A Marvel se atrasou. Em meio aos inúmeros
e tão elogiados acertos nos últimos onze anos, o MCU perdeu o ‘timing’ no que
diz respeito ao protagonismo feminino nas suas produções. Mesmo com um poderoso
leque de heroínas em mãos, algumas já previamente estabelecidas dentro do seu
universo, Kevin Feige relutou em concretizar o que parecia inevitável. A Marvel
precisava de um filme solo estrelado por uma mulher. Uma sensação
potencializada com o lançamento de Mulher-Maravilha (2017), a corajosa aposta
de uma concorrência que naquele momento parecia longe de fazer frente com o
MCU. Em resumo, Wonder Woman foi um sucesso, reaqueceu o DC Universe e mostrou
que o ‘girl power’ poderia ser extremamente rentável dentro da Cultura Pop. Os
tempos, felizmente, estão mudando. Diante deste cenário, Capitã Marvel se
tornou uma produção cercada de expectativas desde a sua gênese. Talvez pela
primeira vez em dez anos, a Marvel estava correndo atrás. A comparação entre os
dois projetos seria óbvia. Um fracasso seria ainda mais evidente perante o
triunfo de Mulher-Maravilha. No engenhoso quebra-cabeça do MCU, entretanto, faltava
uma peça. Um elemento chave. Faltava a personagem capaz de interligar o
passado, o presente e o futuro. Faltava a Capitã Marvel.
Inserido num arco complexo e
minuciosamente pensado pelas mentes por trás do Universo Vingadores, Capitã
Marvel compensa o longo tempo de espera ao ir muito além da representatividade
feminina. Com grandes planos para esta empoderada protagonista, Kevin Feige e o
corpo criativo do MCU entregam uma aventura sólida e empolgante, um filme capaz
de amarrar todas as pontas soltas da franquia enquanto estabelece aquela que
tem tudo para se tornar um dos pilares das vindouras novas fases idealizadas
pela Marvel Studios. Embora vacilante enquanto um exemplar do cinema de ação, o
longa dirigido pela dupla Anna Boden e Ryan Fleck cumprem as elevadas
expectativas ao se concentrarem naquilo que mais importa. Na jornada de
descobertas e autoafirmação da heroína que chega para redimensionar o Universo
Vingadores. É legal ver, por exemplo, como a película vai muito além do ‘girl
power’ pelo ‘girl power’. A essa altura do campeonato, ter basicamente uma
guerreira ‘bad-ass’ não era o bastante. Era preciso mais. Era preciso peso. Era
preciso profundidade. O que explica a coragem do argumento em sacrificar o
frenesi da ação em prol de um desenvolvimento de personagem mais complexo.
Fazendo um esperto uso da
narrativa não linear, Capitã Marvel acerta ao com soluções simples reforçar o
viés empoderador do arco de Carol Danvers (Brie Larson). Ryan Fleck e Anna
Boden sabem apertar os botões certos, na hora certa, em especial quando o
assunto são as revelações sobre a origem da protagonista. Sem nunca se
distanciar demais do escapismo super-heróico, a dupla de diretores é sucinta ao
trazer para o centro da trama os obstáculos impostos à muitas mulheres. Ao invés
de atrelar o grito de independência da Capitã Marvel aos seus enormes poderes, o
longa é cuidadoso ao valorizar o seu aspecto mais humano, ao encontrar no misto
de fragilidade e resiliência da heroína a sua verdadeira essência. Um arco
denso reforçado pela sutileza com que Boden e Fleck investigam o passado da
heroína. Embora narrativamente o argumento siga um rumo bem previsível, o que
respinga na construção do arco da protagonista, os dois cineastas conseguem
extrair do contexto em que ela está inserida a brecha necessária para tocar em
questões genuinamente femininas. Nas entrelinhas, Capitã Marvel é assertivo ao
estabelecer a casca criada por muitas mulheres para vencer um ambiente
machista. O fato de ela não ficar distribuindo sorrisos, ser rude, agressiva e
explosiva diz muito sobre o ambiente em que ela se formou. Ao contrário, por
exemplo, do idealista\ingênuo Capitão América da fase 1, Carol não se
transformou da noite para o dia num herói. Ela teve que suar muito, sofrer
muito, cair e levantar inúmeras vezes. Os superpoderes, na verdade, são quase
uma consequência e influenciaram bem pouco na construção da identidade da
personagem, algo que o roteiro e principalmente Brie Larson trabalham com
brilhantismo. Um reforço de luxo para o cast do MCU, a estrela de O Quarto de
Jack nos brinda com uma heroína firme, impulsiva e confiante, uma figura
cansada de reprimir o seu instinto.
Outro ponto que agrada, e muito,
é a forma com que Capitã Marvel explora a relação entre os personagens.
Consciente que ela era a mais nova peça de uma engrenagem maior, Anna Boden e
Ryan Fleck mostram astúcia ao desenvolver os elementos mais reconhecíveis da
trama. Sem nunca a distanciar demais do centro da ação, o roteiro dialoga também
com os fãs mais antigos da franquia ao voltar para o início, ao encontrar no
iminente fim a oportunidade de investigar como tudo começou. De longe um dos
grandes acertos do longa, o rejuvenescido Fury (Samuel L. Jackson) adiciona
humor ao filme ao mostrar a face mais leve e impulsiva de um personagem que
naquela época sequer sonhava enfrentar ameaças do nível de Loki, Ultron, Zemo e
Thanos. Embora Carol e Nick se esbarrem com certa conveniência dentro da
história, a descomplicada relação entre os dois cresce consistentemente ao
longo da película, um vínculo de camaradagem incrementado pelo afiado senso de
humor de Jackson e pela sagacidade do argumento em sempre tratá-lo como o elo
mais fraco da dupla. Algo novo dentro do MCU. O mesmo, aliás, podemos dizer da
sincera conexão entre Carol e a sua ex-parceira Maria Rambeau (Lashana Lynch).
Mesmo em pouco tempo, o roteiro é cuidadoso o bastante para permitir que o
público enxergue o laço entre elas, quantas coisas as duas tiveram que superar
juntas. Um arco que serve muitíssimo bem a mensagem de independência defendida
pelo filme.
No momento em que se distancia do
“feminino”, no entanto, Capitã Marvel derrapa em alguns velhos problemas do
MCU. A começar pela previsibilidade da trama. Por mais que o roteiro traga uma
boa surpresa envolvendo o rumo de um personagem que de início parecia extremamente
genérico, Anna Boden e Ryan Fleck trazem bem pouco de novo no que diz respeito
a ameaça, motivações do antagonista e reviravoltas. Falta peso, faltam
justificativas inspiradas, falta um vilão de impacto. As sequências de ação,
com exceção do vibrante clímax, são apenas funcionais, a direção é burocrática, a construção de mundo
noventista é pouco explorada e personagens conhecidos como Ronan: O
Conquistador (Lee Pace) e Korath (Djimoun Hounson) são esnobados
pelo roteiro. Se dependesse somente do aspecto super, na verdade, Capitã Marvel
seria bem decepcionante. O que, felizmente, não é o que acontece aqui. Ao
deixar a ação propositalmente em segundo plano, Boden e Fleck se concentram no
que melhor o filme de origem tinha a oferecer, na jornada de uma mulher com
nada a provar para ninguém. Nada mais justo, portanto, que o filme de origem
sobre a heroína mais superpoderosa do MCU fosse também o mais empoderador.
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