domingo, 30 de junho de 2019

Fugindo do Hype | Capitã Marvel

A peça final do quebra-cabeça do MCU

A Marvel se atrasou. Em meio aos inúmeros e tão elogiados acertos nos últimos onze anos, o MCU perdeu o ‘timing’ no que diz respeito ao protagonismo feminino nas suas produções. Mesmo com um poderoso leque de heroínas em mãos, algumas já previamente estabelecidas dentro do seu universo, Kevin Feige relutou em concretizar o que parecia inevitável. A Marvel precisava de um filme solo estrelado por uma mulher. Uma sensação potencializada com o lançamento de Mulher-Maravilha (2017), a corajosa aposta de uma concorrência que naquele momento parecia longe de fazer frente com o MCU. Em resumo, Wonder Woman foi um sucesso, reaqueceu o DC Universe e mostrou que o ‘girl power’ poderia ser extremamente rentável dentro da Cultura Pop. Os tempos, felizmente, estão mudando. Diante deste cenário, Capitã Marvel se tornou uma produção cercada de expectativas desde a sua gênese. Talvez pela primeira vez em dez anos, a Marvel estava correndo atrás. A comparação entre os dois projetos seria óbvia. Um fracasso seria ainda mais evidente perante o triunfo de Mulher-Maravilha. No engenhoso quebra-cabeça do MCU, entretanto, faltava uma peça. Um elemento chave. Faltava a personagem capaz de interligar o passado, o presente e o futuro. Faltava a Capitã Marvel.



Inserido num arco complexo e minuciosamente pensado pelas mentes por trás do Universo Vingadores, Capitã Marvel compensa o longo tempo de espera ao ir muito além da representatividade feminina. Com grandes planos para esta empoderada protagonista, Kevin Feige e o corpo criativo do MCU entregam uma aventura sólida e empolgante, um filme capaz de amarrar todas as pontas soltas da franquia enquanto estabelece aquela que tem tudo para se tornar um dos pilares das vindouras novas fases idealizadas pela Marvel Studios. Embora vacilante enquanto um exemplar do cinema de ação, o longa dirigido pela dupla Anna Boden e Ryan Fleck cumprem as elevadas expectativas ao se concentrarem naquilo que mais importa. Na jornada de descobertas e autoafirmação da heroína que chega para redimensionar o Universo Vingadores. É legal ver, por exemplo, como a película vai muito além do ‘girl power’ pelo ‘girl power’. A essa altura do campeonato, ter basicamente uma guerreira ‘bad-ass’ não era o bastante. Era preciso mais. Era preciso peso. Era preciso profundidade. O que explica a coragem do argumento em sacrificar o frenesi da ação em prol de um desenvolvimento de personagem mais complexo.


Fazendo um esperto uso da narrativa não linear, Capitã Marvel acerta ao com soluções simples reforçar o viés empoderador do arco de Carol Danvers (Brie Larson). Ryan Fleck e Anna Boden sabem apertar os botões certos, na hora certa, em especial quando o assunto são as revelações sobre a origem da protagonista. Sem nunca se distanciar demais do escapismo super-heróico, a dupla de diretores é sucinta ao trazer para o centro da trama os obstáculos impostos à muitas mulheres. Ao invés de atrelar o grito de independência da Capitã Marvel aos seus enormes poderes, o longa é cuidadoso ao valorizar o seu aspecto mais humano, ao encontrar no misto de fragilidade e resiliência da heroína a sua verdadeira essência. Um arco denso reforçado pela sutileza com que Boden e Fleck investigam o passado da heroína. Embora narrativamente o argumento siga um rumo bem previsível, o que respinga na construção do arco da protagonista, os dois cineastas conseguem extrair do contexto em que ela está inserida a brecha necessária para tocar em questões genuinamente femininas. Nas entrelinhas, Capitã Marvel é assertivo ao estabelecer a casca criada por muitas mulheres para vencer um ambiente machista. O fato de ela não ficar distribuindo sorrisos, ser rude, agressiva e explosiva diz muito sobre o ambiente em que ela se formou. Ao contrário, por exemplo, do idealista\ingênuo Capitão América da fase 1, Carol não se transformou da noite para o dia num herói. Ela teve que suar muito, sofrer muito, cair e levantar inúmeras vezes. Os superpoderes, na verdade, são quase uma consequência e influenciaram bem pouco na construção da identidade da personagem, algo que o roteiro e principalmente Brie Larson trabalham com brilhantismo. Um reforço de luxo para o cast do MCU, a estrela de O Quarto de Jack nos brinda com uma heroína firme, impulsiva e confiante, uma figura cansada de reprimir o seu instinto.


Outro ponto que agrada, e muito, é a forma com que Capitã Marvel explora a relação entre os personagens. Consciente que ela era a mais nova peça de uma engrenagem maior, Anna Boden e Ryan Fleck mostram astúcia ao desenvolver os elementos mais reconhecíveis da trama. Sem nunca a distanciar demais do centro da ação, o roteiro dialoga também com os fãs mais antigos da franquia ao voltar para o início, ao encontrar no iminente fim a oportunidade de investigar como tudo começou. De longe um dos grandes acertos do longa, o rejuvenescido Fury (Samuel L. Jackson) adiciona humor ao filme ao mostrar a face mais leve e impulsiva de um personagem que naquela época sequer sonhava enfrentar ameaças do nível de Loki, Ultron, Zemo e Thanos. Embora Carol e Nick se esbarrem com certa conveniência dentro da história, a descomplicada relação entre os dois cresce consistentemente ao longo da película, um vínculo de camaradagem incrementado pelo afiado senso de humor de Jackson e pela sagacidade do argumento em sempre tratá-lo como o elo mais fraco da dupla. Algo novo dentro do MCU. O mesmo, aliás, podemos dizer da sincera conexão entre Carol e a sua ex-parceira Maria Rambeau (Lashana Lynch). Mesmo em pouco tempo, o roteiro é cuidadoso o bastante para permitir que o público enxergue o laço entre elas, quantas coisas as duas tiveram que superar juntas. Um arco que serve muitíssimo bem a mensagem de independência defendida pelo filme.


No momento em que se distancia do “feminino”, no entanto, Capitã Marvel derrapa em alguns velhos problemas do MCU. A começar pela previsibilidade da trama. Por mais que o roteiro traga uma boa surpresa envolvendo o rumo de um personagem que de início parecia extremamente genérico, Anna Boden e Ryan Fleck trazem bem pouco de novo no que diz respeito a ameaça, motivações do antagonista e reviravoltas. Falta peso, faltam justificativas inspiradas, falta um vilão de impacto. As sequências de ação, com exceção do vibrante clímax, são apenas funcionais, a direção é burocrática, a construção de mundo noventista é pouco explorada e personagens conhecidos como Ronan: O Conquistador (Lee Pace) e Korath (Djimoun Hounson) são esnobados pelo roteiro. Se dependesse somente do aspecto super, na verdade, Capitã Marvel seria bem decepcionante. O que, felizmente, não é o que acontece aqui. Ao deixar a ação propositalmente em segundo plano, Boden e Fleck se concentram no que melhor o filme de origem tinha a oferecer, na jornada de uma mulher com nada a provar para ninguém. Nada mais justo, portanto, que o filme de origem sobre a heroína mais superpoderosa do MCU fosse também o mais empoderador.

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