Alguns filmes são muito mal
vendidos. E por consequência incompreendidos. Numa época em que o cinema de
horror fantasmagórico anda tão em alta, Estranha Presença tende a frustrar a
maioria por passar longe (bem longe) de oferecer aquilo que o grande público
esperaria dele. Uma característica que, verdade seja dita, deveria ser tratada
como uma virtude, principalmente pela maneira convicta com que a obra renega algumas
das mais utilizadas convenções do gênero. Responsável pelo extraordinário O
Quarto de Jack, o versátil diretor Lenny Abrahamson ousa ao explorar a
atmosfera dos “filmes de mansão mal-assombrada” para a construção de um
thriller psicológico sobre o impacto da decadência na rotina de um grupo de
personagens separados por uma invisível barreira social. Com uma ambientação
soturna e um fluído jogo de câmeras pelo desconfortável cenário, o virtuoso cineasta entrega uma obra imersiva e genuinamente ambígua, uma película
inteligente ao esconder no elemento paranormal um contexto reconhecidamente mundano.
Esqueça, portanto, os populares
‘jump-scares’, as didáticas reviravoltas e qualquer tentativa de arrancar
sustos fáceis do espectador. Estranha Presença é um thriller maduro. Que
prioriza a construção da atmosfera em detrimento do terror convencional. Embora
respeite o passado clássico do segmento quando o assunto é a
introdução\exploração da mansão mal-assombrada da vez, Lenny Abrahmson opta por
seguir o caminho mais difícil ao nunca reduzir a sua obra a um só gênero. O
suspense, aqui, serve muito mais a construção do clima de desconforto proposto
pela obra do que propriamente ao desenvolvimento do argumento. O foco está nos
personagens, nos seus respectivos dramas e na maneira com que eles reagem a
deterioração de algo tão precioso. Na trama seguimos os passos do dedicado Drº
Faraday (Domhnall Gleeson), um médico de um pequeno vilarejo que revive uma
importante passagem da sua infância ao ser chamado para tratar a empregada de
uma decadente casa da nobreza local. Surpreso com o estado do lugar, ele logo
se afeiçoa pelos últimos descendentes da família Ayres, entre eles a reclusa Caroline
(Rita Wilson) e o traumatizado Roderick (Will Pouter). Num misto de compaixão e
fascínio, ele se vê tentado em estreitar os laços com habitantes da imponente
residência, sem sequer desconfiar que por trás de uma velha casa existem
perigosos segredos.
No papel, Estranha Presença soa
bem reconhecível. Como disse acima, entretanto, não demora muito para
percebemos as reais intenções de Lenny Abrahamson. Reconhecido pela sua
habilidade em se movimentar pelos cenários, vide o magnífico ‘mise en
scene’ em O Quarto de Jack, o realizador faz jus as expectativas criadas em
torno da mansão em questão ao extrair o máximo dela na construção da imersiva
atmosfera. Bastam poucos minutos para que nos sintamos dentro da habitação. De
volta a uma Inglaterra destroçada no pós-guerra. A casa, na verdade, é um
personagem vivo. E “machucado”. Existem segredos escondidos nela. Existe vazio.
Existe dor. Existe uma espécie de grandeza humilhada. A cada novo cenário
exposto conhecemos um pouco mais sobre o contexto em que a trama está inserida,
sobre o que ali foi vivido e o futuro pessimista que os espera. Um esmero que,
aliás, se reflete na construção dos demais personagens. Enquanto o solícito Drº
Faraday não consegue esconder o seu encantamento pelo local e os seus
habitantes, uma imagem sabiamente aprofundada ao longo da trama, os
deteriorados últimos membros da família Ayres carregam consigo o peso do
ostracismo. Ao contrário de 99,9 % dos filmes do gênero, eles não têm muito a
esconder. A verdade salta aos olhos. Ali estão os sobreviventes de uma nobreza
possessiva, devastada pelo tempo, enclausurada num misto de vaidade e vergonha.
Indo muito além da tensão, que
propositalmente se esvai diante do sólido drama e do tênue clima de romance que
toma conta da trama a partir do segundo ato, Lenny Abrahamson renega
gradativamente as convenções do gênero ao trazer o senso de ambiguidade para o
centro da tela. À medida que descobrimos mais sobre os Ayres e o passado do Drº
Faradway, as dúvidas ser tornam mais evidentes. Os personagens começam a ganhar
nuances mais complexas. O argumento, logo de cara, é criativo ao atrelar o
elemento paranormal a decadência da nobreza numa Inglaterra mudada pela guerra.
A impotência, o rancor, a amargura e o isolamento dos Ayres surge como um
combustível para a trama, dando contornos alegóricos a ameaça em questão. O
melhor, entretanto, ainda estava por vir. No momento em que decide se debruçar
sobre a perspectiva do narrador da história, o dedicado médico, o longa cresce
ao tornar tudo mais nebuloso. É interessante ver como o personagem se
transforma em cena. No embalo do insinuante texto e da enigmática presença de
Domhnaal Gleeson, Abrahamson provoca o espectador ao migrar sutilmente para o
terreno do suspense psicológico. Por trás do bom-mocismo de Faradway existe compaixão, fascínio e também obsessão. Algo que diz muito sobre as motivações dele e passa a moldar a sua relação com a resiliente Caroline. A partir
daí, o cineasta eleva o nível do longa ao abraçar a dubiedade proposta pelo
roteiro com enorme convicção. Sem querer revelar muito, o realizador reforça a metáfora
social escondida na obra ao propor uma espécie de duelo de classes, ao tentar
entender o efeito causado pela mansão na identidade do protagonista. O passado
ainda vive. E tem muito a dizer sobre os sentimentos que movem a trama. No fim,
embora a última cena traga (a meu ver) mais respostas do que aparenta,
Abrahamson instiga ao deixar para o espectador a missão de entender a raiz dos desconcertantes
fatos. Por isso, fique atento.
Com visual decadente digno de
calafrios, a direção de arte, o design de som e a pálida fotografia só ajudam a
potencializar o clima de imersão gótico proposto pela obra, Estranha Presença
ousa ao enxergar bem além do que o gênero tem exigido na atualidade. Embora
cometa os seus deslizes aqui ou ali, o devastado veterano de guerra
interpretado por um raivoso Will Pouter merecia mais tempo de tela, Lenny
Abrahamson tira do papel um suspense com identidade própria, um filme capaz de
fisgar e incomodar sem recorrer a recursos tão amplamente explorados no cinema de Horror\Suspense na atualidade.
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