M. Night Shyamalan detesta o lugar
comum. Seus projetos, gostem ou não, trazem sempre mensagens significativas
para o autor. Óbvio que nem sempre ele acerta. Mas, mesmo nos seus piores
filmes, é inquestionável que estamos diante de um diretor com algo de novo a
oferecer sobre temas\gêneros tão saturados. O que fica mais uma vez bem claro
em Vidro, o corajoso desfecho de uma trilogia que nasceu da despretensão. No
vácuo do estrondoso O Sexto Sentido (1999), o Corpo Fechado (2000) não causou o
mesmo impacto do que o seu antecessor na época do seu lançamento. Num momento
em que o segmento andava totalmente enfraquecido, Shyamalan tirou do papel um
filme de super-herói “pés no chão”, com uma original abordagem mundana que, embora
não tenha emplacado num primeiro momento, ganharia um status cult nos anos
seguintes. Uma visão singular que, para a surpresa de muitos, voltou a ser
explorada mais de uma década depois com o enervante Fragmentado (2016). Um
verdadeiro fã da nona arte, em especial dos quadrinhos de super-heróis, colocou
um ponto final na sua entressafra criativa num filme instigante, tenso e
provocador. Outra vez Shyamalan colocou as nossas expectativas em cheque,
encontrando na simples mudança de gênero o seu ‘plot twist’. Boom! De uma hora
para outra nascia um expressivo novo Universo Cinematográfico.
Eis que chegamos a Vidro, a
ambiciosa peça final desta quebra-cabeça. No papel, diante da empolgante
sequência pós-crédito de Fragmentado, M. Night Shyamalan só precisava entregar
uma coisa: o duelo entre o Vigilante (Bruce Willis) e a Besta (James McAvoy).
Era isso que o público queria ver. Sem grande esforço, o realizador poderia produzir
uma continuação épica, com grandes batalhas, novos heróis\vilões e um desfecho
impactante que só atestasse a força da ideia criada lá na década de 1990. Isso,
entretanto, não seria Shyamalan. Como disse na abertura deste texto, na cabeça
do autor existe uma mensagem por trás do embate entre super-heróis num universo
realístico. Em que humanos não poderia (ou deveriam) ter poderes. E aqui,
finalmente, ele a revela. É fácil entender porque muitos torceram o nariz para
Vidro. Mais uma vez, Shyamalan subverte fórmulas e padrões ao entregar algo
seu, com a sua assinatura estética e narrativa. Esqueça o épico. Esqueça o ‘fan-service’
pelo ‘fan-service’. Esqueça os clichês. Esqueça a plasticidades nos embates. Imperfeições
narrativas a parte, e elas são muitas, o diretor ousa ao se manter fiel à
essência desta franquia. Estamos diante de um suspense com toques de filmes de
herói quase todo ambientado num mesmo cenário, um asséptico hospício, em que
uma psiquiatra (Sarah Poulson) decide fazer os agora detidos Kevin, David e
Elijah (Samuel L. Jackson) acreditarem que eles não passavam de humanos com
sérios problemas mentais.
Sim, mais uma vez M. Night
Shyamalan traz à tona a discussão sobre a real identidades deles. O que, para ser
bem sincero, me deixou frustrado inicialmente. Após Corpo Fechado e
Fragmentado, era de se esperar que o ‘plot’ avançasse. Que víssemos, talvez, a
ampliação do universo. Um estudo mais profundo de personagem. Não, o argumento
assinado pelo próprio diretor entende que mais uma vez a luta deles deve ser
para se assumir enquanto o que são. Após entregar tudo aquilo que a gente
esperava ver no tenso, conciso e enérgico primeiro ato, Shyamalan pisa com os
dois pés no freio ao colocar Vigilante e Fera sob os cuidados da Drª Ellie
Staple. Com diálogos expositivos e algumas discussões redundantes sobre os “poderes”
deles, o longa parece pegar o espectador (os novos principalmente) pelas mãos
na tentativa de reforçar o elo entre os três filmes. De situar o universo em
que eles estão inseridos. O que explica, inclusive, o retorno de personagens
como o já adulto Joseph Dunn (Spencer Treat Clark), a sobrevivente Casey
(Anya-Taylor Joy) e a “mama” Vidro (Charlayne Woodard), três peças que, embora
sirvam a engrenagem no fim, ficam bem mais soltas do que deveriam ao longo deste
terceiro capítulo. Tudo soa muito reconhecível. O potencial parece inexplorado.
A sensação de já vi isso antes é inegável em algumas passagens do inchado
segundo ato. Quando Shyamalan, tal qual os seus personagens, parecia encurralado
com as suas convicções, preso à uma ideia fixa, Vidro ganha um novo rumo no
momento em que o trio de protagonistas\antagonistas (isso vai depender da sua
perspectiva) é finalmente colocado livre num mesmo ambiente.
Engenhoso ao, outra vez,
alimentar certas dúvidas quanto aos poderes dos seus personagens, algo
potencializado pela persuasiva presença da Drª Ellie, M. Night Shyamalan
recoloca o longa nos trilhos à medida que passa a se concentrar na dinâmica
entre eles, em especial na relação do errático Kevin (A.K.A Horda) com o manipulativo
Mrº Vidro. Assim como em Corpo Fechado, o antagonista surge novamente como o
catalisador da história, o homem responsável por extrair o melhor\pior daquele
que ele considera um super-herói. A diferença, aqui, está na forma com que o
seu personagem é explorado. A sua “ausência” física em parte da obra é
provocante. Numa verdadeira ode ao fantástico, Shyamalan se arrisca ao na
transição para o último ato criar um cenário extremamente aberto. Ambíguo. Mais
do que simplesmente diluir as linhas que separa heróis e vilões, o realizador
subverte a estrutura do gênero na sua tentativa de glorificar o “super”. Graças
a uma reviravolta espertíssima, mas introduzida com inegável pressa, o diretor
faz um genial uso da metalinguagem ao questionar àqueles que, ainda hoje,
tratam os super-heróis como um subproduto. Como algo dispensável, popular e
porque não perigoso. A partir de uma perspectiva realística e positivamente ingênua,
Shyamalan sai em defesa do efeito transformador causado pelo gênero, do impacto
social\cultural\afetivo, tratando os seus personagens como verdadeiros bastiões
da esperança num mundo cinzento, pessimista e insensível a causa alheia. Para
Shyamalan, os fins justificam os meios, culminando num último ato muito mais
complexo e arriscado do que a trama parecia sugerir. Além disso, apesar do exagerado
didatismo do texto, em alguns momentos o longa é curto e objetivo ao
estabelecer algumas informações importantes sobre o passado de alguns dos
personagens. Sem querer revelar muito, a origem da Besta, em especial, é surpreendente
e só comprova a criatividade do realizador na construção do seu universo. O
mesmo, aliás, podemos dizer dos bem encaixados (e já nostálgicos) flashbacks.
Com James McAvoy (outra vez) numa
performance genuinamente assustadora, é impressionante a facilidade com que ele
“transita” entre as histriônicas personalidades do seu Kevin e as torna
reconhecíveis aos olhos do público, Vidro pontua um arco iniciado há quase duas
décadas reverenciando o efeito inspirador causado pelos super-heróis dentro da
cultura pop. Sem vergonha de “apelar” para o elo afetivo do público com o
gênero em questão, M. Night Shyamalan entrega uma continuação ousada e imperfeita,
um filme desnivelado, por vezes arrastado, mas nunca previsível. Um desfecho
que, seguindo a lógica da trilogia, se nega a entregar aquilo que o
público esperava ver. Ou pelo menos da forma que o público esperava ver.
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