sexta-feira, 7 de junho de 2019

Crítica | I Am Mother

Alerta de descontaminação


Se tem algo que me enche os olhos na Netflix é o seu entusiasmo com o gênero Sci-Fi. Já escrevi isso neste espaço outras vezes, mas volto a frisar o quão importante é ver uma popular marca defender com unhas e dentes um segmento com essência tão reflexiva. Independentemente do nível das produções, o recente The Prospect, por exemplo, está entre os meus favoritos do ano até o momento, o fato é que a gigante do streaming já merece ser conhecida como a grande “janela” do gênero na atualidade. O que fica bem claro com os dois grandes lançamentos desta semana. No rastro da estreia da quinta temporada da aclamada produção original Black Mirror, I Am Mother faz jus ao viés crítico\alarmista da ficção-científica ao levantar instigantes questões acerca do rumo da humanidade. Embora sacrifique um pouco da complexidade do tema proposto ao se preocupar demais com a construção do suspense em torno do futuro distópico aqui apresentado, o imersivo longa dirigido pelo promissor Grant Sputore provoca ao nos levar para uma realidade em que robôs se tornaram os responsáveis pela reconstrução da raça humana, testando as nossas expectativas ao refletir sobre os motivos que nos colocaram nesta situação. Um destino inquietante que, mesmo diante das “palatáveis” intenções da película, culmina numa discussão filosófica inteligente envolvendo criador, criatura e o viés autodestrutivo do ser-humano. 


Fazendo um esperto uso das regras do pai da robótica Isaac Asimov, I Am Mother redimensiona o indivíduo humano ao colocar em cheque a nossa pretensa superioridade sobre aquilo que criamos. Sem a intenção de se explicar demais, o que deixa generosas (e bem-vindas) brechas para o público especular sobre a raiz dos problemas em questão, o argumento assinado pelo próprio Grant Sputore, ao lado de Michael Lloyd Green, intriga ao sugerir um cenário meio esperançoso, meio pessimista. Nós não sabemos bem o que está por vir. Quais as reais intenções daquela instalação. Logo na fantástica sequência de abertura, o diretor esbanja delicadeza ao exibir o copo meio cheio, ao capturar o carinho e o esmero da IA (voz de Rose Byrne) na gênese da sua primeira filha. Ao som do ‘hit’ materno Baby Mine, do clássico Dumbo (1941), Sputore consegue numa montagem de poucos minutos criar um ambiente afetuoso e quase paradisíaco, um oásis de paz num contexto supostamente devastador. Fruto desta hermética realidade, a Filha (Clara Rugaard) cresce saudável confiando nos ensinamentos da sua improvável figura materna. “Eu não queria ser humana”, diz ela em certo momento. Uma conexão evidente que passa a ficar estremecida quando o espaço é invadido por uma estranha (Hilary Swank), uma humana que poderia ser a resposta que a jovem precisava para se convencer que o mundo lá fora não estava mais “contaminado”. Disposta a seguir os ensinamentos da sua Mãe, a jovem decide prestar os primeiros socorros na forasteira, sem sequer desconfiar que a chegada de um novo elemento poderia mudar drasticamente a rotina dentro daquele espaço e redefinir as suas impressões sobre o futuro. 


