quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Especial | HAHAHAHAHAHAHA... Os Coringas do Cinema


Um dos vilões mais icônicos da história da Nona Arte, o Coringa é um personagem provocante. E infelizmente cada vez mais reconhecível. Um antagonista cujo a sua anárquica visão de mundo dialoga com a revolta do público. Um produto de um meio hostil, injusto, violento, banal, ignorante. O Coringa é um personagem universal e atemporal. É fácil se identificar com ele. E também perigoso. Por trás dos seus dolorosos e realistas traumas existe um discurso distorcido, tão doentio quanto a sociedade em que habitamos. A chegada do aclamado novo Joker, inclusive, ligou um compreensível sinal de alerta. Por mais que a nova versão surja como uma espécie de espelho da toxicidade dos grandes centros urbanos, o reflexo pode trazer à tona sentimentos nada positivos. Acionar gatilhos que não devem de maneira alguma devem ser incentivados. A culpa, é preciso deixar bem claro, não está no personagem. Nem tão pouco nas obras em que eles nasceram. Mas na maneira com que reagimos a ele. O enxergamos. Em meio as crescentes críticas envolvendo a abordagem do longa de Todd Phillips sobre a mente doentia do vilão, a Warner veio a público e foi taxativa ao defender que não há espaço para a glamourização no novo Coringa. “Não se engane: nem o personagem fictício Joker, nem o filme, é um endosso de qualquer tipo de violência no mundo real. Não é a intenção do filme, dos cineastas ou do estúdio manter esse personagem como herói”. Uma resposta que pode até parecer desnecessária, principalmente por se tratar de uma obra ficcional, mas não é. Coringa segue tocando em feridas abertas. Segue causando discussões. Segue incitando o público. Com a estreia de Joker e o frisson em torno da elogiada performance de Joaquin Phoenix, neste artigo decidi relembrar a trajetória deste icônico personagem no Cinema e a tênue relação de amor e ódio causado por ele.

- Coringa “zoeiro” (César Romero) – Batman: O Filme (1966)


Aos olhos de hoje, o Batman dos anos sessenta pode soar como uma piada de mal gosto. Tudo era muito caricato, muito colorido, muito inofensivo. O clima soturno\furtivo das clássicas HQ’s foi substituído pela galhofa. O Batman de Adam West, porém, diz muito sobre a sua época. No auge da Guerra Fria e de uma pesada corrente conservadora, os EUA viviam tempos turbulentos. Nos grandes centros urbanos a luta por igualdade racial gerava uma onda de violência. A Guerra do Vietnã gerava ainda mais revolta. O discurso pacifista\hippie ganhava cada vez mais força. Neste cenário, é fácil entender o viés escapista da série Batman e Robin (1966-1968) e óbvio de Batman: O Filme (1966). Os Estados Unidos ansiavam pela luz, não pelas sombras. Inserido num contexto lúdico, o afetado Coringa de César Romero se tornou um dos elementos chave desta produção. Embora fiel a raiz anárquica do antagonista, o cativante ator criou um Joker muito mais sacana, debochado, extravagante. Um personagem sem grandes motivos disposto a criar o caos e (claro!) derrotar o Batman. Na verdade, é possível enxergar no Coringa de Romero traços que viriam a ser recorrentes nos demais Coringas. Em especial a irreverência, a risada característica, a capacidade de tratar o humor\violência como uma válvula de escape. O que faz deste Coringa “zoeiro” uma peça extremamente influente no desenrolar do universo Batman.

