São por filmes assim que mantenho
esse pequeno blog em atividade. Em meio ao frenesi das cada vez mais imponentes
produções hollywoodianas, está cada vez mais difícil encontrar no "cinemão" atual obras espontâneas,
despretensiosas e/ou honestas em sua proposta. Quem lê os meus posts sabe
que eu sou um entusiasta dos grandes blockbusters, do escapismo, do senso épico
dos filmes de super-heróis, da magia das produções Disney, da releitura de
verdadeiros clássicos. É triste ver, entretanto, que diante do apetite voraz da
indústria pelo lucro fácil, a autenticidade tem se perdido pelo caminho. Tem
ficado reduzida ao revigorante e seleto mercado ‘indie’. Uma corrente que,
felizmente, tem encontrado uma limitada, mas audível voz nos serviços de
streaming. O que fica bem claro quando nos deparamos com esta pequena pérola
chamada Corações Batendo Alto. Lançado diretamente no mercado doméstico no
Brasil, o longa dirigido pelo promissor Brett Haley (do ótimo O Herói) comove
ao imprimir em cada diálogo e em cada cena um grau de sinceridade reconfortante.
A partir de uma premissa amplamente explorada pelo gênero, o duro processo de
transição da adolescência para a vida adulta, o realizador é criativo ao propor
um cativante choque geracional entre um pai sonhador e a sua prática filha,
usando a música como uma espécie de agente catalisador ao defender que algumas mudanças são
irremediáveis. O resultado é um drama familiar vibrante,
com atuações fortes, uma direção sensível e uma abordagem verdadeira que tem
muito a dizer sobre esta dura fase da vida.
Com uma pegada natural que me
lembrou muito as obras de John Carney (Apenas Uma Vez, Sing Street), Hearts
Beat Lound (no original) encanta pela delicadeza com que invade a descomplicada
relação entre pai e filha. Uma visão moderna e urbana que ajuda a refrescar um
‘plot’ num primeiro momento batido. Em outras palavras, você provavelmente já
viu esta história antes, mas poucas vezes contada com tamanha franqueza. Com
roteiro assinado pelo próprio Brett Haley, ao lado de Marc Basch, o longa acompanha
a jornada de Frank (Nick Offerman), um cantor que, após fazer um relativo
sucesso no passado, se manteve ligado a música como o dono de uma decadente
loja de discos em Nova Iorque. Sem grandes pretensões, ele se vê obrigado a
sair da sua zona de conforto quando a sua filha, a prática e dedicada Sam (Kiersey Clemons), se mostra irredutível
quanto a opção de estudar medicina na Califórnia. Com dificuldades para manter
a loja diante do ‘boom’ das plataformas de música digitais, ele decide passar o
ponto após 17 longos anos no negócio na busca por uma nova fonte de renda para
ajudar a bancar os estudos da sua filha. Num daqueles acasos do destino, porém,
uma música composta por ele e a talentosa Sam ganha um repentino status dentro
do Spotfy, reacendendo uma chama que parecia adormecida neste agora pacato
homem de meia idade.
Corações Batendo Alto é o tipo de obra que traz uma série de elementos
naturalmente cativantes. Os personagens, por exemplo, são singulares e
carismáticos. Vide o barman boa praça vivido por um inesgotável Ted Denson e a
locatária afetuosa interpretada por uma iluminada Tony Colette. Os diálogos são
honestos dentro da sua proposta e comoventes. A trilha sonora é inebriante e
dita o tom ‘feel good’ da película com personalidade. O visual ‘indie’ colorido
e aconchegante confere a trama um grau de imersão ímpar. Nem parece que o longa
é ambientado numa megalópole do porte de Nova Iorque. A direção de arte
capricha na composição dos personalizados cenários, o que fica bem claro na
loja de Frank. Sem a necessidade de dizer muito, através daquele imersivo estabelecimento conhecemos um pouco mais da personalidade do
protagonista, da sua paixão pela música, do carinho ali dedicado. O que mais me
atraiu no longa, entretanto, foi o grau de integridade nas relações construídas
pelo roteiro. Embora, estruturalmente, o argumento até siga um caminho
convencional, Brett Haley não se contenta em reciclar clichês. Os sentimentos
pintados em tela, tal qual os acordes de Sam, são virtuosos. Sem
grande esforço é possível enxergar o intenso elo entre pai e filha. Por mais
evidente que sejam as diferenças entre eles, em alguns momentos eles dialogam
com o olhar.
