sexta-feira, 29 de março de 2019

Crítica | Estrada sem Lei

Herdeiros da violência

Toda história tem dois lados. A do casal Bonnie e Clyde é amplamente conhecida. Tratados pela polícia como impiedosos assassinos e pela nação com dois jovens heróis, a dupla por onde passava atraia as atenções, se tornando um distorcido símbolo de justiça numa sociedade norte-americana quebrada pela crise na bolsa de 1929 e pela igualmente cruel ação do sistema bancário. Um status que só veio a ser reforçado nos anos 1960, com o lançamento de Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas (1967). Um dos precursores do movimento contracultural que viria a tomar conta dos EUA na década de 1970, o longa dirigido por Arthur Penn e estrelado por Warren Beatty e Faye Dunaway ajudou a pavimentar a estrada do que viria a se tornar o influente movimento da Nova Hollywood ao conferir um olhar humano sobre a curta e violenta jornada desta dupla de foras da lei. Os vilões, mais uma vez, ganhariam uma conotação anti-heróica. Faltava, porém, ouvir o outro lado. Narrar os fatos sob a perspectiva dos perseguidores. Algo que, de fato, Estrada sem Lei faz muitíssimo bem. Embora esteja sempre a quilômetros de distância do clássico sessentista, o ‘road-movie’ dramático dirigido por John Lee Hancock (Fome de Poder) acerta principalmente quando decide ir além do jogo de gato e rato ao tratar caçador e caça como produtos de um mesmo meio. Como herdeiros de uma sociedade desigual, violenta e acometida por uma grave crise moral. Um olhar humano sobre os feitos de dois “adormecidos” e brutalizados oficiais da lei obrigados a voltar a fazer o trabalho sujo em nome de um pretenso bem-estar social. 



Confesso, entretanto, que Estrada Sem Lei custou a me impressionar. Preocupado em estabelecer a rotina dos dois protagonistas, os ex-rangers Frank Hammer (Kevin Costner) e Maney Gault (Woody Harrelson), o argumento assinado por John Fusco (Os Jovens Pistoleiros) se alonga ao expor as contrastantes realidades da dupla. Ao tornar tudo o mais literal possível. Estamos diante de dois homens enferrujados, um domesticado em um casamento feliz, o outro afogado no álcool e nas dívidas. Uma dinâmica saturada, bem típica dos ‘buddy cop movies’, que arrasta o ritmo da película ao longo do inchado primeiro ato. Vide a telegrafada rixa geracional entre os veteranos Texas Rangers e os então modernos agentes da CIA. Somado a isso, tudo soa muito moralmente “limpo” aos olhos do público. Quase unidimensional. Os oficiais são vítimas inocentes, os bandidos cruéis assassinos. Falta ambiguidade. Senso de urgência. Falta expor o rastro de sangue deixado por este conflito no coração da América. Neste primeiro momento, para ser bem claro, o que verdadeiramente sustenta o filme é a direção elegante de John Lee Hancock e especialmente as fortes presenças de Kevin Costner e Woody Harrelson. Dois atores extremamente carismáticos que, mesmo até então pouco exigidos pelo argumento, conseguem imprimir na expressão dos seus respectivos personagens um peso dramático capaz de nos manter fisgados. Existe tormento neles. Escondido na casca criada pela dupla existe medo, insegurança, vulnerabilidade. O receio que o tempo deles tenha passado. Que juntos eles não seriam o bastante para parar um jovem e inconsequente casal de foras da lei. Um sentimento que cresce gradativamente a partir do denso segundo ato.