- Coringa “frustrado” (Jack Nicholson) – Batman (1989)


Duas décadas depois, o Batman de Bob Kane finalmente ganharia forma na tela grande em 1989. Sob a batuta gótica de Tim Burton, vimos Gotham nascer das sombras. Tudo era muito soturno. Muito ‘dark’. A violência imperava. Do topo dos vertiginosos prédios o Cavaleiro das Trevas observava tudo. Ele era basicamente a última grande linha de defesa. A sua presença, porém, servia como o estopim para o surgimento de vilões igualmente obstinados. O Batman de Michael Keaton é um dos meus favoritos. Ele é agressivo, implacável, inteligente. Se eu tivesse que defini-lo em uma palavra, essa seria convicção. Um Bruce Banner menos traumatizado e mais disposto ao sacrifício. Como um verdadeiro nêmesss, o icônico Coringa de Jack Nicholson surge como uma das suas versões mais frustradas. Por trás da extravagância visual e artística, existe um homem com baixa-estima, amargurado, tóxico, rancoroso diante da presença maiúscula do seu oponente. O Joker de Nicholson revela uma notória instabilidade emocional. Os seus traumas são menos pessoais e mais afetivos. Ele não gosta da sua aparência e isso se reflete na sua insana personalidade. Como se, de certa forma, a maquiagem, os ternos coloridos e as agressivas traquinagens fossem o seu escudo. A psicopatia esconde a frustração de um homem cansado de se sentir diminuído perante o seu algoz. Só em alguns momentos o enxergamos realmente. O que, graças a performance de Nicholson, já é o bastante. 

- Coringa “anarquista” (Heath Ledger) – Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008)


E chegamos ao que considero o melhor Coringa da Sétima Arte. Quer dizer, até agora... Mais uma vez fruto da sua época, o Coringa anarquista de Heath Ledger dialoga muito mais com o Batman de Michael Keaton do que com o Joker de Jack Nicholson. Por mais estranho que isso possa soar, temos aqui o Coringa mais “cerebral” do cinema. Tal qual o Homem-Morcego ele decidiu transformar os seus traumas numa causa. Existe um sentido por trás do caos. O seu constante flerte com o acaso apenas máscara a sua forte convicção. O Coringa de Heath Ledger não quer aniquilar o Batman. Nem tão pouco fortuna. Nada disso. Eles são produtos de um mesmo meio. Filhos da tragédia. Herdeiros de um mundo vil. Embora o passado do palhaço sociopata não esteja no foco de O Cavaleiro das Trevas, sempre que o vilão se refere a ele enxergamos a sua raiva, o seu ódio reprimido. A intenção do Coringa é provar algo. É mostrar que não está sozinho no mundo. Que até o mais idealista dos homens é capaz de ser corrompido. Ou melhor, corroído. Com uma performance monumental, o saudoso Heath Ledger invadiu a ardilosa psique do seu Joker como poucas vezes vimos. Por mais que a abordagem pés no chão de Christopher Nolan confira uma aura urbana mais ameaçadora ao antagonista, Ledger transformou a esquisitice em charme. A sua presença cênica é inigualável. Talvez pela primeira vez num grande arco o Coringa realmente assume o controle da situação. O resultado é o nascimento instantâneo de um ícone pop. Um agente do caos feroz e absurdamente carismático capaz de roubar o show sem grande dificuldade.

- Coringa “lunático” (Michael Emerson) – Batman: Cavaleiro das Trevas (2013)


