Um dos vilões mais icônicos da
história da Nona Arte, o Coringa é um personagem provocante. E infelizmente
cada vez mais reconhecível. Um antagonista cujo a sua anárquica visão de mundo
dialoga com a revolta do público. Um produto de um meio hostil, injusto,
violento, banal, ignorante. O Coringa é um personagem universal e atemporal. É
fácil se identificar com ele. E também perigoso. Por trás dos seus dolorosos e
realistas traumas existe um discurso distorcido, tão doentio quanto a sociedade
em que habitamos. A chegada do aclamado novo Joker, inclusive, ligou um
compreensível sinal de alerta. Por mais que a nova versão surja como uma espécie de espelho da toxicidade dos grandes centros urbanos, o
reflexo pode trazer à tona sentimentos nada positivos. Acionar gatilhos que não
devem de maneira alguma devem ser incentivados. A culpa, é preciso deixar bem
claro, não está no personagem. Nem tão pouco nas obras em que eles nasceram.
Mas na maneira com que reagimos a ele. O enxergamos. Em meio as crescentes
críticas envolvendo a abordagem do longa de Todd Phillips sobre a mente doentia
do vilão, a Warner veio a público e foi taxativa ao defender que não há espaço
para a glamourização no novo Coringa. “Não se engane: nem o personagem fictício
Joker, nem o filme, é um endosso de qualquer tipo de violência no mundo real.
Não é a intenção do filme, dos cineastas ou do estúdio manter esse personagem
como herói”. Uma resposta que pode até parecer desnecessária, principalmente
por se tratar de uma obra ficcional, mas não é. Coringa segue tocando em
feridas abertas. Segue causando discussões. Segue incitando o público. Com a
estreia de Joker e o frisson em torno da elogiada performance de Joaquin
Phoenix, neste artigo decidi relembrar a trajetória deste icônico personagem no
Cinema e a tênue relação de amor e ódio causado por ele.
Aos olhos de hoje, o Batman dos anos
sessenta pode soar como uma piada de mal gosto. Tudo era muito caricato, muito
colorido, muito inofensivo. O clima soturno\furtivo das clássicas HQ’s foi
substituído pela galhofa. O Batman de Adam West, porém, diz muito sobre a sua
época. No auge da Guerra Fria e de uma pesada corrente conservadora, os EUA
viviam tempos turbulentos. Nos grandes centros urbanos a luta por igualdade
racial gerava uma onda de violência. A Guerra do Vietnã gerava ainda mais
revolta. O discurso pacifista\hippie ganhava cada vez mais força. Neste
cenário, é fácil entender o viés escapista da série Batman e Robin (1966-1968)
e óbvio de Batman: O Filme (1966). Os Estados Unidos ansiavam pela luz, não
pelas sombras. Inserido num contexto lúdico, o afetado Coringa de César Romero se
tornou um dos elementos chave desta produção. Embora fiel a raiz anárquica do
antagonista, o cativante ator criou um Joker muito mais sacana, debochado,
extravagante. Um personagem sem grandes motivos disposto a criar o caos e
(claro!) derrotar o Batman. Na verdade, é possível enxergar no Coringa de
Romero traços que viriam a ser recorrentes nos demais Coringas. Em especial a
irreverência, a risada característica, a capacidade de tratar o humor\violência
como uma válvula de escape. O que faz deste Coringa “zoeiro” uma peça
extremamente influente no desenrolar do universo Batman.
