Vivemos em tempos difíceis. Numa
sociedade adoentada. Caótica. Atordoada. Um turbilhão de pressões, imposições e
emoções traduzidos com originalidade no ambicioso drama musical Vox Lux: O
Preço da Fama. Mais do que um retrato fidedigno sobre o efeito corrosivo do
showbiz, o longa dirigido por Brady Corbert ousa ao tecer comentários mais
profundos. Ao usar o por vezes vazio mundo da música pop como o seu objeto de estudo,
como um espelho para uma das muitas vítimas do círculo vicioso que nos cerca, o
realizador é cuidadoso ao transitar por temas delicados dentro dos
grandes centros urbanos. O resultado é uma crônica feroz que, embora um tanto
quanto errática no terço final, encontra na expressiva voz de Natalie Portman o
misto de tormento, vulnerabilidade e egocentrismo que a obra precisava para
escancarar uma realidade que nem todo filme do gênero teve a coragem de
mostrar.
E aqui, óbvio, eu me vejo obrigado a fazer uma ligação com o popular Nasce Uma Estrela. Por mais que as propostas dos dois longas sejam completamente distintas, Vox Lux impacta pela forma com que invade os bastidores de uma indústria sedutora, indulgente e reconhecidamente destrutiva. Enquanto o ótimo romance dramático estrelado por Lady Gaga apenas arranha a casca ao expor o processo de deterioração de um artista e os seus trágicos efeitos, Brady Cobert vai muito além ao traduzir tudo da forma mais realística possível. Dividido em dois atos, o “gênesis” (entre os anos 1999 e 2001) e o “regênesis” (em 2017), o argumento assinado pelo próprio diretor é inteligente ao revelar este ardiloso processo inicialmente sob a perspectiva de uma adolescente, optando por uma esperta estrutura linear ao estabelecer os motivos que levaram uma acuada jovem a se transformar numa estrela pop viciada, desequilibrada e tão imatura. Inicialmente centrada, resiliente e consciente das suas responsabilidades, Celeste (Raffey Cassidy, excelente) é repentinamente “tragada” por um mundo cheio de liberdades, de possibilidades. Um ambiente de facilidade, mas também de cobranças. Algumas a um preço bem caro. Com pulso narrativo e uma nítida preocupação em tornar tudo o mais universal possível, Cobert causa um misto de sensações ao expor a perda da inocência, a repentina pressão imposta pelo showbiz, as “alternativas” encontradas por ela para canalizar tamanha responsabilidade. De uma hora para outra ela é transformada em celebridade, um ícone em ascensão, um choque de realidade abrupto traduzido com sutileza ao longo da impactante primeira metade da obra.
O grande diferencial de Vox Lux,
porém, está na maneira encontrada pelo longa para potencializar a instabilidade
emocional e a degradação da protagonista. Esqueça o vício em drogas, os conflitos familiares,
a precocidade sexual. Obstáculos reconhecidamente comuns na jornada de jovens
estrelas que, embora também façam parte da realidade de Celeste, não estão em
cheque aqui. Numa opção que casa perfeitamente com a crítica ao vazio em torno
de uma geração, Brady Cobert choca ao trazer para o centro da sua crônica a trágica
rotina de atentados em escolas nos EUA. Uma sequela devastadora do caos social
que, infelizmente, chegou recentemente ao Brasil. Muito mais do que um simples gatilho
emocional, o brutal ato de violência surge como uma espécie de síntese do
tormento de Celeste. Uma ferida nunca cicatrizada. Uma opção propositalmente
drástica explorada com originalidade por Cobert. Ao atrelar parte do comportamento
errático da cantora a este traumático episódio, o realizador consegue não só
romper por completo com os clichês do gênero, como também dar um novo sentido
para os seus conflitos mais íntimos, se debruçando sobre os dolorosos dilemas
dela enquanto questiona a verdade por trás do que ela se tornou. Estamos diante
de uma sobrevivente ou mais um produto da mídia? Mais uma cantora que soube
aproveitar os seus “cinco minutos de fama” para sustentar uma carreira
baseada em hits ocos e em falas genéricas sobre o poder da autoestima?