Numa inesperada quebra de expectativas, Estrada sem Lei decide renegar o formato tradicional do ‘western’ ao apostar no drama em detrimento da ação. Embora Hammer e Gault remetam aos heróis clássicos do gênero, John Lee Hancock esbanja maturidade ao sutilmente romper com o viés unidimensional, ao misturar as tintas, ao focar na área cinza deste jogo entre gato e rato. Ao contrário do quadrado primeiro ato, o realizador, aqui, mostra fluidez narrativa ao trazer o contexto histórico para o centro da trama. À medida que a dupla se afasta da capital, o longa não titubeia em expor a dura realidade de uma América ferida, quebrada pela bolsa, oprimida pelos banqueiros. O cenário se torna mais sombrio. Pessimista. A resistência popular aos policiais cada vez maior. Nas entrelinhas, o roteiro é astuto ao nos permitir compreender os motivos por trás da idolatria criada em torno de Bonnie e Clyde. Uma rotina que a veterana dupla de protagonistas desconhecia por completo. Se por um lado Hancock é enfático ao revelar a brutalidade da gangue, por outro é sutil ao investigar o meio em que eles foram criados. E isso sem de maneira alguma tentar justificar a onda de crimes causada pelo casal. 


A ideia, aqui, é expor o destino de uma jovem pessoa que, desde cedo, se acostumou a ser tratada como criminosa e as consequências em torno da desproporcional ação do Estado. Sem querer revelar muito, a partir da sequência envolvendo Hammer e o pai de Clyde, vivido pelo experiente William Sadler, o longa como um todo ganha um novo rumo, principalmente pela habilidade do script em oferecer uma nova visão sobre os fatos. Um olhar tridimensional que ganha força, em especial, devido a forma com que a obra decide desvendar os antagonistas. Consciente do ‘status’ do casal, Hancock é perspicaz ao destrinchá-los a partir do olhar de terceiros. A rigor, ao longo da maior parte do filme, os dois só são mostrados a distância, com o foco na sua silhueta, nos seus elegantes figurinos. O que, diga-se de passagem, ajuda a reforçar a face mais icônica dos ladrões de bancos. Diante desta opção, é legal ver como a trama, com delicadeza, expõe a mudança da imagem dos dois sob a perspectivas dos então raivosos Texas Rangers. Conforme se aproximam do rastro da dupla de criminosos, os policiais passam a conhecê-los melhor, a identificar laços até então impensados, a perceber que estavam diante de dois jovens comuns que poderiam ser, por exemplo, seus próprios filhos. O que fica bem claro na silenciosa cena da invasão a uma determinada casa, uma sequência inicialmente tensa, mas que, graças a maturidade de Harrelson e Costner, ganha um novo sentido quando os dois entram verdadeiramente em contato com um ambiente habitado por Bonnie e Clyde.


Somado a isso, fazendo jus ao gênero ‘road-movie’, é interessante ver a capacidade de Estrada sem Lei em mudar também a nossa perspectiva sobre os protagonistas. Eles terminam a sua jornada de forma bem diferentes do que começaram. Pintados inicialmente como dois retilíneos homens da lei, aos poucos identificamos traços mais humanos em Hammer e Gault. Eles podem ser duros, cascudos, agressivos, mas também intensos, atormentados e porque não sensíveis. John Lee Hancock é especialmente cuidadoso ao, a partir do segundo ato, estreitar o elo entre caçadores e caça. Ao enxergar certa semelhança na trajetória de Hammer e Clyde. Embora em lados diferentes da equação, eles se viram obrigados desde cedo a agir seguindo aquilo que se esperava deles. Mesmo relutante em aceitar isso, o policial passa a se reconhecer na figura do bandido. Um processo intimista que, conduzido com discrição pela trama, ajuda a explicar o nada glamourizado desfecho. Numa segunda quebra de expectativas, o longa se arrisca ao prezar pela fidelidade dos fatos, nos oferecendo um clímax pesado, cru e silencioso. Não existe sabor de vitória. Não existe prazer. Só sangue, morte e mais violência. Uma abordagem corajosa que, combinada com as intensas performances, a elegante direção de arte e a condução comedida de John Lee Hancock, fazem de Estrada Sem Lei um thriller dramático surpreendentemente sólido. Por mais que o filme como um todo custe a engrenar, a mais nova produção original Netflix atinge as expectativas ao oferecer uma visão satisfatória sobre o outro lado de uma idealizada história real, rompendo gradativamente com o viés moralista ao reconhecer que ambos, homens da lei e fora da lei, tiveram que sujar as mãos de sangue inocente para saciar a sua fome de justiça.

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