sexta-feira, 2 de junho de 2017

Mulher-Maravilha

A super-heroína que o cinema precisava

Durante anos os executivos de Hollywood defenderam a (falaciosa) ideia que filmes de super-heróis estrelados por mulheres não eram rentáveis. As referências, porém, eram as piores possíveis. Enquanto os heróis ganhavam filmes do quilate de Superman (1978), Batman (1989) e mais recentemente Homem de Ferro (2008), as heroínas eram "lembradas" em produções pífias, obras do nível de Supergirl (1984), Mulher-Gato (2003) e Elektra (2005). A amostragem era de péssima qualidade, o que justificava os fracassos comerciais destas irrelevantes películas. Um tabu que, finalmente, parece ter chegado ao fim. E nada mais justo que das mãos (e do laço) da super-heroína mais icônica da cultura pop. De longe o melhor filme do novo Universo Cinematográfico da DC, Mulher-Maravilha não só abrevia as incertezas em torno desta popular franquia, como também revigora um universo majoritariamente masculino numa obra capaz de defender a representatividade feminina sem esquecer de oferecer aquilo que um filme do gênero precisa ter. Sob a batuta da talentosa Patty Jenkins (Monster), uma escolha ousada e indiscutivelmente feliz, o longa é impecável ao estabelecer a essência altruísta da independente Diana Prince, ao utilizar a sua feminilidade em prol da trama, indo além das expectativas ao entregar uma aventura igualitária e visualmente extraordinária. Em suma, com sequências de ação memoráveis, um roteiro bem resolvido e o invejável magnetismo de Gal Gadot, Mulher-Maravilha é - acima de tudo - o filme de super-herói que o cinema precisava



Com roteiro assinado por Allan Heinberg (Sex and The City), o longa é inicialmente cuidadoso ao apresentar a origem da Princesa de Themyscira. Sem tempo a perder, Patty Jenkins entrega um primoroso primeiro ato, um terço inicial esteticamente magnífico e narrativamente sólido. Em pouco menos de meia hora ela é criativa ao introduzir a mitologia por trás da Ilha Paraíso, o processo de treinamento de Diana (Gal Gadot), a sua personalidade ingênua\impetuosa e a repentina aparição do espião Steve Trevor (Chris Pine). Além de extrair o máximo da beleza deste reluzente cenário paradisíaco, a realizadora consegue se aprofundar na dinâmica desta "tribo" de amazonas, realçar elementos como o forte senso de igualdade, nobreza e altruísmo, preparando o terreno para o choque de realidade enfrentado pela protagonista no mundo "civilizado". Com um universo tão bem desenhado em mãos, Jenkins é igualmente categórica ao estabelecer o ameaçador pano de fundo bélico, nos brindando com uma das sequências de ação mais plásticas e impactantes da história do gênero. O embate entre as tropas da Rainha Hippolyta (Connie Nielsen) e um destacamento de soldados alemães é impressionante, uma cena urgente e empolgante capturada com maestria pelas lentes desta virtuosa diretora. Que belo desfecho para um exemplar primeiro ato.


O grande trunfo narrativo de Mulher-Maravilha, entretanto, está na capacidade do roteiro em solucionar os enraizados problemas de tom da franquia. Sem nunca se distanciar da essência "realística" proposta pela dobradinha DC\Warner, Patty Jenkins consegue transitar entre os gêneros com rara desenvoltura, permitindo que a trama cresça harmoniosamente até o grandiloquente clímax. Mesmo inserido num contexto histórico naturalmente trágico, a violenta 1ª Guerra Mundial, a realizadora é perspicaz ao encontrar o humor na relação entre Diana e Steve, na inversão dos estereótipos (ele é o cara que precisa ser salvo) e na presença desta indomável guerreira numa nebulosa Londres. Impulsionada pela invejável química do casal Gal Gadot e Chris Pine, a diretora investe em inteligentes alívios cômicos, a maioria deles envolvendo as descobertas da princesa dentro deste mundo moderno e as suas "dúvidas" quanto o sexo oposto, mantendo o ótimo ritmo da película ao longo do preciso segundo ato. Não se engane, porém, com o aparente tom cômico da película. Fiel ao cenário bélico proposto pelo longa, Jenkins mostra propriedade ao reproduzir o clima de desesperança e dor deste período. Com sutileza e elegância, ela investe em sequências genuinamente comoventes, momentos maduros que não só ajudam a moldar o arco da protagonista, como também embasam uma breve crítica acerca da irracionalidade humana. Somado a isso, é interessante ver o esmero da trama ao equilibrar realidade e mitologia, ao utilizar a guerra em prol da construção do antagonista, uma solução astuta que adiciona um tempero especial a um vilão apenas funcional.


