Os filmes de viagem do tempo são
tão populares por provocarem o imaginário do público. E se realmente tivéssemos
este poder? Usaríamos para unir os nossos pais como em De Volta para o Futuro
(1985)? Para livrar o mundo de uma epidemia como em Os Doze Macacos (1995)? Para caçar um perigoso assassino como em Alta Frequência (2000)? Para evitar um
ataque terrorista como em Contra o Tempo (2011)? Ou então para conquistar a
mulher que amamos como em Questão de Tempo (2013)? As possibilidades seriam
tantas... Mas as consequências também. O que fica bem claro no mais novo e
instigante título do gênero, o corajoso A Gente se Vê Ontem. Produzido pelo
ícone do cinema afro-americano Spike Lee, o longa dirigido por Stefan Bristol revigora
este particular subgênero ao trazê-lo para um contexto bem mais atual e
realístico. Inspirado por títulos como Faça a Coisa Certa (1989), Os Donos da
Rua (1991) e o recente Dope (2013), a surpreendente produção original Netflix compensa
os seus evidentes problemas de tom ao refletir sobre a vulnerável posição de um
jovem negro dentro da sociedade norte-americana, escondendo na roupagem
aventuresca uma pesada crítica política envolvendo a violência policial e as imutáveis
feridas causadas por esta rotineira mazela social.
E se você
pudesse corrigir uma injustiça e ao mesmo tempo salvar a vida de um ente
querido? Com base nesta inquietante indagação, Stefan Bristol mostra
perspicácia ao tirar do papel uma aventura fantástica com os dois pés fincados
na realidade. Sob uma perspectiva colorida, dinâmica e multirracial, valorizada
pela expressiva fotografia em tons quentes do promissor Felipe Vara de Rey, o enxuto e objetivo longa vai direto ao ponto ao
narrar as desventuras de C.J (Eden Duncan-Smith), uma jovem e genial
estudante que, ao lado do seu grande amigo Bash (Dante Crichlow), parecia perto
de criar uma máquina de deslocamento temporal. Com ela, a dupla poderia voltar
alguns dias no tempo e por alguns poucos minutos. Um feito que mudaria a vida
acadêmica de ambos e redefiniria as suas respectivas perspectivas de futuro.
Tudo muda, no entanto, quando o querido irmão de C.J, o introspectivo Calvin (Astro),
é morto por engano numa batida policial. Sem medir a consequência dos seus atos,
ela decide correr literalmente contra o tempo para evitar esta grande tragédia
pessoal, colocando a sua própria vida (e a de terceiros) em risco ao testar
perigosamente os limites do paradoxo temporal.
Mais do que
simplesmente reciclar uma fórmula muitas vezes explorada dentro do gênero, A
Gente se Vê Ontem envolve ao aplicá-la dentro de um novo, duro e reconhecível
contexto. Por mais que o longa, em algumas poucas situações, não consiga encontrar
o equilíbrio perfeito entre a aventura e o drama, o argumento assinado pelo
próprio Stefan Bristol compensa ao nunca (e de maneira alguma) atenuar a carga
realística proposta pela trama. Nós conhecemos essa realidade. Tanto C.J,
quanto Bash são jovens comuns. Conscientes que precisariam agarrar com unhas e
dentes a oportunidade que tinham para romper com um cruel círculo vicioso.
Enquanto visualmente See You Yesterday (no original) soa quase que como uma
escapista aventura da Sessão da Tarde, narrativamente o cenário é outro. Ao
longo do imersivo primeiro ato, Bristol é cuidadoso ao capturar o elo entre os
personagens, ao se preocupar em estabelecer as origens deles e os fortes
alicerces familiares que os sustentavam. Aqui não existe espaço para alguns
velhos estereótipos, nem tão pouco para o vitimismo. Desde cedo eles aprenderam
a lidar com as perdas, a superá-las, a se impor num ambiente por vezes impiedoso
e ameaçador. Sem nunca pesar a mão, o realizador é igualmente habilidoso ao
estabelecer também os problemas que os cercavam. No melhor estilo O Ódio Que
Você Semeia (2018), as tensões são evidentes. Um passo em falso e tudo pode
ruir. Mesmo nas passagens mais leves e aventurescas da produção, Bristol nunca priva o público da realidade que ameaça os seus protagonistas. Uma balança que sistematicamente pesa para o lado mais fraco.
Impecável ao
situar o público quanto a posição dos protagonistas dentro de uma estrutura
social desigual e muitas vezes injusta, A Gente Se Vê Ontem cresce ainda mais
no momento em que abraça sem um pingo de vergonha o viés Sci-Fi. Fiel a lógica
do gênero, Stefan Bristol eleva o senso de urgência da trama à medida que C.J
decide usar a Ciência para desafiar uma implacável mazela social. Embora a
sequência da primeira viagem no tempo seja visualmente decepcionante, o parco
uso do CGI reflete o baixíssimo orçamento da produção, o realizador logo acerta
os ponteiros ao se preocupar menos com as firulas estéticas e mais com as
consequências dos atos da protagonista. Sem nunca soar didático além do
necessário, Bristol é astuto ao usar o viés fantástico “apenas” como um
subterfúgio para a construção da sua crítica envolvendo a violência policial nas
periferias norte-americanas. A fantasia, aqui, surge como uma esperança, nunca
como uma solução. No momento em que o longa parecia disposto a flertar com
algumas escapistas conveniências narrativas, inclusive, o realizador deixa a
realidade falar mais alto na hora certa, culminando num clímax crítico e genuinamente
corajoso que só reforça a alegoria social proposta pela trama. Um desfecho impactante que, de certa forma, nos ajuda a relevar
alguns dos deslizes do longa, em especial nas passagens mais dramáticas. Por
mais que o trabalho de Bristol enquanto diretor seja dinâmico e vistoso, nos
momentos mais intimistas a impressão que fica é que ele não consegue extrair o
máximo do seu carismático\entrosado elenco. Enquanto Dante Crichlow, com uma
intensidade natural, transmite o misto de fidelidade, medo e desespero
experimentados pelo seu Bash sempre que preciso, Eden Duncan-Smith e
principalmente o rapper Astro não alcançam o mesmo nível de angústia em
situações pontuais dentro da história. Ainda que a química entre os irmãos seja
evidente e que Eden, em especial, consiga criar uma resiliente protagonista com
nuances bem próprias, a impressão que fica é que os problemas de tom da obra seriam
menores com um par de performances mais fortes.
Contando
ainda com uma participação especial digna de aplausos, A Gente se Vê Ontem faz
jus aos melhores filmes de viagem do tempo ao associar a complexidade do tão
temido paradoxo temporal à vulnerável posição de um jovem negro num ambiente social
hostil e violento. Sob as asas de uma das maiores vozes do cinema norte-americano,
Stefan Bristol atende as expectativas ao entregar uma aventura peculiar, com
uma questionadora carga realística, um filme capaz de entreter e impactar ao
escancarar uma desconcertante (e muitas vezes inalterável) rotina.
2 comentários:
Excelente avaliação do filme Thiago. Parabéns, vou conferir o longa.
Valeu, obrigado pela visita e pelo comentário.
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