quinta-feira, 16 de maio de 2019

Crítica | Cafarnaum

O manifesto dos esquecidos

Escrever sobre Cafarnaum é algo muito difícil. Estamos diante de uma obra que fala por si só. Um filme enfático. Corajoso. Com um viés crítico implacável. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o longa dirigido por Nadine Labaki invade a realidade dos marginalizados ao escancarar as mais profundas feridas causadas pela desigualdade social. Consciente da sua responsabilidade enquanto porta-voz das mais inocentes vítimas da marginalização, as crianças, a realizadora libanesa desconcerta ao imprimir em tela uma realidade universal, desoladora, um retrato doloroso sobre um jovem astuto disposto a processar os seus país na justiça por negligência parental. Com a propriedade necessária para questionar o círculo vicioso por trás da situação do protagonista, Labaki se insurge contra o abandono familiar\estatal sem um pingo de condescendência, provocando reações conflitantes ao expor sob a desprotegida perspectiva infantil o quão perversa pode ser a vida. 



Cafarnaum é o tipo de produção que não parece interessada em contemporizar. Quer dizer, pelo menos em sua maior parte. Embora situado num país com tradições próprias, o Líbano, os fatos aqui narrados se revelam infelizmente reconhecíveis em qualquer grande capital do mundo. Quantos Zain’s não existem numa comunidade do Rio de Janeiro, nos bairros pobres de Chicago, nas periferias de Paris... Se é para mostrar a miséria de muitos, Nadine Labaki faz como deve ser, sem floreios, filtros, ou qualquer atenuante do gênero. Por mais que o longa tenha momentos cômicos e\ou inspiradores, eles só ajudam a compor melhor a rotina dos marginalizados personagens. Com uma proposta crítica digna dos movimentos de vanguarda, mas uma abordagem rítmica de fazer inveja a qualquer grande blockbuster, a diretora fisga a nossa atenção quase que instantaneamente ao seguir os passos de Zain (Zain Al Rafeea), um garoto libanês que desde muito cedo se acostumou a ser explorado. Sem tempo para poder ser criança, ele era obrigado a trabalhar ao lado dos seus muitos irmãos para ajudar no sustento da casa. Uma rotina pesada que é quebrada quando ele descobre que a sua igualmente jovem irmã seria “entregue” a um vendedor da região. Revoltado com os seus relapsos pai, Zain decide fugir rumo a um destino incerto, encontrando no cruel mundo que o cercava o melhor e o pior do ser humano.


Narrado em perspectiva, um recurso que serve brilhantemente ao excelente andamento do longa, Cafernaum esmurra o estômago do seu público ao revelar os motivos que levaram o pequeno Zain a processar os seus pais. Transitando entre o passado e o presente do protagonista com desenvoltura, Nadine Labaki testa as nossas expectativas ao construir o retrato daquele menino, ao literalmente identifica-lo em meio à multidão. Através dele e da sua reconhecível jornada ela procura dar voz a todos, aos abandonados, aos explorados, aos negligenciados, aos esquecidos. Embora frutos de um mesmo mal, a desigualdade social, cada um dos inúmeros jovens marginalizados ao redor do mundo tem a sua história para contar. Aos olhos da nossa sociedade, porém, é muito mais fácil não ouvi-los, não identifica-los. O vínculo gera comoção, a comoção gera responsabilidade. E é justamente esse sentimento que Labaki parece querer extrair do espectador. É impossível não se sensibilizar com a jornada de Zain. À medida que o longa invade a realidade do jovem, conhecemos o irmão protetor, o filho revoltado, o adolescente preparado para viver nas ruas, o jovem desprotegido. Zain é forte, resiliente, precoce, mas também solitário, triste e infantil. Num primeiro momento, Labaki se concentra na face mais madura do garoto. Ele pertence aquele mundo, xinga como adulto, carrega um peso maior do que poderia aguentar, vislumbra o problema antes mesmo dele acontecer. É quando Zain precisa se expor, porém, que Labaki expõe o lado mais frágil do guri. Os contrastes, pouco a pouco, se tornam evidentes. À medida que o protagonista cruza o caminho de outras pessoas, entre elas a amorosa imigrante ilegal Rahill (Yordanos Shiferaw) e o seu cativante filho Yonas, novos sentimentos começam a aflorar nele. O que fica bem claro, em especial, na primorosa sequência envolvendo um exótico cosplay de Homem-Aranha. Ali, num piscar de olhos, cai a ficha que realmente estamos diante de uma criança, de um menino que, mesmo após tanta miséria e exploração, deixa um resquício de encantamento transparecer ao se deparar com o que poderia ser um super-herói.