Este, aliás, não é o único deslize de Mulher-Maravilha. Como de costume nos filmes de origem, o argumento peca ao estabelecer a conexão entre os personagens. Por mais que a interação entre Diane e Steve seja um dos pontos altos do longa, o romance dos dois é conduzido com inegável pressa, o que se torna evidente no último ato. Apesar do esforço de Patty Jankins ao estreitar o vínculo do "casal", o roteiro pesa a mão ao tentar transformar uma breve relação num caso de amor, subaproveitando a faceta mais pura do altruísmo ao flertar com o sentimentalismo dentro do clímax. Um excesso amenizado pela sincera performance do astro Chris Pine, impecável ao se despir do rótulo de protagonista e interpretar um homem charmoso obrigado a rever as suas convicções sobre a guerra. Ainda entre os problemas, os insossos coadjuvantes se revelam o "calcanhar de Aquiles" da película. Embora alguns funcionem isoladamente, como o carismático ator\espião vivido Saïd Taghmaoui, os personagens secundários possuem arcos bem limitados e só ganham um espaço maior nas sequências de ação. O que falar, por exemplo, da enigmática Drª Maru (Elena Anaya), uma figura inicialmente interessante, com uma aura obsessiva, mas que ganha um desenvolvimento quase constrangedor. O mesmo, aliás, acontece com o nefasto Lundendorff (Danny Houston), um vilão maniqueísta que nunca se torna relevante.


Uma série de pequenos erros que, verdade seja dita, se tornam irrelevantes diante da magnética presença da Mulher-Maravilha. Ciente das responsabilidades em torno do projeto, Patty Jenkins é cuidadosa ao capturar a essência desta icônica super-heroína, ao valorizar a sua força, idealismo e o seu poder de inspiração. Com sensibilidade e um viés igualitário (detalhe para o figurino "discreto" da protagonista), a realizadora brilha ao reproduzir tanto a doçura e o forte senso de justiça da princesa, quanto a sua impetuosa reação num cenário conservador e majoritariamente masculino. Embora nunca recorra ao teor panfletário, Jenkins é irônica ao utilizar a "impertinente" Diane como um símbolo de representatividade feminina, uma mulher guerreira capaz de rivalizar com qualquer homem seja na força, no diálogo ou então na inteligência. Com ela não existem portas fechadas. O arco da heroína, entretanto, não se reduz às questões de gênero. No momento em que aponta a sua mira para a nossa natureza, o longa é criativo ao colocar em cheque a inocência e o otimismo da personagem, expondo a sua relutância à medida que propõe um choque de realidade envolvendo o melhor o pior do ser humano. Pena que, na hora H, Jenkins se vê presa a (genérica) figura do vilão, esvaziando uma reflexão pertinente em prol do velho embate do bem contra o mal. Alheia a tudo isso, Gal Gadot absorve a imponência da sua Diana Prince com rara naturalidade. Após atrair os holofotes em Batman Vs Superman, a ex-modelo e ex-militar israelense realmente se transforma em cena, indo da inocente à furiosa com vigor e desenvoltura. Indo além da sua louvável entrega física, Gadot exibe recursos dramáticos ao abraçar os sentimentos mais íntimos da sua personagem, elevando o nível da trama ao realçar a humanidade por trás desta figura tão 'badass'. O resultado é uma interpretação emblemática à altura do passado glorioso da princesa de Themyscira.


E como se não bastasse a performance triunfante de Gal Gadot, Mulher-Maravilha se revela também um espetáculo visual de altíssima qualidade. Oriunda do cinema dramático, Patty Jenkins nos presenteia com planos memoráveis, buscando referência nos quadrinhos ao construir sequências que mais parecem pinturas. Fazendo um inventivo uso do recurso da câmera lenta, a realizadora evidencia não só o aspecto poderoso da protagonista, como também os gestos mais plásticos das amazonas, criando um balé cênico incrementado pelas engenhosas coreografias, pelos estilosos efeitos visuais e pela dedicação física do elenco feminino. Como não citar, por exemplo, a primorosa cena nas trincheiras inimigas, um momento arrepiante capaz de traduzir a essência 'girl power' da película. Através de suaves movimentos de câmera, expressivos planos abertos e enquadramentos milimetricamente orquestrados, Jenkins enaltece a presença da heroína ao deixar o lado super falar mais alto, tornando os saltos de Diana, o seu magnífico uniforme e o reluzente laço da verdade naturalmente impactantes aos olhos do público. Indo de encontro aos filmes anteriores do Universo Cinematográfico da DC, a realizadora investe em cenários mais claros e iluminados, ponto para a texturizada fotografia de Matthew Jensen (Game of Thrones), tornando a ação bem nítida e agradável. Num todo, aliás, apesar do exagero em torno do clímax, o CGI é utilizado com bom gosto, principalmente na concepção dos luminosos efeitos incidentais (explosões, fogo e raios), impedindo que o filme repetisse os problemas estéticos (entenda escuridão) de Batman Vs Superman e Esquadrão Suicida.


No embalo dos enérgicos riffs de Hans Zimmer e Junkie XL, Mulher-Maravilha é, em sua mais pura essência, um filme que se orgulha da sua origem nerd. Uma aventura consistente recheada de sequências poderosas, saltos "posados" e muita bravura. Além disso, após uma série de fracassados filmes solos, as mulheres são finalmente bem representadas numa obra universal e empolgante, um filme significativo por sua mensagem igualitária e por simbolizar a retomada do Universo DC nos cinemas. O laço da verdade não me deixa mentir.

Nenhum comentário: