quinta-feira, 20 de junho de 2019

Crítica | Democracia em Vertigem

Do Brasil para o Mundo

Em tempos de ânimos tão aflorados, escrever sobre Democracia em Vertigem é uma missão muito delicada. Imagine, portanto, o quão corajosa teve que ser a diretora Petra Costa para tirar do papel um documentário sobre a turbulência política e a polarização social que tomou conta do nosso país na última década. Sem nunca esconder a sua visão ideológica, o que, de fato, é o primeiro grande acerto desta produção original Netflix, a cineasta - filha de perseguidos pela ditadura e neta de um dos sócio-fundadores da empreiteira Andrade Gutierrez - é alarmista ao refletir sobre a fragilidade do nosso regime político e as perigosas brechas abertas pelas abruptas mudanças acontecidas nos últimos anos. Implacável enquanto cronista da nossa história recente, Petra instiga ao buscar no passado as justificativas para tamanho pessimismo, refletindo com perspicácia sobre como o país com inúmeras perspectivas do primeiro governo Luís Inácio Lula da Silva se transformou numa nação dividida por um discurso vazio, hipócrita, seletivo, conservador e autoritário. 



Embora Democracia em Vertigem peque ao associar esta ruptura à um só dos lados da equação, quando é senso comum que parte deste discurso divisivo ganhou eco em uma esquerda autoritária “cega” pelo poder, Petra Costa é cuidadosa ao pintar um retrato em sua maioria fiel aos fatos. Recheado de primorosas imagens de arquivo, a diretora é objetiva ao estabelecer a origem do mito em torno da figura do metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva, ao expor sob uma perspectiva íntima\familiar as sequelas da ditadura, ao concretizar a sensação de esperança que tomou conta do país com o triunfo de um ex-líder sindical na corrida presidencial. Com uma narração pessoal e honesta, a cineasta não esconde do espectador a sua alegria, o misto de euforia, satisfação e expectativa que tomou conta daqueles que enxergaram em Lula um instrumento de transformação. O que, de fato, se concretizou rapidamente ao longo do seu elogiado primeiro mandato. Sob uma perspectiva ágil e objetiva, Petra é igualmente habilidosa ao pontuar também as suas ressalvas, ao situar o público quanto aquilo que o então popular presidente teve que sacrificar para chegar ao poder. É aqui, aliás, que está ao meu ver o melhor de Democracia em Vertigem. Quando decide se debruçar sobre os bastidores do jogo político e como isso corroeu o governo petista nos anos seguintes, Petra Costa mostra uma assertividade impressionante. Com fluidez narrativa e insights criativos, a maneira com que o doc traz a construtora Andrade Gutierrez para o centro da trama, por exemplo, é brilhante, a realizadora não titubeia em, com consciência, tirar do papel um franco ‘mea culpa’ político. Algo que o governo petista sempre relutou em fazer. Apesar de jogar limpo sobre a sua ideologia política, o que explica a sua natural tendência a um dos lados, ela rompe com o discurso ingênuo\partidário ao entender que aqueles que eram o símbolo de mudança também erraram. E feio. 


