sexta-feira, 28 de junho de 2019

Crítica | Desobediência

Luto, repressão e aceitação 

Logo no seu brilhante monólogo de abertura, uma reflexão poderosa sobre o que nos define enquanto seres humanos, Desobediência abraça a complexidade do tema proposto ao investigar as sequelas causadas por uma relação homossexual numa comunidade de mentalidade retrógrada. Fazendo um primoroso uso do elemento religioso e das rígidas tradições da cultura judaica, o sensível diretor Sebastian Lelio (A Mulher Fantástica) reúne duas das melhores atrizes em atividade na construção de um romance ambientado num cenário rígido, lúgubre e repressor. 

De volta para casa para o velório do seu pai, um respeitado rabino, a independente fotógrafa Ronit (Rachel Weisz) surge como a ovelha perdida do rebanho, uma mulher empoderada incapaz de abaixar a cabeça para os dogmas defendidos pelo seu progenitor. Do outro lado da equação está Esti (Rachel McAdams), uma professora submissa que, com a fuga da sua melhor amiga, decidiu casar com um aspirante à pastor (e velho amigo) Dovid (Alessandro Nivola). A partir deste insinuante triângulo “sentimental”, Sebastian Lelio esbanja comedimento ao estabelecer a real conexão entre os personagens, os motivos por trás de tamanho afastamento e o efeito causado por esta “presença” na pacata rotina do casal. 


Num primeiro momento, é interessante ver como o realizador chileno explora os arquétipos das protagonistas. Sem precisar dizer muito, o afiado roteiro estabelece com clareza o elo entre elas, as feridas não cicatrizadas. Como se não bastasse a instantânea química entre Rachel Weisz e McAdams, Sebastian Lelio é cuidadoso ao reconstruir esta relação esfriada pelo tempo. Ele se concentra no olhar de timidez das atrizes. No (tolo) esforço das duas em não reacender uma chama até então enfraquecida. Quando o olhar de Ronit e Esti se cruzam, independentemente do ambiente em que elas estão inseridas, é como se fogos de artifício tomasse conta das duas. Existe amor, existe paixão, existe euforia, existe alívio. 


Sem um pingo de pressa, Sebastian Lelio é igualmente habilidoso ao estabelecer também os perigos em torno desta fulminante reaproximação. À medida que o vínculo afetivo entre Esti e Ronit é restabelecido, a posição das duas dentro daquela controladora sociedade é colocada em cheque. Neste contexto, a partir dos obstáculos impostos às duas, o realizador mostra categoria ao discutir a questão da liberdade diante do retrocesso e da repressão. Com sutileza e uma leve dose de cinismo, encarada com entusiasmo pela rebelde personagem de Rachel Weisz, Lelio coloca o dedo na ferida ao discorrer sobre a delicada posição de mulheres como Esti, tipos submissos, com medo de reagir ao que se espera deles, obrigados a sacrificar os seus próprios anseios em prol do bem comum. Por mais que a conexão entre ela e Ronit seja óbvia, a lacuna que as separa também é evidente. À essa altura, jogar tudo para o alto não era mais uma opção. 


Com maturidade e consciente da complexidade temática, Sebastian Lelio não titubeia em invadir a intimidade do trio, em ir além do silêncio do luto, extraindo a tensão da iminência da crise. As consequências podem ser sérias e o diretor sabe bem disso. Na transição para o último ato, inclusive, o cineasta chileno eleva o nível de suspense ao explorar o temor do público, ao trabalhar com medos reconhecíveis. O resultado é um soberbo último ato, um desfecho comovente principalmente pela delicadeza com que o roteiro resolve os conflitos sem descaracterizar os seus personagens. Impulsionado pelas soberbas performances de Rachel McAdams e Rachel Weisz, que, mesmo diante de tipos tão diferentes, interiorizam os conflitos pessoais de Esti e Ronit com similar intensidade, Desobediência parte de um cenário específico para discutir o reconhecível drama de duas mulheres pressionadas a não se assumirem como são. Um filme silencioso, íntimo e denso que, embora tenha os seus momentos mais lentos, compensa ao confiar na humanidade dos seus personagens. 

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