Mesmo exagerando ao trazer novamente
a questão do atentado para o tempo presente, Brady Cobert é igualmente
habilidoso (e nada condescendente) ao realçar os efeitos do caótico processo de
“confecção” de uma estrela na identidade da adulta Celeste (Natalie Portman). Fazendo
um perspicaz uso da insinuação e
da narração onipresente de Willem Dafoe, o realizador causa um novo choque ao
estabelecer o produto final deste ambiente corrosivo. Um sentimento catalisado pelo gigantesco e convidativo lapso temporal que separa os dois atos. No embalo da soberba
performance de Natalie Portman, imparável na pele de uma estrela da música pop
explosiva, arredia e com sérios problemas para lidar com a fama, Cobert não
titubeia em desvendá-la durante um atarefado dia da sua vida, se concentrando
muito mais nos vícios do que nas suas virtudes ao destrinchar a personagem que ela
se tornou. Com uma direção enérgica, invasiva e uma enervante câmera na mão, o realizador
se insurge contra o vazio que tomou conta da rotina da protagonista ao capturar
tanto a sua arrogância e egocentrismo, quanto a sua fragilidade e
superexposição. Uma abordagem realística incrementada pela sagacidade da
película em imprimir nela traços de algumas populares estrelas da música pop, entre
elas Britney Spears, Lady Gaga, Katy Perry e Ariana Grande. Guardada as devidas
proporções, tudo soa muito verossímil aos olhos do espectador. Os excessos, os ataques, as contradições, a saturação. Somado a isso, nas entrelinhas,
Cobert é enfático ao questionar também o raso discurso de Celeste, das suas
canções, a perda da sua essência. Algo que fica evidente dentro da colorida, visualmente
impressionante, mas pasteurizada apresentação final. Num todo, aliás,
precisamos destacar a grudenta trilha sonora otimista composta pela criativa SIA,
uma das produtoras do longa. Além de servir como consultora para o desenvolvimento
de Celeste, a introspectiva cantora se mantém fiel a visão pop
defendida pela própria protagonista ao investir (a meu ver propositalmente) em ‘riffs’
cativantes e letras carregadas de clichês. Canções ocas bem reconhecíveis dentro do cenário atual. A exceção, de fato, fica pelo emocionante
primeiro número musical, quando ali, e só ali, identificamos a pureza da então sobrevivente.
Impactante enquanto o retrato de
uma jovem artista num ambiente recheado de “predadores”, Vox Luz derrapa ao não
saber bem para onde ir dentro do errático terço final. Se por um lado o longa
acerta ao investigar os conflitos da cantora Celeste, por outro vacila ao não se
aprofundar nos dilemas da mulher Celeste. Embora Brady Cobert dedique algum
tempo na construção do elo entre a protagonista e a sua introspectiva filha, o
arco materno é sumariamente esvaziado à medida que o clímax se aproxima. O que,
por sinal, torna tudo um tanto quanto vago aos olhos do público. O mesmo,
aliás, podemos dizer da relação entre Celeste e o seu empresário (vivido pelo sempre
carismático Jude Law) e a sua irmã (interpretada com intensidade por Stacy
Martin). Dois arcos subaproveitados que ajudam a explicar a queda de nível do
último ato. O foco está em Celeste, para o bem e para o mal. O problema, na
verdade, não está no frouxo senso de conclusão da obra, que, diante da
abordagem realística proposta, faz todo o sentido, mas na dose de desdém com
que a trama trata\pontua os ‘plots’ destes três importantes personagens de
apoio. Neste sentido, Nasce Uma Estrela entrega um relato bem mais completo e
coeso sobre aqueles que precisam conviver indiretamente com os “holofotes” da
fama.
Uma crônica urbana (e musical) sobre uma sociedade atormentada, Vox
Lux provoca ao usar a iconofilia da música pop como a porta de entrada para um
estudo sobre o vazio que nos cerca. Embora nem sempre atinja as suas elevadas
expectativas, Brady Cobert arrisca ao investigar algumas globalizadas sequelas do
nosso frenético estilo de vida sob a perspectiva do corrosivo mundo do showbiz,
extraindo o máximo deste cenário enquanto investiga a desordem emocional de uma
das inúmeras vítimas do medo, da insensibilidade e da artificialidade que nos
cerca.
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