sábado, 22 de junho de 2019

Crítica | The Post: Guerra Secreta

Uma história que se repete

Steven Spielberg é um gênio. The Post é uma aula de cinema. Mais do que simplesmente revelar os bastidores da publicação do 'Pentagon Papers', um documento ultra-secreto que revelou os "podres" de quatro presidentes norte-americano durante a Guerra do Vietnã, o realizador amplia ao máximo o escopo da trama ao encontrar no caso o 'background' para tecer brilhantes comentários sobre uma série de urgentes questões. Com um roteiro denso e dinâmico em mãos, assinado pela novata Liz Hannah, Spielberg envolve ao, a partir do tenso processo de produção da reportagem, discorrer com propriedade sobre a liberdade da imprensa, a isenção das empresas jornalísticas, o papel questionador dos grandes veículos, o negócio por trás das linhas editoriais e (em especial) a independência feminina dentro de um universo machista.
 

Sem a intenção de fazer um Todos os Homens do Presidente (1976) versão 2.0, Steven Spielberg mostra o seu vasto repertório cinematográfico ao transitar do micro para o macro com enorme espontaneidade, extraindo o máximo do seu talentoso elenco num 'mise en scene' incapaz de reduzir tudo a verborragia. Nos momentos em que se concentra na busca frenética pela notícia, nos conflitos éticos entre os executivos e no bate-boca institucional, o realizador surpreende ao investir num ponto de vista móvel e ativo, colocando a sua invasiva câmera para passear entre os personagens em planos longos\sequenciais enérgicos, estilosos e indiscutivelmente imersivos. Uma abordagem elétrica impulsionada pela crua montagem e pela radiante performance de Tom Hanks, magnífico com o editor que lutou pela publicação da matéria. Já nos momentos mais íntimos, a maioria deles concentrados na soberba performance de Meryl Streep, Spielberg pisa conscientemente no freio e mostra a sua face mais elegante ao capturar os sentimentos presentes em cena com indescritível sinceridade.


Na pele da pressionada Key Graham, uma mulher de fibra que, após o suicídio do seu marido, se vê obrigada a assumir o respeitado jornal Washington Post, a laureada atriz emociona ao interiorizar os sentimentos de uma mulher "tradicional" disposta a mudar o seu 'status quo' em busca de independência, a se fazer ouvir num ambiente majoritariamente masculino. Com o seu usual refinamento, Meryl Streep encanta ao construir uma personagem consciente da sua responsabilidade, da sua vulnerabilidade, da sua importância dentro da empresa. O que fica bem claro, em especial, na sequência da troca de telefonemas, um ponto de ruptura que atesta a sensibilidade de Spielberg em discutir o papel da mulher numa sociedade aberta a decisivas mudanças. No dia em que esta monumental atriz completa 70 anos, impressiona ver a sua energia em cena, a sua imponência, o seu vigor jovial. Estamos diante de uma estrela da Sétima Arte no auge da sua forma artística.


Um predicado obviamente valorizado pela força do texto de Liz  Hannah que, quando necessário, esbanja intensidade ao capturar o grito de liberdade feminino na década de 1970 através da figura de Graham. Outro ponto que agrada, e muito, é a sagacidade do argumento em explorar os ideais políticos dos protagonistas, ao revelar o misto de tristeza e frustração de ambos diante dos fatos apresentados. É aqui, inclusive, que a meu ver The Post toca no tema mais espinhoso, principalmente numa época em que o jornalismo é tão desvalorizado\questionado pela falta de isenção das suas linhas editoriais. Um contexto que, verdade seja dita, casa brilhantemente com o momento em que vivemos, com a explosão de veículos parciais, responsáveis por artigos corrompidos pelo viés político\partidário e movidos por interesses escusos de grandes corporações. É interessante ver aqui, aliás, o quão grande pode ser um estrago causado por um vazamento, o que, em tempos de The Intercept e Lava Jato, só aproxima a trama da realidade observada pelo público brasileiro.


Voltando ao passado, a cereja do bolo na obra Steven Spielberg, entretanto, está na sagacidade do diretor em dialogar com outra grande reportagem do WP, o caso Watergate. Como se não bastasse a inspirada sequência final, que abre um belíssimo gancho para uma sessão dupla com Todos os Homens do Presidente, o diretor é perspicaz ao usar os grampos reais do presidente Richard Nixon com um viés extremamente elucidativo, conferindo uma aura documental que só eleva o nível do material apresentado. Por mais que, na ânsia de estabelecer as suas mensagens, Spielberg pese a mão em algumas cenas, The Post: Guerra Secreta é um retrato precioso sobre a face mais corajosa da imprensa, uma ode ao bom jornalismo ministrada por um dos grandes cineastas da Sétima Arte. Um filme indispensável em tempos de alienação coletiva, indignação seletiva e 'fake news'.


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