quinta-feira, 4 de abril de 2019

Crítica | Mudbound: Lágrimas no Mississipi

Uma voz que não pode ser silenciada

Uma crônica íntima sobre a rotina de duas famílias no coração da América segregada. Mudbound: Lágrimas no Mississípi é um filme corajoso. Não só pela intensidade e pelo realismo com que escancara as mazelas deste doloroso período da história norte-americana, mas principalmente pela forma com que o faz. Fiel a estrutura literária do romance que inspira a película, escrito por Hilary Jordan, o longa dirigido por Dee Rees faz um primoroso uso do recurso da narração ao desbravar o complexo estado de espírito dos seus personagens. Os seus anseios, frustrações, medos e sentimentos mais reprimidos. Sem a intenção de interferir excessivamente no peso dos relatos, a realizadora é cuidadosa ao em boa parte da trama não se preocupar em desenvolver arcos narrativos individuais. A vida, aqui, é por si só dramática.



Sob esta perspectiva quase naturalista, o que explica o ritmo gradativo com que o roteiro caminha, Rees é enfática ao escancarar o impacto do ódio na realidade dos protagonistas. A absurda desigualdade, a pretensa superioridade branca, a submissão das mulheres, a violência, o racismo, a falta de perspectivas. Esses e outros temas são abordados com brilhantismo por Rees, que, ao contrário de muitos filmes do gênero, faz questão de realçar também o caráter das suas matriarcas, a gentil Laura (conduzida com um misto de ternura e raiva por Carey Mulligan) e a destemida Florence (encarada com uma força impressionante por Mary J. Blidge). Duas personagens muito verdadeiras que, sabiamente, expõe também a dura realidade das mulheres numa sociedade machista.


O mesmo, aliás, podemos dizer do paralelo traçado entre o radiante Jamie (Garreth Hedlund, intenso como de costume) e o introspectivo Ronsel (Jason Mitchell). Fazendo um precioso uso do contexto da Segunda Guerra Mundial, Rees encontra no laço entre os dois a ponte que precisava para mostrar a face mais nefasta do ódio racial nos EUA, propondo uma desconcertante reflexão sobre o papel do negro na sociedade da época ao revelar que a guerra pode ter terminado para alguns, mas a opressão não.E isso, verdade seja dita, sem apelar para o unidimensionalismo. Embora se sustente em alguns gatilhos emocionais um tanto quanto previsíveis, vide a detestável figura patriarcal interpretada pelo excelente Jonathan Banks, em nenhum momento o longa pesa a mão. Infelizmente, aquela ali era a realidade de muitos. O que fica bem claro, em especial, quando nos deparamos com o personagem vivido pelo excelente Jason Clarke. Ele não odiava ninguém. Ele não queria prejudicar ninguém. Ele só agia como um ser superior, como se pudesse mandar\cobrar em qualquer pessoa negra na hora que quisesse e da forma que quisesse.


Uma herança trágica do doloroso período da escravidão que Dee Rees consegue explorar como ninguém dentro da sua obra. Enfim, com um visual impactante, a impressão que fica no final do filme é que meus pés estão sujos de lama, uma direção madura e uma construção de mundo totalmente verossímil, Mudbound: Lágrimas no Mississipi termina causando fascínio pela forma com que defende\exalta a grandeza dos sobreviventes deste período. Dos homens e mulheres que, mesmo diante da cólera e da indigna rotina de abusos, seguiam de cabeça erguida, protegendo os seus e encarando os duros obstáculos de frente na luta para se fazer ouvir. Uma voz resiliente e esperançosa que não pode ser calada.

2 comentários:

Thais Reder disse...

Nossa quero assistir e sempre após seus comentários perfeito,nem sei o que é melhor sua opinião ou o filme.Obrigada.

thicarvalho disse...

Valeu Thais. Obrigado pelos elogios. Mas os filmes sempre são melhores. kkkkkk