Escrever sobre Cafarnaum é algo
muito difícil. Estamos diante de uma obra que fala por si só. Um filme
enfático. Corajoso. Com um viés crítico implacável. Indicado ao Oscar de Melhor
Filme Estrangeiro, o longa dirigido por Nadine Labaki invade a realidade dos
marginalizados ao escancarar as mais profundas feridas causadas pela
desigualdade social. Consciente da sua responsabilidade enquanto porta-voz das
mais inocentes vítimas da marginalização, as crianças, a realizadora libanesa
desconcerta ao imprimir em tela uma realidade universal, desoladora, um retrato
doloroso sobre um jovem astuto disposto a processar os seus país na justiça por
negligência parental. Com a propriedade necessária para questionar o círculo
vicioso por trás da situação do protagonista, Labaki se insurge contra o
abandono familiar\estatal sem um pingo de condescendência, provocando reações
conflitantes ao expor sob a desprotegida perspectiva infantil o quão perversa
pode ser a vida.
Cafarnaum é o tipo de produção
que não parece interessada em contemporizar. Quer dizer, pelo menos em sua
maior parte. Embora situado num país com tradições próprias, o Líbano, os fatos
aqui narrados se revelam infelizmente reconhecíveis em qualquer grande capital
do mundo. Quantos Zain’s não existem numa comunidade do Rio de Janeiro, nos bairros
pobres de Chicago, nas periferias de Paris... Se é para mostrar a miséria de
muitos, Nadine Labaki faz como deve ser, sem floreios, filtros, ou qualquer
atenuante do gênero. Por mais que o longa tenha momentos cômicos e\ou
inspiradores, eles só ajudam a compor melhor a rotina dos marginalizados
personagens. Com uma proposta crítica digna dos movimentos de vanguarda, mas
uma abordagem rítmica de fazer inveja a qualquer grande blockbuster, a diretora
fisga a nossa atenção quase que instantaneamente ao seguir os passos de Zain (Zain
Al Rafeea), um garoto libanês que desde muito cedo se acostumou a ser
explorado. Sem tempo para poder ser criança, ele era obrigado a trabalhar ao
lado dos seus muitos irmãos para ajudar no sustento da casa. Uma rotina pesada
que é quebrada quando ele descobre que a sua igualmente jovem irmã seria
“entregue” a um vendedor da região. Revoltado com os seus relapsos pai, Zain
decide fugir rumo a um destino incerto, encontrando no cruel mundo que o cercava
o melhor e o pior do ser humano.
Narrado em perspectiva, um
recurso que serve brilhantemente ao excelente andamento do longa, Cafernaum
esmurra o estômago do seu público ao revelar os motivos que levaram o pequeno
Zain a processar os seus pais. Transitando entre o passado e o presente do
protagonista com desenvoltura, Nadine Labaki testa as nossas expectativas ao
construir o retrato daquele menino, ao literalmente identifica-lo em meio à
multidão. Através dele e da sua reconhecível jornada ela procura dar voz a
todos, aos abandonados, aos explorados, aos negligenciados, aos esquecidos.
Embora frutos de um mesmo mal, a desigualdade social, cada um dos inúmeros
jovens marginalizados ao redor do mundo tem a sua história para contar. Aos
olhos da nossa sociedade, porém, é muito mais fácil não ouvi-los, não
identifica-los. O vínculo gera comoção, a comoção gera responsabilidade. E é
justamente esse sentimento que Labaki parece querer extrair do espectador. É
impossível não se sensibilizar com a jornada de Zain. À medida que o longa
invade a realidade do jovem, conhecemos o irmão protetor, o filho revoltado, o
adolescente preparado para viver nas ruas, o jovem desprotegido. Zain é forte,
resiliente, precoce, mas também solitário, triste e infantil. Num primeiro
momento, Labaki se concentra na face mais madura do garoto. Ele pertence aquele
mundo, xinga como adulto, carrega um peso maior do que poderia aguentar,
vislumbra o problema antes mesmo dele acontecer. É quando Zain precisa se
expor, porém, que Labaki expõe o lado mais frágil do guri. Os contrastes, pouco
a pouco, se tornam evidentes. À medida que o protagonista cruza o caminho de
outras pessoas, entre elas a amorosa imigrante ilegal Rahill (Yordanos
Shiferaw) e o seu cativante filho Yonas, novos sentimentos começam a aflorar
nele. O que fica bem claro, em especial, na primorosa sequência envolvendo um
exótico cosplay de Homem-Aranha. Ali, num piscar de olhos, cai a ficha que
realmente estamos diante de uma criança, de um menino que, mesmo após tanta miséria
e exploração, deixa um resquício de encantamento transparecer ao se deparar com
o que poderia ser um super-herói.