Versão animada do clássico de Frank Miller, Batman: Cavaleiro das Trevas conseguiu capturar com peso e complexidade o clima sujo do material fonte. Gotham está tomada pela desesperança. Após anos perseguidos, os super-heróis saíram de cena. Uma década depois o estrago era gigante. Gangues deixavam rastro de sangue e violência por onde passavam. Os vilões deixaram de ter um rosto. Cansado de não reagir, Batman sai das sombras da aposentadoria disposto a restabelecer a ordem. O Bruce Banner de Frank Miller é um verdadeiro tanque movido pelos seus traumas. O peso da idade não parece fazer tanta diferença. Pelo contrário. Ele está revigorado, imparável, agressivo. Num cenário em que o Super-Homem virou uma arma de guerra contra os soviéticos, ele se torna a improvável última linha de defesa. Um ‘comeback’ que obviamente reascende a chama do seu principal arqui-inimigo. Em estado catatônico após perder aquele que o motivava, o Coringa decide também abandonar a inércia com apetite para aposentar de vez o Homem-Morcego. O que vemos é um Joker lunático em estado puro. Igualmente reoxigenado. Um vilão que não precisa de justificativas para ferir. Ele só que chamar a atenção do seu nêmesis. Provar que os dois são produtos de um mesmo meio. Na ardilosa voz de Michael Emerson o Coringa ganha um contexto terrorista e extremamente violento. Uma visão maléfica indiscutivelmente urbana. No final dos anos 1980, os EUA viviam um período de muita turbulência interna. Corrupção, criminalidade, insegurança eram tópicos comuns nos principais noticiários. Neste aspecto, o Coringa de Frank Miller reflete tudo o que de pior a sociedade norte-americana tinha a oferecer na época, principalmente quando o assunto é a sua banal relação com a violência. O Joker, aqui, não precisava de motivos. Ele só queria "correr" atrás do tempo perdido. 

- Coringa “quebrado” (Mark Hamill) – Batman: A Piada Mortal (2016)


De longe uma das versões mais perversas do antagonista, o Coringa de Mark Hamill conseguiu capturar com intensidade a face mais doentia do vilão. Adaptação quase que 100% fiel da obra de Alan Moore, A Piada Mortal versão animada foi buscar no passado de Joker as explicações para que pudéssemos entender o seu verdadeiro estado de espírito. O que culmina numa experiência muito pesada. Embora o ‘plot’ de O Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan tenha muito desta clássica ‘graphic novel’, Alan Moore foi muito mais a fundo na psique do personagem ao trata-lo como alguém genuinamente quebrado. Alguém sem amarras. Sem códigos de conduta. Sem pudor em praticar o mal. Estamos diante de um Coringa que, para mostrar para o Batman o seu ponto, não titubeia em trucidar física e emocionalmente as suas “cobaias”. A sua vingança ganha contornos genuinamente maquiavélicos. Sem nada a perder, apenas as lembranças de um passado doloroso, o palhaço do crime é desenvolvido aqui sob uma perspectiva mais complexa. Uma combinação de insanidade, psicopatia e dor capturado com maestria por Mark Hamill. Após brilhar em Batman: The Animated Series, interpretando o que, para muitos, é a melhor versão do Coringa, o ator de Star Wars retornou a dublagem do vilão ao criar um personagem extremamente ameaçador. E louco. Muito louco. Uma característica que ajudou a potencializar o texto de Alan Moore. O que fica claro, em especial, na provocante última cena, um daqueles momentos ímpares na história da Nona Arte que ainda hoje entram na mesa de debate dos fãs de cultura pop.

- Coringa “fake” (Jared Leto) – Esquadrão Suicida (2016)


Esquadrão Suicida é um filme problemático. Por vezes indefensável. Em sua maioria frustrante. Sou um dos defensores, porém, do Coringa de Jared Leto. O Joker da era do “fake news”. O Coringa ostentador. Um vilão que quer ser (ou parecer) maior do que realmente é. O Coringa de Leto é um gangster psicopata. Mas nada além disso. Assim como o próprio ator, o vilão desta vez se preocupa quase exclusivamente em reproduzir os trejeitos do icônico personagem. A risada. O comportamento insano. O visual extravagante. Como se estivesse tentando emular algo. Por trás das tatuagens, porém, existe um homem decepcionante. Um palhaço triste. O seu Coringa não é engraçado, não é provocador, não é anárquico. Ele não está disposto a sacrificar tanto em prol dos seus objetivos. Tudo muda, no entanto, quando o assunto é a sua pudinzinho Arlequina (Margot Robbie). Um dos poucos pontos positivos do roteiro, a abusiva relação entre os dois dialoga com problemas reconhecíveis. O Coringa de Leto é tóxico, é covarde, é agressivo com aquela que diz amar. Aqui, e só aqui, vemos a sua distorção sentimental. Até porque, quando se distancia deste arco, o longa não consegue se aprofundar em nada. O Coringa de Esquadrão Suicida é oco, um personagem bizarramente superficial. Mas isso não é culpa dele, nem tão pouco de Jared Leto.

