terça-feira, 2 de julho de 2019

Crítica | Estranha Presença

O fantasma da decadência da nobreza

Alguns filmes são muito mal vendidos. E por consequência incompreendidos. Numa época em que o cinema de horror fantasmagórico anda tão em alta, Estranha Presença tende a frustrar a maioria por passar longe (bem longe) de oferecer aquilo que o grande público esperaria dele. Uma característica que, verdade seja dita, deveria ser tratada como uma virtude, principalmente pela maneira convicta com que a obra renega algumas das mais utilizadas convenções do gênero. Responsável pelo extraordinário O Quarto de Jack, o versátil diretor Lenny Abrahamson ousa ao explorar a atmosfera dos “filmes de mansão mal-assombrada” para a construção de um thriller psicológico sobre o impacto da decadência na rotina de um grupo de personagens separados por uma invisível barreira social. Com uma ambientação soturna e um fluído jogo de câmeras pelo desconfortável cenário, o virtuoso cineasta entrega uma obra imersiva e genuinamente ambígua, uma película inteligente ao esconder no elemento paranormal um contexto reconhecidamente mundano.


Esqueça, portanto, os populares ‘jump-scares’, as didáticas reviravoltas e qualquer tentativa de arrancar sustos fáceis do espectador. Estranha Presença é um thriller maduro. Que prioriza a construção da atmosfera em detrimento do terror convencional. Embora respeite o passado clássico do segmento quando o assunto é a introdução\exploração da mansão mal-assombrada da vez, Lenny Abrahmson opta por seguir o caminho mais difícil ao nunca reduzir a sua obra a um só gênero. O suspense, aqui, serve muito mais a construção do clima de desconforto proposto pela obra do que propriamente ao desenvolvimento do argumento. O foco está nos personagens, nos seus respectivos dramas e na maneira com que eles reagem a deterioração de algo tão precioso. Na trama seguimos os passos do dedicado Drº Faraday (Domhnall Gleeson), um médico de um pequeno vilarejo que revive uma importante passagem da sua infância ao ser chamado para tratar a empregada de uma decadente casa da nobreza local. Surpreso com o estado do lugar, ele logo se afeiçoa pelos últimos descendentes da família Ayres, entre eles a reclusa Caroline (Rita Wilson) e o traumatizado Roderick (Will Pouter). Num misto de compaixão e fascínio, ele se vê tentado em estreitar os laços com habitantes da imponente residência, sem sequer desconfiar que por trás de uma velha casa existem perigosos segredos.


No papel, Estranha Presença soa bem reconhecível. Como disse acima, entretanto, não demora muito para percebemos as reais intenções de Lenny Abrahamson. Reconhecido pela sua habilidade em se movimentar pelos cenários, vide o magnífico ‘mise en scene’ em O Quarto de Jack, o realizador faz jus as expectativas criadas em torno da mansão em questão ao extrair o máximo dela na construção da imersiva atmosfera. Bastam poucos minutos para que nos sintamos dentro da habitação. De volta a uma Inglaterra destroçada no pós-guerra. A casa, na verdade, é um personagem vivo. E “machucado”. Existem segredos escondidos nela. Existe vazio. Existe dor. Existe uma espécie de grandeza humilhada. A cada novo cenário exposto conhecemos um pouco mais sobre o contexto em que a trama está inserida, sobre o que ali foi vivido e o futuro pessimista que os espera. Um esmero que, aliás, se reflete na construção dos demais personagens. Enquanto o solícito Drº Faraday não consegue esconder o seu encantamento pelo local e os seus habitantes, uma imagem sabiamente aprofundada ao longo da trama, os deteriorados últimos membros da família Ayres carregam consigo o peso do ostracismo. Ao contrário de 99,9 % dos filmes do gênero, eles não têm muito a esconder. A verdade salta aos olhos. Ali estão os sobreviventes de uma nobreza possessiva, devastada pelo tempo, enclausurada num misto de vaidade e vergonha.


Indo muito além da tensão, que propositalmente se esvai diante do sólido drama e do tênue clima de romance que toma conta da trama a partir do segundo ato, Lenny Abrahamson renega gradativamente as convenções do gênero ao trazer o senso de ambiguidade para o centro da tela. À medida que descobrimos mais sobre os Ayres e o passado do Drº Faradway, as dúvidas ser tornam mais evidentes. Os personagens começam a ganhar nuances mais complexas. O argumento, logo de cara, é criativo ao atrelar o elemento paranormal a decadência da nobreza numa Inglaterra mudada pela guerra. A impotência, o rancor, a amargura e o isolamento dos Ayres surge como um combustível para a trama, dando contornos alegóricos a ameaça em questão. O melhor, entretanto, ainda estava por vir. No momento em que decide se debruçar sobre a perspectiva do narrador da história, o dedicado médico, o longa cresce ao tornar tudo mais nebuloso. É interessante ver como o personagem se transforma em cena. No embalo do insinuante texto e da enigmática presença de Domhnaal Gleeson, Abrahamson provoca o espectador ao migrar sutilmente para o terreno do suspense psicológico. Por trás do bom-mocismo de Faradway existe compaixão, fascínio e também obsessão. Algo que diz muito sobre as motivações dele e passa a moldar a sua relação com a resiliente Caroline. A partir daí, o cineasta eleva o nível do longa ao abraçar a dubiedade proposta pelo roteiro com enorme convicção. Sem querer revelar muito, o realizador reforça a metáfora social escondida na obra ao propor uma espécie de duelo de classes, ao tentar entender o efeito causado pela mansão na identidade do protagonista. O passado ainda vive. E tem muito a dizer sobre os sentimentos que movem a trama. No fim, embora a última cena traga (a meu ver) mais respostas do que aparenta, Abrahamson instiga ao deixar para o espectador a missão de entender a raiz dos desconcertantes fatos. Por isso, fique atento.


Com visual decadente digno de calafrios, a direção de arte, o design de som e a pálida fotografia só ajudam a potencializar o clima de imersão gótico proposto pela obra, Estranha Presença ousa ao enxergar bem além do que o gênero tem exigido na atualidade. Embora cometa os seus deslizes aqui ou ali, o devastado veterano de guerra interpretado por um raivoso Will Pouter merecia mais tempo de tela, Lenny Abrahamson tira do papel um suspense com identidade própria, um filme capaz de fisgar e incomodar sem recorrer a recursos tão amplamente explorados no cinema de Horror\Suspense na atualidade.

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