Na verdade, são nestes momentos mais sutis que Cafernaum consegue ser ainda mais enfático em sua crítica. Enquanto a realidade ganha contornos naturalmente dramáticos devido a abordagem nua e crua de Nadine Labaki, os seus questionamentos são mais sugestivos, reflexivos. Diante de uma espiral de problemas tão complexos, a realizadora é certeira ao não reduzir tudo ao mérito da culpa. Ao longo da jornada de Zain, ela se insurge contra uma série temas\tabus. O alvo primário, óbvio, é a desigualdade social. Ao posicionar a sua câmera na perspectiva do pequeno protagonista, a diretora é contundente ao mostrar a inércia coletiva de todos para qual aquela situação. As pessoas passam e não esboçam qualquer reação. Nenhum mínimo gesto de preocupação. Não existe ficcionalização aqui. Essa é a realidade de muitos. Sem querer revelar muito, Labaki preza pontualmente pelo naturalismo ao traduzir a rotina dos seus personagens, a dinâmica entre eles e o contato deles com a sujeira, com a falta de espaço, de dignidade e com os perigos da vida nas ruas de um grande centro urbano. Conforto?  Essa palavra não existe aqui. Mesmo neste cenário nitidamente desolador, entretanto, é legal ver o cuidado da cineasta em defender a importância do afeto. Todo ambiente pode se tornar mais “habitável” quando se tem carinho, amor e dedicação. O que fica bem claro, por exemplo, na intensa relação entre Zain e Rahill, uma personagem imponente que tem muito a acrescentar ao arco do protagonista. Até porque é através dela e das novas experiências do jovem que Labaki estende o alcance da sua crítica. Na transição para a segunda metade da obra, ela coloca o dedo em profundas feridas ao refletir sobre a negligência estatal, os arcaicos costumes do seu país e principalmente sobre a responsabilidade assumida pelos país no momento em que colocam um filho no mundo.


Sem nunca soar panfletária, é aqui que Nadine Labaki parece mais “enfurecida”. Por mais que, como qualquer filme do gênero que se preze deve fazer, Cafernaum dê voz aos dois lados da moeda, a realizadora não titubeia em refutar a condescendência quanto a este assunto. A responsabilidade, aqui, precisa ser dividida. Não existe ingenuidade, nem tão pouco pena por parte dela. Se o Estado não ajuda, eles (pais) também não se ajudaram ao trazer para o mundo uma vida que não poderiam sustentar. Ainda que as explicações das figuras paterna\materna sejam compreensíveis, eles também são vítimas desta nefasta equação social, o próprio longa parece aos poucos desacreditá-las. Para Labaki nada justifica o contexto em que os Zain’s da vida são obrigados a habitar. Talvez até por essa opinião forte, a cineasta peque pelo maniqueísmo quanto a construção do intransigente pai, um personagem que definitivamente precisaria de um pouco mais de tempo para nos convencer da sua verdade. Por falar em eventuais pequenos deslizes, na transição para o clímax, após quase duas horas de realidade e sofrimento, Labaki decide enxergar discretamente o copo meio cheio. Uma concessão justa, que em nada fere o senso de verossimilhança da história, mas que pode soar para alguns mais “ensolarada” do que a trama como um todo parecia sugerir. Na minha opinião, nenhum problema quanto ao caminho escolhido por Labaki para pontuar a sua trama. Até porque, verdade seja dita, fica difícil se apegar a qualquer pequeno defeito narrativo quando nos deparamos com a poderosa performance de Zain Al Rafeea. O que esse garoto entrega em cena é absurdo. Uma das maiores atuações infantis da história do cinema. No centro do quadro em quase toda a película, o estreante arrebata ao interiorizar o misto de dor, raiva, resiliência e esperança do seu personagem com uma naturalidade desconcertante. Graças a condução sutil de Labaki, que, fiel ao teor documental, interfere bem pouco no drama do protagonista, Zain desfila em cada sequência um repertório de nuances e expressões digna dos grandes. Ele parece realmente viver (ou ter vivido) aquelas experiências. Um trabalho puro, convicto e intenso capaz de levantar a bandeira defendida pela obra sem nunca sacrificar a sua autenticidade infantil.


Um verdadeiro manifesto em prol dos esquecidos (crianças, imigrantes ilegais, marginalizados), Cafarnaum impacta ao propor um choque de realidade urgente, incisivo e indiscutivelmente pesado. Com personagens de uma complexidade ímpar e um elenco recheado de não atores, o que, diga-se de passagem, explica o nível de sinceridade impresso em tela, Nadine Labaki entrega um filme para todos os públicos, uma obra acessível, universal e dinâmica que merece ser tratada como um silencioso pedido de ajuda.  

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