Na verdade, são nestes momentos
mais sutis que Cafernaum consegue ser ainda mais enfático em sua crítica.
Enquanto a realidade ganha contornos naturalmente dramáticos devido a abordagem
nua e crua de Nadine Labaki, os seus questionamentos são mais sugestivos,
reflexivos. Diante de uma espiral de problemas tão complexos, a realizadora é
certeira ao não reduzir tudo ao mérito da culpa. Ao longo da jornada de Zain,
ela se insurge contra uma série temas\tabus. O alvo primário, óbvio, é a
desigualdade social. Ao posicionar a sua câmera na perspectiva do pequeno
protagonista, a diretora é contundente ao mostrar a inércia coletiva de
todos para qual aquela situação. As pessoas passam e não esboçam qualquer
reação. Nenhum mínimo gesto de preocupação. Não existe ficcionalização aqui.
Essa é a realidade de muitos. Sem querer revelar muito, Labaki preza
pontualmente pelo naturalismo ao traduzir a rotina dos seus personagens, a
dinâmica entre eles e o contato deles com a sujeira, com a falta de espaço, de
dignidade e com os perigos da vida nas ruas de um grande centro urbano.
Conforto? Essa palavra não existe aqui. Mesmo neste cenário nitidamente desolador,
entretanto, é legal ver o cuidado da cineasta em defender a importância do
afeto. Todo ambiente pode se tornar mais “habitável” quando se tem carinho,
amor e dedicação. O que fica bem claro, por exemplo, na intensa relação entre
Zain e Rahill, uma personagem imponente que tem muito a acrescentar ao arco do
protagonista. Até porque é através dela e das novas experiências do jovem que
Labaki estende o alcance da sua crítica. Na transição para a segunda metade da
obra, ela coloca o dedo em profundas feridas ao refletir sobre a
negligência estatal, os arcaicos costumes do seu país e principalmente sobre a
responsabilidade assumida pelos país no momento em que colocam um filho no
mundo.
Sem nunca soar panfletária, é
aqui que Nadine Labaki parece mais “enfurecida”. Por mais que, como qualquer
filme do gênero que se preze deve fazer, Cafernaum dê voz aos dois lados da
moeda, a realizadora não titubeia em refutar a condescendência quanto a este
assunto. A responsabilidade, aqui, precisa ser dividida. Não existe
ingenuidade, nem tão pouco pena por parte dela. Se o Estado não ajuda, eles (pais) também não
se ajudaram ao trazer para o mundo uma vida que não poderiam sustentar. Ainda
que as explicações das figuras paterna\materna sejam compreensíveis, eles
também são vítimas desta nefasta equação social, o próprio longa parece aos poucos desacreditá-las.
Para Labaki nada justifica o contexto em que os Zain’s da vida são obrigados a
habitar. Talvez até por essa opinião forte, a cineasta peque pelo
maniqueísmo quanto a construção do intransigente pai, um personagem que
definitivamente precisaria de um pouco mais de tempo para nos convencer da sua verdade.
Por falar em eventuais pequenos deslizes, na transição para o clímax, após
quase duas horas de realidade e sofrimento, Labaki decide enxergar
discretamente o copo meio cheio. Uma concessão justa, que em nada fere o senso
de verossimilhança da história, mas que pode soar para alguns mais “ensolarada”
do que a trama como um todo parecia sugerir. Na minha opinião, nenhum problema
quanto ao caminho escolhido por Labaki para pontuar a sua trama. Até porque,
verdade seja dita, fica difícil se apegar a qualquer pequeno defeito narrativo
quando nos deparamos com a poderosa performance de Zain Al Rafeea. O que esse garoto entrega em cena é absurdo. Uma das
maiores atuações infantis da história do cinema. No centro do quadro em quase
toda a película, o estreante arrebata ao interiorizar o misto de dor, raiva,
resiliência e esperança do seu personagem com uma naturalidade desconcertante.
Graças a condução sutil de Labaki, que, fiel ao teor documental,
interfere bem pouco no drama do protagonista, Zain desfila em cada sequência um
repertório de nuances e expressões digna dos grandes. Ele parece realmente
viver (ou ter vivido) aquelas experiências. Um trabalho puro, convicto e
intenso capaz de levantar a bandeira defendida pela obra sem nunca sacrificar
a sua autenticidade infantil.
Um verdadeiro manifesto em prol
dos esquecidos (crianças, imigrantes ilegais, marginalizados), Cafarnaum impacta
ao propor um choque de realidade urgente, incisivo e indiscutivelmente pesado.
Com personagens de uma complexidade ímpar e um elenco recheado de não atores, o
que, diga-se de passagem, explica o nível de sinceridade impresso em tela,
Nadine Labaki entrega um filme para todos os públicos, uma obra acessível,
universal e dinâmica que merece ser tratada como um silencioso pedido de ajuda.
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