A dura e velha realidade do artista
Nasce Uma Estrela, o original, de 1937, está entre os filmes mais à frente do seu tempo da sua geração. Numa
época em que o protagonismo feminino estava ainda diretamente associado ao
clichê do par romântico\donzela indefesa, o longa escrito e dirigido por
William A. Wellman deu a atriz Janet Gaynor a oportunidade de viver uma mulher
com voz própria, independente, capaz de lutar pelo que é seu num mundo regido
pelos homens. Com um olhar corrosivo sobre o mundo do ‘show biz’, o influente
drama foi enfático ao exibir as nocivas sequelas da superexposição numa
agridoce história de amor, uma subversão do clássico conto da gata borralheira
já que desta vez o príncipe encantado estava “quebrado” refém do vício e do
ostracismo. Uma dura e velha realidade que seguiu abreviando a carreira de
muitos artistas, o que por si só justifica a realização de uma nova versão de A
Star Is Born (no original). Mesmo sem nada de muito novo a acrescentar sobre o
tema em questão, o remake comandado e estrelado por Bradley Cooper é incisivo
ao, oito décadas depois, mostrar como pouca coisa mudou neste ambiente de
euforia e caos. Seguindo a proposta da adaptação setentista estrelada por
Barbara Streissand e Kris Kristopherson, o estreante na direção acerta ao
trazer este reconhecível arco para o mundo musical, encontrando na performance
da estrela Lady Gaga o misto de magnetismo, talento e verdade que a versão
precisava para funcionar.
Não se engane, porém, com as
aparências. O show, aqui, não é só da cantora. Por mais que Lady Gaga esbanje
intensidade ao encarar a amargura de uma artista considerada fora dos padrões
da indústria, uma realidade que, diga-se de passagem, foi vivida pela própria
durante parte da sua carreira, o grande trunfo da quarta versão de Nasce Uma
Estrela está na maneira com que a película divide bem as coisas. Ok, o roteiro
assinado por Eric Roth, Will Fetters e pelo próprio Bradley Cooper não se
revela tão afinado assim. Na ânsia de estender o tapete vermelho para as
poderosas apresentações musicais, é fato que a trama se afasta demais dos
conflitos do casal em alguns momentos. Por diversas vezes, inclusive, Cooper se
vê obrigado a fazer uso de diálogos expositivos, tentando estabelecer algo que
o próprio filme não foi capaz de mostrar. Um deslize que, em especial, acomete
o desconcertante arco do rockstar decadente Jackson Maine (Bradley Cooper),
principalmente na metade final da obra. Mesmo diante destas nítidas falhas de
acabamento, porém, o argumento é realista ao se debruçar sobre as agruras de um
casal em fases completamente distintas da sua vida. Sem medo de expor a
toxicidade do cenário musical atual, Cooper não titubeia em colocar o dedo na
ferida, em mostrar uma verdade que nem sempre o grande público tem a oportunidade
de enxergar. Por trás do frisson do sucesso, das roupas de luxo, da ostentação,
dos milhões e milhões na conta, existe uma rotina frenética, uma pressão inimaginável
e um vazio difícil de ser preenchido. Um cenário turbulento que acaba por
moldar a relação entre Jackson e a talentosa aspirante à cantora Ally (Lady
Gaga).
Assim como no clássico de 1937,
Bradley Cooper não esconde de ninguém as fraquezas do seu personagem. Num ‘mise
en scene’ vistoso e vibrante, o realizador é cuidadoso ao introduzir o clima de
romance sem deixar de frisar o quão tênue e complexa poderia ser essa relação.
Jackson em nenhum momento é tratado como um príncipe encantado. Por trás da sua
eloquente voz grave e da sua charmosa beleza existia um homem claramente
anestesiado. Um alcoólatra solitário que, num acaso do destino, encontra numa
voz na multidão a energia que precisava para tentar se reerguer. Mesmo ao longo
do romantizado terço inicial, quando o longa se concentra no hipnotizante
flerte entre Jackson e Ally, Cooper é astuto ao traduzir visualmente a sensação
de perigo. Reparem, por exemplo, como ele faz um simbólico uso da cor
vermelha em tons saturados. Projetada no rosto dos protagonistas, a neonizada
coloração do ambiente não só reforça o latente clima de atração entre os dois,
como também o sentimento de clausura, de pressão. Com enquadramentos fechados e
por vezes invasivos, o diretor é perspicaz ao potencializar o misto de
sensações ao longo dos primeiros capítulos desta história de amor, sugerindo
que os dois tinham muito a ganhar, mas também a perder com esta paixão
“fulminante”.
