Uma crônica íntima sobre a rotina
de duas famílias no coração da América segregada. Mudbound: Lágrimas no
Mississípi é um filme corajoso. Não só pela intensidade e pelo realismo com que
escancara as mazelas deste doloroso período da história norte-americana, mas
principalmente pela forma com que o faz. Fiel a estrutura literária do romance que
inspira a película, escrito por Hilary Jordan, o longa dirigido por Dee Rees
faz um primoroso uso do recurso da narração ao desbravar o complexo estado de
espírito dos seus personagens. Os seus anseios, frustrações, medos e
sentimentos mais reprimidos. Sem a intenção de interferir excessivamente no
peso dos relatos, a realizadora é cuidadosa ao em boa parte da trama não se
preocupar em desenvolver arcos narrativos individuais. A vida, aqui, é por si
só dramática.
Sob esta perspectiva quase
naturalista, o que explica o ritmo gradativo com que o roteiro caminha, Rees é
enfática ao escancarar o impacto do ódio na realidade dos protagonistas. A
absurda desigualdade, a pretensa superioridade branca, a submissão das
mulheres, a violência, o racismo, a falta de perspectivas. Esses e outros temas
são abordados com brilhantismo por Rees, que, ao contrário de muitos filmes do
gênero, faz questão de realçar também o caráter das suas matriarcas, a gentil
Laura (conduzida com um misto de ternura e raiva por Carey Mulligan) e a
destemida Florence (encarada com uma força impressionante por Mary J. Blidge). Duas
personagens muito verdadeiras que, sabiamente, expõe também a dura realidade
das mulheres numa sociedade machista.
O mesmo, aliás, podemos dizer do
paralelo traçado entre o radiante Jamie (Garreth Hedlund, intenso como de
costume) e o introspectivo Ronsel (Jason Mitchell). Fazendo um precioso uso do
contexto da Segunda Guerra Mundial, Rees encontra no laço entre os dois a ponte
que precisava para mostrar a face mais nefasta do ódio racial nos EUA, propondo
uma desconcertante reflexão sobre o papel do negro na sociedade da época ao
revelar que a guerra pode ter terminado para alguns, mas a opressão não.E isso,
verdade seja dita, sem apelar para o unidimensionalismo. Embora se sustente em
alguns gatilhos emocionais um tanto quanto previsíveis, vide a detestável
figura patriarcal interpretada pelo excelente Jonathan Banks, em nenhum momento
o longa pesa a mão. Infelizmente, aquela ali era a realidade de muitos. O que
fica bem claro, em especial, quando nos deparamos com o personagem vivido pelo
excelente Jason Clarke. Ele não odiava ninguém. Ele não queria prejudicar
ninguém. Ele só agia como um ser superior, como se pudesse mandar\cobrar em
qualquer pessoa negra na hora que quisesse e da forma que quisesse.
Uma herança trágica do doloroso
período da escravidão que Dee Rees consegue explorar como ninguém dentro da sua
obra. Enfim, com um visual impactante, a impressão que fica no final do filme é
que meus pés estão sujos de lama, uma direção madura e uma construção de mundo
totalmente verossímil, Mudbound: Lágrimas no Mississipi termina causando
fascínio pela forma com que defende\exalta a grandeza dos sobreviventes deste
período. Dos homens e mulheres que, mesmo diante da cólera e da indigna rotina
de abusos, seguiam de cabeça erguida, protegendo os seus e encarando os duros obstáculos
de frente na luta para se fazer ouvir. Uma voz resiliente e esperançosa que não
pode ser calada.
2 comentários:
Nossa quero assistir e sempre após seus comentários perfeito,nem sei o que é melhor sua opinião ou o filme.Obrigada.
Valeu Thais. Obrigado pelos elogios. Mas os filmes sempre são melhores. kkkkkk
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