do que ele. O que faz de El Camino: A Breaking Bad Movie uma obra significativa. Muito mais do que um mero epílogo cinematográfico, o longa escrito e dirigido por Gilligan retorna ao universo da série para entregar o desfecho que o personagem merecia, distanciando o agora protagonista da sombra de Heisenberg numa produção com o padrão Breaking Bad de qualidade. Ou melhor, de cinismo. 



Na verdade, El Camino poderia ser facilmente um episódio de Breaking Bad com duas horas de duração. O que, verdade seja dita, não é demérito algum. Muito pelo contrário. Ao longo das cinco temporadas, Vince Gilligan sempre prezou pelo esmero visual da série. As limitações orçamentárias nunca impediram o realizador de tirar do papel uma obra com uma assinatura singular e imponente. Como se não bastassem os óbvios predicados narrativos, Gilligan usava a fotografia\design de produção à serviço da sua história, extraindo sentido de praticamente tudo. Cor, cenários, elementos cênicos. É fácil encontrar na internet grandes artigos sobre a forma com que a palheta de cores refletia o estado de espírito dos personagens num episódio, ou interpretações filosóficas acerca de capítulos como o divisivo Fly. Em outras palavras, chamar El Camino de um episódio estendido de Breaking Bad não reduz em nada o apelo cinematográfico do longa. Um traço de qualidade incrementado (mais uma vez) pela força do texto de Gilligan. A ideia, aqui, não é reinventar a roda. Não é atrelar algo de novo ou expandir o universo BB. Com simplicidade e o seu usual pulso narrativo, o diretor começa pelo fim ao acompanhar justamente aquilo que o público queria ver, a desesperada fuga de Jesse em busca de um norte. Isso, volto a frisar, com o padrão Breaking Bad de comicidade. Sem nunca descaracterizar a essência do personagem, que, mesmo após tanto sofrimento, segue com as mesmas falhas e virtudes, Gilligan transita entre gêneros contrastantes com rara categoria, testando as nossas expectativas sempre que possível ao permitir que Jesse finalmente andasse por conta própria. O que, conhecendo bem o personagem, pode não ser uma grande notícia para ele.


Disposto a responder a grande pergunta deixada pelo episódio final, El Camino é astuto ao revelar o tamanho do estrago causado pelo cativeiro na identidade de Jesse Pinkman. Mais do que simplesmente aparar arestas, Vince Gilligan usa o passado para refletir sobre o presente. Nos momentos em que é bem utilizado, os flashbacks ajudam tanto a situar o público quanto ao emocional do protagonista e a sua transformação, quanto a nortear as suas decisões. Embora, ao contrário da série, o realizador abuse ora e vez das conveniências narrativas, as soluções encontradas por ele são inteligentes e fazem todo sentido dentro do mundo Breaking Bad. Em busca de um futuro, Jesse se vê obrigado a se expor, a sua nova face, o seu novo eu pós-tragédia. É legal ver, por exemplo, a sagacidade com que Gilligan usa os gatilhos emocionais na construção do personagem. Sim, construção, porque na última temporada de Breaking Bad enxergamos somente o seu sofrimento, não o estrago causado por ele. O showrunner devia isso a Jesse. Como esperado, ele mudou, criou uma casca. O amadurecimento outrora implícito agora pode ser visto nas suas atitudes, nas suas decisões. A todo momento, porém, Gilligan nos deixa em dúvidas sobre se isso será o bastante para ele sobreviver. Nada mudou em Breaking Bad. Um passo em falso e o que era ruim pode ficar pior. Tudo segue muito tênue, muito tortuoso. O acaso é um vilão impiedoso. Até porque, por trás das cicatrizes, da raiva e do olhar obstinado, estava Jesse Pinkman. O próprio. Por mais que a trama capriche na escalada de tensão, culminando num clímax digno de um excelente faroeste, o realizador ousa ao trocar a banalização da ação pelo estudo de personagem. E ao extrair dele os elementos mais reconhecíveis de Breaking Bad. O humor fora de momento. O senso de perigo\consequência. O vasto leque de personagens cativantes. Sim, El Camino é uma produção majoritariamente dramática, mas, assim como a série, encontra brechas para a comédia de erros, para o suspense, para a ação.


Um predicado potencializado pela gigantesca performance de Aaron Paul. De volta ao personagem que o consagrou após quase seis anos, o versátil ator absorve o turbilhão de emoções enfrentados por Jesse com extrema maturidade. Bastam poucas cenas para percebermos que estamos diante de um homem mudado. Quebrado. Devastado pela tortura física\emocional imposta pelos seus algozes. Da dor nasce um homem furioso, focado como nunca, cansado de ser um mero peão no tabuleiro dos outros. É fácil traçar paralelos entre o Jesse sobrevivente e o próprio Heisenberg. Em várias passagens Paul consegue ser ameaçador como nunca foi dentro da série. O que faz todo o sentido. Gilligan, porém, sabe que isso não deveria definir o seu personagem. E por trás da casca criada é tão fácil quanto enxergar o velho Jesse Pinkman. O jovem com um péssimo ‘timing’ para o perigo, azarado, por vezes (muitas!) estúpido e frágil. O tipo de performance de um ator que conhece profundamente o seu personagem. Uma pena que, sabe-se lá porque, Gilligan exclua da equação o fator dependência química. Um dos clássicos problemas do protagonista, o vício de Jesse é tratado com descuido pelo roteiro, contrastando com a forma profunda com que o longa explora os demais traumas do personagem. Por falar em deslizes narrativos, em vários momentos El Camino se rende ao ‘fan service’ pelo ‘fan service’. Bem utilizado, por exemplo, quando foca na complexa relação entre Jesse e o perigoso Todd (Jesse Plemons, magnífico como de costume), os flashbacks se tornam um tanto gratuitos em diversas passagens, dialogando com o passado numa clara tentativa de basicamente resgatar alguns dos mais icônicos personagens da série. O que, embora passe longe de prejudicar o ritmo da obra como um todo, surge como um “freio” em algumas pequenas passagens mais tensas. Ao menos Gilligan encontra nestas pequenas "escapadas" a chance de refletir com uma bem-vinda dose de ironia sobre o futuro destes personagens e o preço pago por cada um deles.


Hermético e hipnotizante (as duas horas de trama passaram num piscar de olhos), El Camino pode não ser tão empolgante quanto os melhores momentos da série, mas é tão complexo e envolvente quanto. Vince Gilligan e Aaron Paul retornam ao universo Breaking Bad num filme necessário, com muito a dizer não somente sobre Jesse Pinkman, mas, a partir da sua tragicômica óptica, sobre o destino de um grupo de personagens inebriados pela ganância e pela insaciável sede de poder.

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