Me arrisco a dizer que, desde o
contundente Tropa de Elite (2008), um filme não refletia de maneira tão
profunda sobre a deterioração emocional de um policial em serviço quanto o
angustiante Culpa. Muito mais do que um instigante thriller, o longa de estreia
do diretor Gustav Molller é incisivo ao propor um denso estudo de personagem, indo
(muito) além das expectativas ao investigar as agruras de um oficial
dinamarquês obrigado a confrontar os seus fantasmas enquanto tenta solucionar
um sequestro “preso” a uma central de atendimento. Sem a intenção de seguir o
caminho mais fácil, o realizador usa a claustrofóbica estrutura narrativa a serviço
da sua história, rompendo gradativamente com o maniqueísmo ao mostrar os
perigos escondidos na busca pela justiça a qualquer custo.
Rodado inteiramente num mesmo
cenário, um integrado ‘call center’ da polícia dinamarquesa, Culpa é astuto ao
fazer da sua “limitação” narrativa o trampolim para um invasivo estudo de
personagem. Sem nunca sacrificar o vigor da obra, que cresce consistentemente
até o desconcertante clímax, Gustav Moller esbanja maturidade ao se concentrar
quase que exclusivamente no rosto do seu protagonista, o impulsivo Asger (Jakob Cedergren). No centro do quadro do
primeiro ao último segundo de película, ele é claramente o objeto a ser
analisado aqui, um personagem de passado nebuloso que, na véspera do julgamento
envolvendo um dos seus casos, tinha tudo para ter mais um dia burocrático longe
das ruas. Isso até uma assustada mulher, a monossilábica Iben (voz de Jessica
Dinage), cruzar o seu caminho nas horas finais do seu turno, causando nele um
misto de sentimentos capaz de expor o melhor e o pior deste explosivo homem da
lei.
Numa mistura de Locke (2013) com o recente Buscando (2018), Culpa é o
tipo de obra que sabe como fisgar a atenção do público. Em poucos minutos o
argumento assinado pelo próprio Gustav Moller, ao lado de Emil Nygaard
Albertsen, consegue estabelecer tanto o desconforto de Asger longe das ruas, quanto
o seu peculiar senso de inércia dentro da central de atendimento. Algo que logo
se transforma no agente catalisador da trama. Estamos diante de um policial
inquieto, com um forte senso de justiça, mas que, pouco a pouco, deixa
transparecer sentimentos bem mais mundanos e hostis. Embora, ao longo da
envolvente primeira metade do longa, Moller siga um caminho “tradicional” ao
atrelar o suspense à investigação em si, o realizador é habilidoso ao - nas
entrelinhas - investigar os mistérios em torno do passado do protagonista. A cada
nova ligação podemos enxerga-lo melhor. Alimentar as nossas suspeitas. Sentir a
frustração de um homem acostumado a agir. Sem a intenção de entregar tudo de
mão beijada para o público, Moller é cuidadoso ao capturar as reações de Asger
aos fatos, ao expor, através dos seus gestos mais impulsivos, o seu agressivo modo
de pensar\agir. Uma abordagem por si só enervante que, diga-se de passagem, ganha
um novo sentido quando ele se depara com uma verdade capaz de colocar as suas
próprias convicções em cheque.
É aqui, na verdade, que Culpa
deixa de ser uma intrigante experiência cinematográfica para se tornar um
grande filme. No momento em que o longa parecia flertar com elementos das típicas
histórias de redenção, Gustav Moller testa as nossas expectativas ao adicionar
ingredientes bem mais realísticos ao arco de Asger, unindo os até então
insinuados pontos na construção do seu sólido estudo de personagem. À medida
que as novas (e inclementes) revelações vêm à tona, o diretor é cirúrgico ao se
debruçar sobre o turbilhão de emoções em torno da profissão policial, ao tentar
entender os motivos por trás de tamanho desequilíbrio. Na ânsia de solucionar o
caso, de salvar uma vida, Asger não titubeia em expor o seu lado mais
inconsequente, uma postura arriscada que se torna a ponte que Moller precisava
para realçar o quão tênue pode ser a linha entre a justiça e a vingança, entre
o ato de proteger e o ato de agredir. Uma reflexão universal e poderosa que,
graças a sagacidade do roteiro, faz ainda mais sentido no momento em que o caso
de Iben passa a escancarar a crise de consciência do protagonista. Na transição
para o último ato, inclusive, é interessante ver a coragem de Moller em
praticamente jogar o clima de mistério em torno do sequestro para segundo
plano, tudo para se concentrar no processo de desconstrução do protagonista
diante da culpa. Um sentimento que parece não fazer parte da realidade de um
homem acostumado a ver no seu dia a dia o pior do ser humano. E isso, verdade
seja dita, sem esvaziar o peso da voz que ele conheceu via telefone, que permanece
dialogando com os conflitos mais íntimos do personagem até os segundos finais
da obra.
No embalo da expressiva
performance de Jakob Cedergren, que, praticamente sozinho em cena, explora as
inúmeras (e contrastantes) nuances emocionais do seu impotente personagem com
um misto de intensidade, raiva e dor, Culpa se revela um suspense dramático que
tem muito a dizer sobre a violência policial nos grandes centros urbanos. Sem a
intenção de julgar ou de oferecer respostas fáceis, Gustav Moller eleva o nível
da obra ao usar um tenso caso de sequestro como o ponto de partida para a
construção dos questionamentos acerca de um tema maior, desfilando o seu
virtuosismo narrativo e também estético (o clímax é de uma elegância imagética
ímpar) ao dar uma honesta voz àqueles com o poder de apertar o gatilho para “servir
e proteger”.
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