- Coringa “frustrado” (Jack
Nicholson) – Batman (1989)
Duas décadas depois, o Batman de
Bob Kane finalmente ganharia forma na tela grande em 1989. Sob a batuta gótica
de Tim Burton, vimos Gotham nascer das sombras. Tudo era muito soturno. Muito
‘dark’. A violência imperava. Do topo dos vertiginosos prédios o Cavaleiro das
Trevas observava tudo. Ele era basicamente a última grande linha de defesa. A
sua presença, porém, servia como o estopim para o surgimento de vilões
igualmente obstinados. O Batman de Michael Keaton é um dos meus favoritos. Ele
é agressivo, implacável, inteligente. Se eu tivesse que defini-lo em uma
palavra, essa seria convicção. Um Bruce Banner menos traumatizado e mais
disposto ao sacrifício. Como um verdadeiro nêmesss, o icônico Coringa de Jack
Nicholson surge como uma das suas versões mais frustradas. Por trás da
extravagância visual e artística, existe um homem com baixa-estima, amargurado,
tóxico, rancoroso diante da presença maiúscula do seu oponente. O Joker de
Nicholson revela uma notória instabilidade emocional. Os seus traumas são menos
pessoais e mais afetivos. Ele não gosta da sua aparência e isso se reflete na
sua insana personalidade. Como se, de certa forma, a maquiagem, os ternos
coloridos e as agressivas traquinagens fossem o seu escudo. A psicopatia
esconde a frustração de um homem cansado de se sentir diminuído perante o seu
algoz. Só em alguns momentos o enxergamos realmente. O que, graças a performance
de Nicholson, já é o bastante.
- Coringa “anarquista” (Heath
Ledger) – Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008)
E chegamos ao que considero o
melhor Coringa da Sétima Arte. Quer dizer, até agora... Mais uma vez fruto da
sua época, o Coringa anarquista de Heath Ledger dialoga muito mais com o Batman
de Michael Keaton do que com o Joker de Jack Nicholson. Por mais estranho que
isso possa soar, temos aqui o Coringa mais “cerebral” do cinema. Tal qual o
Homem-Morcego ele decidiu transformar os seus traumas numa causa. Existe um
sentido por trás do caos. O seu constante flerte com o acaso apenas máscara a
sua forte convicção. O Coringa de Heath Ledger não quer aniquilar o Batman. Nem
tão pouco fortuna. Nada disso. Eles são produtos de um mesmo meio. Filhos da
tragédia. Herdeiros de um mundo vil. Embora o passado do palhaço sociopata não
esteja no foco de O Cavaleiro das Trevas, sempre que o vilão se refere a ele
enxergamos a sua raiva, o seu ódio reprimido. A intenção do Coringa é provar
algo. É mostrar que não está sozinho no mundo. Que até o mais idealista dos
homens é capaz de ser corrompido. Ou melhor, corroído. Com uma performance
monumental, o saudoso Heath Ledger invadiu a ardilosa psique do seu Joker como
poucas vezes vimos. Por mais que a abordagem pés no chão de Christopher Nolan
confira uma aura urbana mais ameaçadora ao antagonista, Ledger transformou a
esquisitice em charme. A sua presença cênica é inigualável. Talvez pela
primeira vez num grande arco o Coringa realmente assume o controle da situação.
O resultado é o nascimento instantâneo de um ícone pop. Um agente do caos feroz
e absurdamente carismático capaz de roubar o show sem grande dificuldade.
- Coringa “lunático” (Michael
Emerson) – Batman: Cavaleiro das Trevas (2013)
Versão animada do clássico de
Frank Miller, Batman: Cavaleiro das Trevas conseguiu capturar com peso e
complexidade o clima sujo do material fonte. Gotham está tomada pela
desesperança. Após anos perseguidos, os super-heróis saíram de cena. Uma década
depois o estrago era gigante. Gangues deixavam rastro de sangue e violência por
onde passavam. Os vilões deixaram de ter um rosto. Cansado de não reagir,
Batman sai das sombras da aposentadoria disposto a restabelecer a ordem. O
Bruce Banner de Frank Miller é um verdadeiro tanque movido pelos seus traumas.
