terça-feira, 26 de março de 2019

Crítica | Culpa

O estrago por trás do servir e proteger

Me arrisco a dizer que, desde o contundente Tropa de Elite (2008), um filme não refletia de maneira tão profunda sobre a deterioração emocional de um policial em serviço quanto o angustiante Culpa. Muito mais do que um instigante thriller, o longa de estreia do diretor Gustav Molller é incisivo ao propor um denso estudo de personagem, indo (muito) além das expectativas ao investigar as agruras de um oficial dinamarquês obrigado a confrontar os seus fantasmas enquanto tenta solucionar um sequestro “preso” a uma central de atendimento. Sem a intenção de seguir o caminho mais fácil, o realizador usa a claustrofóbica estrutura narrativa a serviço da sua história, rompendo gradativamente com o maniqueísmo ao mostrar os perigos escondidos na busca pela justiça a qualquer custo. 


Rodado inteiramente num mesmo cenário, um integrado ‘call center’ da polícia dinamarquesa, Culpa é astuto ao fazer da sua “limitação” narrativa o trampolim para um invasivo estudo de personagem. Sem nunca sacrificar o vigor da obra, que cresce consistentemente até o desconcertante clímax, Gustav Moller esbanja maturidade ao se concentrar quase que exclusivamente no rosto do seu protagonista, o impulsivo Asger (Jakob Cedergren). No centro do quadro do primeiro ao último segundo de película, ele é claramente o objeto a ser analisado aqui, um personagem de passado nebuloso que, na véspera do julgamento envolvendo um dos seus casos, tinha tudo para ter mais um dia burocrático longe das ruas. Isso até uma assustada mulher, a monossilábica Iben (voz de Jessica Dinage), cruzar o seu caminho nas horas finais do seu turno, causando nele um misto de sentimentos capaz de expor o melhor e o pior deste explosivo homem da lei.


Numa mistura de Locke (2013) com o recente Buscando (2018), Culpa é o tipo de obra que sabe como fisgar a atenção do público. Em poucos minutos o argumento assinado pelo próprio Gustav Moller, ao lado de Emil Nygaard Albertsen, consegue estabelecer tanto o desconforto de Asger longe das ruas, quanto o seu peculiar senso de inércia dentro da central de atendimento. Algo que logo se transforma no agente catalisador da trama. Estamos diante de um policial inquieto, com um forte senso de justiça, mas que, pouco a pouco, deixa transparecer sentimentos bem mais mundanos e hostis. Embora, ao longo da envolvente primeira metade do longa, Moller siga um caminho “tradicional” ao atrelar o suspense à investigação em si, o realizador é habilidoso ao - nas entrelinhas - investigar os mistérios em torno do passado do protagonista. A cada nova ligação podemos enxerga-lo melhor. Alimentar as nossas suspeitas. Sentir a frustração de um homem acostumado a agir. Sem a intenção de entregar tudo de mão beijada para o público, Moller é cuidadoso ao capturar as reações de Asger aos fatos, ao expor, através dos seus gestos mais impulsivos, o seu agressivo modo de pensar\agir. Uma abordagem por si só enervante que, diga-se de passagem, ganha um novo sentido quando ele se depara com uma verdade capaz de colocar as suas próprias convicções em cheque.


É aqui, na verdade, que Culpa deixa de ser uma intrigante experiência cinematográfica para se tornar um grande filme. No momento em que o longa parecia flertar com elementos das típicas histórias de redenção, Gustav Moller testa as nossas expectativas ao adicionar ingredientes bem mais realísticos ao arco de Asger, unindo os até então insinuados pontos na construção do seu sólido estudo de personagem. À medida que as novas (e inclementes) revelações vêm à tona, o diretor é cirúrgico ao se debruçar sobre o turbilhão de emoções em torno da profissão policial, ao tentar entender os motivos por trás de tamanho desequilíbrio. Na ânsia de solucionar o caso, de salvar uma vida, Asger não titubeia em expor o seu lado mais inconsequente, uma postura arriscada que se torna a ponte que Moller precisava para realçar o quão tênue pode ser a linha entre a justiça e a vingança, entre o ato de proteger e o ato de agredir. Uma reflexão universal e poderosa que, graças a sagacidade do roteiro, faz ainda mais sentido no momento em que o caso de Iben passa a escancarar a crise de consciência do protagonista. Na transição para o último ato, inclusive, é interessante ver a coragem de Moller em praticamente jogar o clima de mistério em torno do sequestro para segundo plano, tudo para se concentrar no processo de desconstrução do protagonista diante da culpa. Um sentimento que parece não fazer parte da realidade de um homem acostumado a ver no seu dia a dia o pior do ser humano. E isso, verdade seja dita, sem esvaziar o peso da voz que ele conheceu via telefone, que permanece dialogando com os conflitos mais íntimos do personagem até os segundos finais da obra.


No embalo da expressiva performance de Jakob Cedergren, que, praticamente sozinho em cena, explora as inúmeras (e contrastantes) nuances emocionais do seu impotente personagem com um misto de intensidade, raiva e dor, Culpa se revela um suspense dramático que tem muito a dizer sobre a violência policial nos grandes centros urbanos. Sem a intenção de julgar ou de oferecer respostas fáceis, Gustav Moller eleva o nível da obra ao usar um tenso caso de sequestro como o ponto de partida para a construção dos questionamentos acerca de um tema maior, desfilando o seu virtuosismo narrativo e também estético (o clímax é de uma elegância imagética ímpar) ao dar uma honesta voz àqueles com o poder de apertar o gatilho para “servir e proteger”.

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