Ainda que, outra vez, o longa pegue muito leve quanto as feridas causadas na população por escândalos como o Mensalão\Petrolão e a participação ativa de nomes do alto escalão petista nestes esquemas de corrupção, Petra Costa é objetiva ao situar o espectador sobre os perigosos laços criados por Lula (e reforçados pela futura presidente Dilma Roussef) com partidos como o PMDB e uma série de políticos que anos mais tarde entrariam na mira da justiça. Além de refletir sobre os erros da gestão PT, o doc é inteligente ao questionar o ‘modus operandi’ de um governo, ao escancarar a inércia de um presidente sem apoio no Congresso ou no Senado. O jogo é esse e quem topa “jogar” tem que arcar com as consequências de certas alianças. A partir desta constatação, Petra é astuta ao nos contextualizar quanto aos bastidores da derrocada do governo Dilma. Com questionamentos justos sobre a fragilidade do processo, reforçada por áudios já conhecidos vazados pela operação Lava Jato, a cineasta “invade” o congresso para colher depoimentos reveladores daqueles que fizeram parte dos bastidores da cassação. No ritmo da enérgica montagem, Petra extrai dos dois lados explicações preciosas, indo bem além do circo midiático que foi a votação na Câmara dos Deputados ao mostrar por A + B a implosão de um governo que perdeu apoio dentro e fora de Brasília. Nas entrelinhas, aliás, Petra é sagaz ao capturar estas mudanças no congresso, ao escancarar o pior da política brasileira, ao nos situar quanto ao fortalecimento de grupos “ruidosos” até então subestimados pelo poder federal. Paralelamente a isso, é tocante ver a serenidade da ex-presidente Dilma nas entrevistas cedidas ao documentário, o misto de resignação, frustração e dignidade de uma (gostem ou não) vítima do jogo político. É assim que ela é tratada ao longo da produção, uma visão, de fato, bem embasada pela diretora. Outro ponto que agrada, e muito, é a sutileza de Petra em dar voz aos anônimos, àqueles que verdadeiramente sofrem diante dos desmandos governamentais, extraindo depoimentos espontâneos e por vezes genuinamente sábios. Sem querer revelar muito, a sequência em que uma funcionária do Palácio da Alvorada divaga sobre o impeachment da Dilma é fantástica.


O mesmo, porém, não podemos dizer do problemático terço final. Mais do que escorregar no terreno da parcialidade, Petra Costa frustra ao se prender demais a figura de Lula e de menos ao alarmismo proposto pelo documentário. Por mais que a realizadora traga para o público preciosas imagens inéditas sobre os bastidores da midiática prisão do ex-presidente, o longa pesa a mão na construção de uma imagem quase messiânica dele. Se por um lado o doc acerta ao levantar suspeitas sobre a fraca tese do juiz Sérgio Moro e da Operação Lava Jato para condená-lo, uma visão reforçada pelos recentes vazamentos do site The Intercept, por outro ele frustra ao aceitar a narrativa construída por Lula sem questioná-la por um segundo sequer. Ao contrário da primeira metade da trama, quando o ‘mea culpa’ sobre a gestão petista é enfático, Petra não consegue desconstruir o cidadão Luís Inácio da Silva com a mesma isenção. Para ela, claramente, a esperança ainda residia nele, algo que deturpa a visão sobre o todo. Neste trecho, sob a perspectiva defendida pelo doc, ou o povo brasileiro chorava por Lula, ou queimava bandeiras do PT, socava bonecos, ofendia gratuitamente o ex-presidente. Não existe meio termo. O exagero salta aos olhos. Ao longo do projeto, inclusive, a realizadora peca também na maneira enviesada com que trata as manifestações populares. Contundente ao capturar o vazio do discurso, o teor autoritário\fascista e o agressivo sentimento de raiva de parte daqueles que ajudariam a eleger o atual presidente Jair Bolsonaro, Petra não revela a mesma inclinação no momento em que decide tratar as manifestações pró-Dilma\Lula como 100% pacíficas e ordeiras. Na época, os casos de hostilidade se tornaram igualmente comuns dentro das passeatas da esquerda, entre eles a perseguição a veículos de comunicação, a profissionais no exercício da sua profissão e àqueles que por algum motivo surgiam para provocar os ânimos. Uma crise de imparcialidade potencializada pela opção da diretora em não abordar o episódio da facada ao então candidato Bolsonaro, um assunto delicado que só ajudaria a solidificar o teor pessimista do documentário.


O que não quer dizer, entretanto, que isto diminua o impacto dos fatos expostos e invalide a mensagem alarmista proposta por Democracia em Vertigem. Consciente que a história se dá em ciclos, Petra Costa contorna os deslizes no quesito imparcialidade ao enxergar na fissura social\polarização do nosso país a ponte para um futuro incerto e indiscutivelmente perigoso. Sem medo de colocar o dedo na ferida e por vezes cortar na própria carne, a cineasta nos presenteia com um recorte didático, pessoal, sensível e envolvente sobre o caótico jogo político brasileiro, escancarando para o mundo com a propriedade esperada os bastidores de um sistema que parece ter se acostumado a plantar esperança e colher corrupção.

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