O peso da idade não parece fazer tanta diferença. Pelo contrário. Ele está
revigorado, imparável, agressivo. Num cenário em que o Super-Homem virou uma
arma de guerra contra os soviéticos, ele se torna a improvável última linha de
defesa. Um ‘comeback’ que obviamente reascende a chama do seu principal
arqui-inimigo. Em estado catatônico após perder aquele que o motivava, o
Coringa decide também abandonar a inércia com apetite para aposentar de vez o
Homem-Morcego. O que vemos é um Joker lunático em estado puro. Igualmente
reoxigenado. Um vilão que não precisa de justificativas para ferir. Ele só que
chamar a atenção do seu nêmesis. Provar que os dois são produtos de um mesmo
meio. Na ardilosa voz de Michael Emerson o Coringa ganha um contexto terrorista
e extremamente violento. Uma visão maléfica indiscutivelmente urbana. No final
dos anos 1980, os EUA viviam um período de muita turbulência interna.
Corrupção, criminalidade, insegurança eram tópicos comuns nos principais
noticiários. Neste aspecto, o Coringa de Frank Miller reflete tudo o que de
pior a sociedade norte-americana tinha a oferecer na época, principalmente
quando o assunto é a sua banal relação com a violência. O Joker, aqui, não precisava de motivos. Ele só queria "correr" atrás do tempo perdido.
- Coringa “quebrado” (Mark
Hamill) – Batman: A Piada Mortal (2016)
De longe uma das versões mais
perversas do antagonista, o Coringa de Mark Hamill conseguiu capturar com
intensidade a face mais doentia do vilão. Adaptação quase que 100% fiel da obra
de Alan Moore, A Piada Mortal versão animada foi buscar no passado de Joker as
explicações para que pudéssemos entender o seu verdadeiro estado de espírito. O
que culmina numa experiência muito pesada. Embora o ‘plot’ de O Cavaleiro das
Trevas de Christopher Nolan tenha muito desta clássica ‘graphic novel’, Alan
Moore foi muito mais a fundo na psique do personagem ao trata-lo como alguém
genuinamente quebrado. Alguém sem amarras. Sem códigos de conduta. Sem pudor em
praticar o mal. Estamos diante de um Coringa que, para mostrar para o Batman o
seu ponto, não titubeia em trucidar física e emocionalmente as suas “cobaias”.
A sua vingança ganha contornos genuinamente maquiavélicos. Sem nada a perder,
apenas as lembranças de um passado doloroso, o palhaço do crime é desenvolvido
aqui sob uma perspectiva mais complexa. Uma combinação de insanidade,
psicopatia e dor capturado com maestria por Mark Hamill. Após brilhar em
Batman: The Animated Series, interpretando o que, para muitos, é a melhor
versão do Coringa, o ator de Star Wars retornou a dublagem do vilão ao criar um
personagem extremamente ameaçador. E louco. Muito louco. Uma característica que
ajudou a potencializar o texto de Alan Moore. O que fica claro, em especial, na
provocante última cena, um daqueles momentos ímpares na história da Nona Arte
que ainda hoje entram na mesa de debate dos fãs de cultura pop.
- Coringa “fake” (Jared Leto) –
Esquadrão Suicida (2016)
Esquadrão Suicida é um filme
problemático. Por vezes indefensável. Em sua maioria frustrante. Sou um dos
defensores, porém, do Coringa de Jared Leto. O Joker da era do “fake news”. O
Coringa ostentador. Um vilão que quer ser (ou parecer) maior do que realmente é.
O Coringa de Leto é um gangster psicopata. Mas nada além disso. Assim como o
próprio ator, o vilão desta vez se preocupa quase exclusivamente em reproduzir
os trejeitos do icônico personagem. A risada. O comportamento insano. O visual
extravagante. Como se estivesse tentando emular algo. Por trás das tatuagens,
porém, existe um homem decepcionante. Um palhaço triste. O seu Coringa não é
engraçado, não é provocador, não é anárquico. Ele não está disposto a
sacrificar tanto em prol dos seus objetivos. Tudo muda, no entanto, quando o
assunto é a sua pudinzinho Arlequina (Margot Robbie). Um dos poucos pontos
positivos do roteiro, a abusiva relação entre os dois dialoga com problemas
reconhecíveis. O Coringa de Leto é tóxico, é covarde, é agressivo com aquela que
diz amar. Aqui, e só aqui, vemos a sua distorção sentimental. Até porque,
quando se distancia deste arco, o longa não consegue se aprofundar em nada. O
Coringa de Esquadrão Suicida é oco, um personagem bizarramente superficial. Mas
isso não é culpa dele, nem tão pouco de Jared Leto.