Impecável ao escancarar o lado mais funcional de uma franca relação disfuncional,
o realizador realça a originalidade do seu texto ao subverter as nossas
expectativas quanto aquilo que esperamos ver em um choque geracional. Existe uma clara e contextualizada "inversão de papéis". Frank,
fruto dos anos 1970, acreditava nos seus sonhos, numa vida de desapego material,
de valor pelos pequenos prazeres da vida. Uma boa música, uma boa companhia, um
confortável lugar para se viver. Já Sam, fruto dos anos 2000, é a precocidade
em pessoa. Ao contrário do seu imaturo pai, ela tem planos, acredita no poder
da escolha segura, está disposta a se afastar daquilo que mais ama (incluindo o
seu incrível dom musical) para fazer o que julga certo na busca pela
concretização do que considera um futuro próspero. Deste choque de mentalidade
nasce o melhor de Corações Batendo Alto, principalmente pela forma realística
com que Brett Haley explora o elemento musical. Não estamos diante de mais um
Nasce Uma Estrela. Ter talento não significa ter sucesso, tampouco ter dinheiro. Sam sabia disso. Seu pai não. O mais legal, contudo, é que o
longa em nenhum momento contesta o respectivo amor dos dois pela música. Muito
pelo contrário. Através das intimistas canções, o roteiro é inteligente ao
expor mais de cada um dos protagonistas, ao desvendar os seus medos, anseios e
frustrações. A música, aqui, é tratada como uma manifestação quase terapêutica.
A música cura, alegra, une. Além disso, por mais que o argumento se concentre
na humana relação entre Frank e Sam, Haley é igualmente habilidoso ao permitir
que os dois tenham também um arco individual próprio. O que fica bem claro, em
especial, com a magnética relação entre a jovem e a sua namorada Rose (Sasha
Lane), uma história de amor por si só bonita e complexa filmada com enorme
sensibilidade pelas lentes do diretor.
E o coração de Hearts Beat Lound, de fato, reside nas marcantes
performances de Nick Offerman (Família do Bagulho) e Kiersey Clemons (Dope). Na
pele de um homem sonhador e de mente aberta, o versátil ator mostra mais uma
vez a sua subaproveitada intensidade dramática ao entregar um trabalho
complexo. O seu Frank é imaturo sim, mas nunca um tolo. Com muita energia no
olhar, Offerman cria uma figura paterna amiga e serena, um homem capaz de
respeitar o espaço da sua filha mesmo não concordando com a sua visão de mundo.
Além disso, como se não bastasse o seu reconhecido ‘timing cômico’, o ator
convence como um músico “enferrujado” nas revigorantes performances musicais,
se iluminando em cena sempre que o seu personagem faz aquilo que mais ama. O
mesmo, aliás, podemos dizer da magnética Kiersey Clemons. Uma atriz com muito a
oferecer ao mundo da Sétima Arte. Do alto dos seus 25 anos, ela cativa como uma
jovem adulta com uma visão pragmática sobre a realidade que a cerca. Quer
dizer, pelo menos no que diz respeito ao seu futuro. Com uma impressionante
performance vocal e muita emoção, Clemons interioriza o misto de sentimentos da
sua Sam com extrema propriedade, dialogando com questões extremamente
reconhecíveis com honestidade e intimidade. Sem querer revelar muito, as sequências
românticas entre ela e a radiante Sasha Lane são hipnotizantes, tamanho grau de
conexão impressão em tela. Algo que, aliás, se repete na entrosada parceria
entre Offerman e Clemons, que, graças a direção cuidadosa de Brett Haley,
ganham a oportunidade de exibir os sentimentos dos seus íntegros personagens
com uma bem-vinda naturalidade.
Um filme com essência ‘indie’, mas uma mensagem indiscutivelmente
universal, Corações Batendo Alto causa um misto de fascínio e encantamento pela
forma nada ingênua com que valida a visão de mundo dos seus respectivos
protagonistas. Não existe certo ou errado aqui. O futuro é uma história prestes
a ser escrita, como algumas das belas canções interpretadas por Frank e Sam.
3 comentários:
!! Filme leve e sensível , q faz a gente torcer pelos personagens !! Elenco eficiente e afinado , principalmente o pai super carismático! Ótimas músicas! Nem a história super clichê atrapalha pq foi tudo muito bem conduzido ! Filme surpreendente gostoso de ver !!
Saber brincar com os clichês é uma arte Junio. E esse filme sabe lidar com eles com enorme autenticidade.
Peço licença para fazer minhas integralmente todas as suas palavras sobre o cinema com as quais iniciou o texto. Na minha idade, cada vez sinto mais o cinema em filmes como este "Corações Batendo Alto" e "Apenas uma Vez". E como tem sido difícil hoje encontrar pérolas como essas. E as cenas entre Nick Offerman e Kiersen Clemons a mim são impossíveis de desviar a atenção. Vontade de parar e rever cada uma delas. Fora os citados coadjuvantes, de presença incrível (Ted Danson brincando consigo mesmo "costumava ser tão bonito", impagável). Uma pérola do cinema indie.
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