Steven Spielberg é um gênio. The
Post é uma aula de cinema. Mais do que simplesmente revelar os bastidores da
publicação do 'Pentagon Papers', um documento ultra-secreto que revelou os
"podres" de quatro presidentes norte-americano durante a Guerra do
Vietnã, o realizador amplia ao máximo o escopo da trama ao encontrar no caso o
'background' para tecer brilhantes comentários sobre uma série de urgentes
questões. Com um roteiro denso e dinâmico em mãos, assinado pela novata Liz
Hannah, Spielberg envolve ao, a partir do tenso processo de produção da
reportagem, discorrer com propriedade sobre a liberdade da imprensa, a isenção
das empresas jornalísticas, o papel questionador dos grandes veículos, o
negócio por trás das linhas editoriais e (em especial) a independência feminina
dentro de um universo machista.
Sem a intenção de fazer um Todos
os Homens do Presidente (1976) versão 2.0, Steven Spielberg mostra o seu vasto
repertório cinematográfico ao transitar do micro para o macro com enorme
espontaneidade, extraindo o máximo do seu talentoso elenco num 'mise en scene'
incapaz de reduzir tudo a verborragia. Nos momentos em que se concentra na
busca frenética pela notícia, nos conflitos éticos entre os executivos e no
bate-boca institucional, o realizador surpreende ao investir num ponto de vista
móvel e ativo, colocando a sua invasiva câmera para passear entre os
personagens em planos longos\sequenciais enérgicos, estilosos e
indiscutivelmente imersivos. Uma abordagem elétrica impulsionada pela crua
montagem e pela radiante performance de Tom Hanks, magnífico com o editor que
lutou pela publicação da matéria. Já nos momentos mais íntimos, a maioria deles
concentrados na soberba performance de Meryl Streep, Spielberg pisa
conscientemente no freio e mostra a sua face mais elegante ao capturar os
sentimentos presentes em cena com indescritível sinceridade.
Na pele da pressionada Key
Graham, uma mulher de fibra que, após o suicídio do seu marido, se vê obrigada
a assumir o respeitado jornal Washington Post, a laureada atriz emociona ao
interiorizar os sentimentos de uma mulher "tradicional" disposta a
mudar o seu 'status quo' em busca de independência, a se fazer ouvir num
ambiente majoritariamente masculino. Com o seu usual refinamento, Meryl Streep
encanta ao construir uma personagem consciente da sua responsabilidade, da sua
vulnerabilidade, da sua importância dentro da empresa. O que fica bem claro, em
especial, na sequência da troca de telefonemas, um ponto de ruptura que atesta
a sensibilidade de Spielberg em discutir o papel da mulher numa sociedade
aberta a decisivas mudanças. No dia em que esta monumental atriz completa 70
anos, impressiona ver a sua energia em cena, a sua imponência, o seu vigor
jovial. Estamos diante de uma estrela da Sétima Arte no auge da sua forma
artística.
Um predicado obviamente
valorizado pela força do texto de Liz Hannah
que, quando necessário, esbanja intensidade ao capturar o grito de liberdade
feminino na década de 1970 através da figura de Graham. Outro ponto que agrada,
e muito, é a sagacidade do argumento em explorar os ideais políticos dos
protagonistas, ao revelar o misto de tristeza e frustração de ambos diante dos
fatos apresentados. É aqui, inclusive, que a meu ver The Post toca no tema mais
espinhoso, principalmente numa época em que o jornalismo é tão
desvalorizado\questionado pela falta de isenção das suas linhas editoriais. Um
contexto que, verdade seja dita, casa brilhantemente com o momento em que
vivemos, com a explosão de veículos parciais, responsáveis por artigos
corrompidos pelo viés político\partidário e movidos por interesses escusos de
grandes corporações. É interessante ver aqui, aliás, o quão grande pode ser um
estrago causado por um vazamento, o que, em tempos de The Intercept e Lava
Jato, só aproxima a trama da realidade observada pelo público brasileiro.
Voltando ao passado, a cereja do
bolo na obra Steven Spielberg, entretanto, está na sagacidade do diretor em
dialogar com outra grande reportagem do WP, o caso Watergate. Como se não
bastasse a inspirada sequência final, que abre um belíssimo gancho para uma
sessão dupla com Todos os Homens do Presidente, o diretor é perspicaz ao usar
os grampos reais do presidente Richard Nixon com um viés extremamente
elucidativo, conferindo uma aura documental que só eleva o nível do material
apresentado. Por mais que, na ânsia de estabelecer as suas mensagens, Spielberg
pese a mão em algumas cenas, The Post: Guerra Secreta é um retrato precioso
sobre a face mais corajosa da imprensa, uma ode ao bom jornalismo ministrada
por um dos grandes cineastas da Sétima Arte. Um filme indispensável em tempos
de alienação coletiva, indignação seletiva e 'fake news'.
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