- Coringa “carente” (Zack
Galifianakis) – Lego: Batman (2017)
Não tenho dúvida em afirmar que
Lego: Batman é o melhor filme do Homem-Morcego desde a Trilogia Cavaleiro das
Trevas. Disposto a resgatar a curiosa aura escapista dos anos 1960, a animação
dirigida por Chris McKay decidiu rir do universo dos super-heróis com
inteligência e perspicácia. A brincadeira aqui, entretanto, ganhou ares menos
tolos e mais subversivos. Um sentimento fortalecido pelo extraordinário Coringa
de Zack Galifianakis. Embora sob um viés lúdico, é interessante ver a
sagacidade da animação em dialogar com questões recorrentes do arco do
Cavaleiro das Trevas. Assim como em muitas das versões analisadas acima, o
Joker quer aqui mais uma vez provar que ele e Batman fazem parte de um mesmo
mundo. Que existe uma conexão entre os dois. Um vínculo tratado aqui dentro de
um contexto mais afetivo. Após ouvir do seu arqui-inimigo que ele não
significava nada, o Coringa vê a sua rotina ganhar um triste novo sentido. A
carência é o combustível da vez do vilão. Diante de tamanho desdém
“sentimental”, Joker decide provar que Batman estava errado. Que ele era sim
importante. No embalo do fantástico trabalho de voz de Galifianakis, o Coringa
de Lego: Batman se torna um tipo digno de pena. Mas engraçadíssimo. E também
ameaçador. Movido por sentimentos sinceros e ao mesmo tempo distorcidos. Dentro
da dinâmica entre herói e vilão, faz sentido que o ódio seja o substituto do
amor. O Coringa de Lego: Batman prefere o “falem mal, mas falem de mim” do que
o esquecimento. O que, de certa forma, faz sentido neste curioso ‘bromance’.
- Coringa “consumido” (Joaquin
Phoenix) – Coringa (2019)
Por fim conhecemos o Coringa mais
pés no chão da Sétima Arte. O que talvez explique a preocupação de algumas
organizações quanto ao efeito causado pelo personagem junto ao público. Como
disse na abertura deste texto, vivemos numa sociedade doente. E somos parte da
enfermidade. Ou vítimas dela. Conscientemente ou não alimentamos algumas das chagas mais
impiedosas. A desigualdade, a repressão, a corrupção, a idealização, o desdém,
o preconceito, o machismo, a homofobia. Fazendo jus ao espaço permitido por um
filme solo, Todd Phillips promete ir a fundo ao expor a causa e a consequência.
O Coringa de Joaquin Phoenix é um homem quebrado “remendado”. Após perder tudo
ele decidiu reagir. Decidiu romper com a rotina de degradação e humilhação. Um homem que encontrou um sentido na ausência de sentido. Só
pelo trailer é fácil construir a jornada do antagonista. O mistério é saber até
onde ele está disposto a ir para colocar em prática o seu revanchista plano.
Pela reação daqueles que já assistiram, ao que tudo indica o novo Joker irá
reproduzir alguns dos males mais reconhecíveis da nossa sociedade. O que liga o
sinal de alerta. Filmes como esse mostra que não podemos (ou devemos)
glorificar figuras como o Coringa. Indivíduos movidos por sentimentos
distorcidos. Corroídos pelo meio em que vivemos. Que não podem de maneira
alguma serem subestimados ou abandonados. O problema existe. É real. E filmes
como Coringa tem tudo para (se bem interpretados) potencializar uma bem-vinda reflexão.
2 comentários:
Uauuu que leitura, resgate fantástico vc fez desse icônico personagem em suas diferentes interpretações. Cara vc é demais👏👏👏👏.
Valeu, obrigado pelo comentário e pela visita.
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