- Coringa “carente” (Zack Galifianakis) – Lego: Batman (2017)


Não tenho dúvida em afirmar que Lego: Batman é o melhor filme do Homem-Morcego desde a Trilogia Cavaleiro das Trevas. Disposto a resgatar a curiosa aura escapista dos anos 1960, a animação dirigida por Chris McKay decidiu rir do universo dos super-heróis com inteligência e perspicácia. A brincadeira aqui, entretanto, ganhou ares menos tolos e mais subversivos. Um sentimento fortalecido pelo extraordinário Coringa de Zack Galifianakis. Embora sob um viés lúdico, é interessante ver a sagacidade da animação em dialogar com questões recorrentes do arco do Cavaleiro das Trevas. Assim como em muitas das versões analisadas acima, o Joker quer aqui mais uma vez provar que ele e Batman fazem parte de um mesmo mundo. Que existe uma conexão entre os dois. Um vínculo tratado aqui dentro de um contexto mais afetivo. Após ouvir do seu arqui-inimigo que ele não significava nada, o Coringa vê a sua rotina ganhar um triste novo sentido. A carência é o combustível da vez do vilão. Diante de tamanho desdém “sentimental”, Joker decide provar que Batman estava errado. Que ele era sim importante. No embalo do fantástico trabalho de voz de Galifianakis, o Coringa de Lego: Batman se torna um tipo digno de pena. Mas engraçadíssimo. E também ameaçador. Movido por sentimentos sinceros e ao mesmo tempo distorcidos. Dentro da dinâmica entre herói e vilão, faz sentido que o ódio seja o substituto do amor. O Coringa de Lego: Batman prefere o “falem mal, mas falem de mim” do que o esquecimento. O que, de certa forma, faz sentido neste curioso ‘bromance’.

- Coringa “consumido” (Joaquin Phoenix) – Coringa (2019)


Por fim conhecemos o Coringa mais pés no chão da Sétima Arte. O que talvez explique a preocupação de algumas organizações quanto ao efeito causado pelo personagem junto ao público. Como disse na abertura deste texto, vivemos numa sociedade doente. E somos parte da enfermidade.  Ou vítimas dela. Conscientemente ou não alimentamos algumas das chagas mais impiedosas. A desigualdade, a repressão, a corrupção, a idealização, o desdém, o preconceito, o machismo, a homofobia. Fazendo jus ao espaço permitido por um filme solo, Todd Phillips promete ir a fundo ao expor a causa e a consequência. O Coringa de Joaquin Phoenix é um homem quebrado “remendado”. Após perder tudo ele decidiu reagir. Decidiu romper com a rotina de degradação e humilhação. Um homem que encontrou um sentido na ausência de sentido. Só pelo trailer é fácil construir a jornada do antagonista. O mistério é saber até onde ele está disposto a ir para colocar em prática o seu revanchista plano. Pela reação daqueles que já assistiram, ao que tudo indica o novo Joker irá reproduzir alguns dos males mais reconhecíveis da nossa sociedade. O que liga o sinal de alerta. Filmes como esse mostra que não podemos (ou devemos) glorificar figuras como o Coringa. Indivíduos movidos por sentimentos distorcidos. Corroídos pelo meio em que vivemos. Que não podem de maneira alguma serem subestimados ou abandonados. O problema existe. É real. E filmes como Coringa tem tudo para (se bem interpretados) potencializar uma bem-vinda reflexão.

2 comentários:

Unknown disse...

Uauuu que leitura, resgate fantástico vc fez desse icônico personagem em suas diferentes interpretações. Cara vc é demais👏👏👏👏.

thicarvalho disse...

Valeu, obrigado pelo comentário e pela visita.