Impecável ao construir a
imagética química entre os protagonistas, que explode em cena com a performance
do poderoso ‘hit’ Shallow, Cooper é igualmente habilidoso ao desenvolver os
problemas até então insinuados. Numa progressão natural e reconhecível, o longa
se aprofunda nos paradoxos que cercam a jornada de Jackson e Ally com
profundidade, transitando por temas complexos com franqueza e muito vigor. Enquanto
ela, agora com o aporte de um grande empresário, começa a experimentar as
benesses (e as imposições) do showbiz, ele, agora sem aquela que o mantinha
longe do amargor, via o álcool, o ostracismo e a solidão abrir portas para
perigosos velhos fantasmas. É aqui, me arrisco a dizer, que Nasce Uma Estrela
se torna um grande filme. No momento em que invade a intimidade deste homem
quebrado, usado e largado pelo mundo da música, Cooper consegue colocar algo
atual na obra, a dor de um artista que perdeu a sua verdade. Influenciado por
nomes como Eddie Verder e o saudoso Chris Cornell, o diretor entrega o seu
melhor na atuação, criando um personagem vulnerável, instável, consciente da
sua assombrosa posição. Ele não é apenas um marido abusivo, um peso nas costas
de uma artista em ascensão. O rockstar decadente surge como o produto de um
meio hostil, insensível, incapaz de enxergar com um olhar humano a angústia
daquele que precisa de ajuda. Sem querer revelar muito, é da relação entre ele
e o seu experimentado irmão, interpretado com maestria por Sam Elliott, que
nascem os trechos mais densos e emotivos da obra, justamente pela capacidade de
Cooper em ir além da casca. O que fica bem claro, em especial, dentro do
clímax, que, embora derrape no terreno do maniqueísmo e também do
sentimentalismo, pontua a jornada do protagonista com peso em um cenário
totalmente coerente com a realidade dos fatos. Além disso, nas entrelinhas, Cooper
é astuto ao se insurgir tanto contra o ‘modus operandi’ da indústria, quanto
contra o processo de diluição da verdade do músico diante dos interesses
comerciais, uma análise que tem muito a dizer sobre o deteriorado estado de
espírito do experimentado protagonista.
Embora o Jackson de Bradley
Cooper surja como o elemento mais revigorado do novo Nasce uma Estrela, é
indiscutível que a quarta versão da obra não teria metade do sucesso se não
fosse a presença hipnotizante da estrela Lady Gaga. Numa performance
arrasadora, a atriz (sim, ela já merece esse reconhecimento) se despe perante o
público ao imprimir em tela muito dos obstáculos enfrentados pela mesma ao
longo da sua carreira, se esforçando ao máximo para exteriorizar sentimentos e
emoções provavelmente muito conhecidos por ela. Por mais que, em alguns
momentos, Gaga ainda não mostre um pleno domínio sobre as suas expressões nas
sequências mais íntimas, o charme da sua performance está justamente nesta
naturalidade, como se estivéssemos diante de um diamante bruto com muito a
lapidar (e também a oferecer) nesta nova fase da sua carreira. Algo que fica
bem claro, em especial, quando ela sobe no palco. Ali, no seu habitat natural, Lady
Gaga explode em cena com energia e expressividade inigualáveis, validando a
opção de Cooper em investir pesado nos números musicais ‘on stage’. Um
predicado, verdade seja dita, valorizado pelo ousado ‘mise en scene’ proposto
pelo realizador. Mais do que emprestar a sua bela voz grave as canções, ele
extrai o máximo destas cenas ao valorizar o ao vivo, ao invadir show na
tentativa de oferecer uma experiência o mais próximo possível da realidade,
capturando a eletricidade dos protagonistas no palco com raro dinamismo.
Entre o íntimo e o midiático,
Nasce Uma Estrela causa um misto de sensações ao investigar alguns dos graves
sintomas que seguem acometendo o mundo do ‘showbiz’ nas últimas oito décadas. Por
mais que as memoráveis apresentações musicais de Lady Gaga sejam
compreensivelmente tratadas como o grande chamariz do longa, Bradley Cooper estreia
na direção com uma obra madura e realística, indo muito além dos ‘hits’ Shallow
e I Will Never Love Again ao investigar com propriedade as agruras de dois
artistas “engolidos” por uma impiedosa indústria.
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