Com uma abordagem narrativa crescente e insinuante, I Am Mother tem um início que faz jus as principais regras da ficção-científica. Temos um futuro distópico instigante, uma mitologia bem estabelecida, personagens com motivações complexas, algumas pequenas pistas que nos levam a colocar em cheque a realidade dos fatos. Grant Sputore é cuidadoso ao inicialmente esfriar as coisas, ao estabelecer a funcional rotina da filha, dando aos mais atentos a chance de ter uma participação ativa dentro da história. Ao não se explicar demais, o longa permite que o público projete as suas impressões sobre a relação das duas, especule sobre as intenções da Mãe, o destino da raça humana, a verdadeira posição da filha dentro da instalação. Ela estaria protegida ou aprisionada? A Mãe seria a salvadora ou a algoz? Enquanto sustenta está tênue dinâmica, I Am Mother nos mantém sempre fisgados, principalmente pela sagacidade com que dá ao espectador a oportunidade de enxergar o todo melhor do que a protagonista. Isso porque, ao contrário da filha, nós fãs de Sci-Fi sabemos o quão perigoso pode ser confiar demais numa Inteligência Artificial. É incrível perceber como, nas entrelinhas, Sputore sugere uma reinterpretação das regras de Asimov, usando uma simples aula de ética como a primeira grande pista de que existia algo mais específico por trás da programação do robô. Em uma só sequência, o realizador estabelece com propriedade as intenções da Mãe e o seu senso de proteção da humanidade. Algo que, sem querer revelar muito, tem bastante a dizer sobre o contexto macro da trama. Outro ponto que agrada, e muito, é forma com que a produção original Netflix explora o conceito de “contaminação”. Indo muito além do que se espera, Sputore é astuto ao encontrar aqui a chance para refletir sobre o comportamento do ser humano, sobre as nossas autodestrutivas “falhas de programação” e as sequelas causadas por elas. É difícil se aprofundar neste tema sem evitar os spoilers, mas, à medida que a trama avança, o roteiro é eficaz ao nos deixar em sérias dúvidas sobre quem é a voz da razão neste embate filosófico entre homem e máquina. 


Curiosamente, entretanto, I Am Mother perde ritmo no momento em que decide dar contornos mais físicos a esta dicotômica rixa. Mesmo sem nunca sacrificar o viés reflexivo da obra, Grant Sputore se escora em soluções convencionais ao potencializar o clima de tensão com o surgimento da forasteira interpretada por Hillary Swank. Embora a sua presença signifique um acréscimo de energia à trama, o roteiro se estica além do necessário ao trocar os ‘insights’ sutis por um suspense mais reconhecível, inchando a película ao não se contentar em trabalhar a crise de confiança da filha diante da luz dos novos fatos. Na verdade, o problema não está na jovem protagonista. Longe disso. A relação entre ela e a sua “mãe” é inquietante, o seu arco dramático só cresce ao longo da história e a jovem Clara Ruugard exibe intensidade ao capturar o misto de inocência\medo\vulnerabilidade da sua personagem. É na figura da estranha que, de fato, estão as passagens menos inspiradas do texto. Num primeiro momento, ela adiciona possibilidades ao longa, reforça as nossas dúvidas quanto a realidade dos fatos. Não demora muito, porém, para percebermos que estamos diante de uma figura oca e com motivações confusas. Ainda que a sua verdade seja inquestionável e que Hilary Swank injete peso na sua performance, eu me peguei pensando em possibilidades muito mais complexas do que o filme pareceu ser capaz de entregar, como, por exemplo, na apenas sugerida mensagem anti-aborto ou no subtexto religioso embutidos na obra. É duro analisar o que um filme não entregou, mas, aqui, a sensação de oportunidade perdida me pareceu bem evidente. Além disso, Sputore esvazia algumas das discussões mais profundas com a intenção de proteger os segredos dos seus personagens, retardando o choque de ideias franco sem grandes motivos. Menos mal que, quando decide colocar o dedo na ferida, I Am Mother o faz com objetividade e inteligência, rendendo um clímax provocante e indiscutivelmente coerente com a proposta do longa. 


Impulsionado pela soberba performance de Rose Byrne, impecável ao capturar o misto de frieza, racionalidade e dissimulação da sua Mãe, e pelo estiloso design de produção, o visual digitalizado da expressiva IA é singular, I Am Mother cumpre as expectativas ao nos tirar da zona de conforto quanto a nossa pretensa superioridade. Sem a intenção de responder todas as perguntas, Grant Sputore entrega um Sci-Fi robusto, com alguns criativos ‘insights’ filosóficos e uma visão própria sobre o complexo elo entre homem e máquina num ambiente “contaminado” pela irracionalidade dos seres humanos.

Nenhum comentário: