Se você curte o gênero suspense,
anote esse nome: Oriol Paulo. “Descoberto” por Guillermo Del Toro no instigante
Os Olhos de Julia (2010), o realizador espanhol se consolidou com uma das vozes
mais particulares do gênero recentemente com títulos como o insinuante O Corpo (2012) e o
imprevisível Um Contratempo (2016). Dois “filmes estrangeiros” que, assim como
muitos outros, só conseguiram ganhar relevância no abrasivo catálogo da Netflix.
Nada mais justo, portanto, que o novo projeto do diretor recebesse o selo
original desta gigante do streaming. E o alcance que a companhia costuma dar as
suas produções. Embora seja o longa mais derivativo da sua filmografia, em Durante
a Tormenta Paulo mostra mais uma vez autoralidade ao imprimir a sua vigorosa
assinatura numa história outras vezes contada dentro da Sétima Arte. Fazendo um
inteligente uso do recurso da viagem no tempo, ele transita com habilidade
entre a fantasia, a ciência e a realidade ao dar contornos tensos a um engenhoso ‘plot’
envolvendo um assassinato, uma tragédia e um desesperador desaparecimento.
Mesmo com soluções narrativas convenientes e um dispensável quê didático, o
realizador é eficaz ao proteger a maior parte dos segredos da sua obra, criando uma
forte conexão entre público e protagonista enquanto investiga as perigosas
consequências de se mexer com o passado.
Uma zelosa mulher (Adriana
Ugarte) descobre que o último morador da sua nova casa (Julio Bohigas) morreu
tragicamente após testemunhar um acidente. Escondido na casa estava uma
televisão antiga, uma câmera gravadora e as últimas fitas gravadas pelo menino.
Numa misteriosa conjunção de fatores, ela ganha, exatas três décadas depois, a
oportunidade de se comunicar com o passado através destes utensílios e alertá-lo sobre o seu fatídico destino. Um gesto inocente e benevolente que logo se transforma
num pesadelo quando ela descobre que o seu presente também foi drasticamente
modificado. Sejamos sinceros, qualquer fã que se preze dos filmes de viagem no tempo já viu essa premissa sendo explorada outras vezes. O subestimado Alta
Frequência (2000), por exemplo, partiu de um ‘plot’ semelhante ao narrar as desventuras
de pai e filho em duas linhas temporais diferentes unidos contra um violento
assassino. Isso em nada, porém, reduz o senso de ineditismo de Durante a
Tormenta. Muito em função, óbvio, da enérgica assinatura de Oriol Paulo. Um
herdeiro natural de mestres como Alfred Hitchicock, o realizador espanhol
capricha na tensão ao tornar tudo o mais inquietante possível. Com pulso
narrativo, um criativo trabalho na construção da intrigante atmosfera e muito
domínio sobre os respectivos arcos temporais, ele rompe gradativamente com o
elemento fantástico ao se concentrar nos mistérios em torno das sequelas
causadas pela interferência temporal. O que fica bem claro, em especial, na
fantástica sequência de abertura, quando em poucos minutos Paulo estabelece a
real face da sua obra. Por mais que o elemento da viagem no tempo seja peça
chave dentro do argumento, o foco, aqui, mais uma vez está na investigação, nos
mistérios em torno de um caso improvável, na desesperadora jornada de uma mãe após
acordar numa vida que não era a sua.
Impulsionado pelo trabalho do seu
talentoso elenco, Adriana Ugarte, Chino Darin e Javier Gutierrez entregam
performances muito consistentes, Oriol Paulo não titubeia em estabelecer as
peças do seu mais novo quebra-cabeças. Com fluidez, urgência e uma esperta transição temporal,
pouco a pouco conhecemos mais dos ricos personagens, os seus segredos, as suas
ambições e como um fato isolado poderia mudar a vida de tantas pessoas de uma
mesma região. E isso, melhor, sem nunca descartar a nossa presença dentro da história.
Fiel a estrutura clássica do gênero, Paulo nos convida a participar da trama, a
tentar antecipar os fatos, a ligar os pontos. As pistas estão ali, disponíveis,
desde as primeiras sequências. Todo o engenhoso ‘mise en scene’ é construído
com a intenção de deixar as perguntas em aberto o maior tempo possível, o que,
de fato, ajuda a explicar a capacidade do longa em nos manter fisgados do primeiro
ao último minuto de projeção. O espanhol, em especial, dá uma verdadeira a aula
no que diz respeito ao senso de simultaneidade do script, conseguindo, por diversas
vezes, se distanciar do arco central materno sem sacrificar o ritmo da
película. Sem querer revelar muito, o grande ‘plot twist’ do thriller reside
teoricamente num arco secundário. Muito em função, é verdade, da capacidade de Paulo
em se preocupar com o desenvolvimento das motivações dos coadjuvantes, em trata-los
com humanidade, em torna-los elementos decisivos para o melhor encaixe de todas
as suas peças. Ao se distanciar ocasionalmente do drama da sua angustianta protagonista,
ele consegue não só ir além do velho jogo da causa e consequência, como também
interligar o passado e o presente com coesão, permitindo que o público possa compreender os motivos para a discrepâncias entre as duas linhas temporais. As
coincidências, de fato, são poucas, algo raríssimo dentro do gênero. Ainda que,
em alguns momentos, o roteiro assinado pelo próprio diretor pareça se sustentar
em soluções convenientes, daquelas que naturalmente são colocadas em cheque, a maior
parte delas é bem justificada ao longo da história, principalmente quando o
assunto é o conflito moral que cerca a jornada da protagonista.
E aqui precisamos falar da forma “científica”
com que Durante a Tormenta explora o conceito de viagem do tempo. Ao contrário
de títulos como, por exemplo, o popular Efeito Borboleta (2000), Oriol Paulo
flerta com uma visão mais plausível sobre o tema ao não interferir demasiadamente na
identidade dos personagens. A linha temporal é tênue. As mudanças sutis. O
passado nunca é propriamente mudado. O realizador é sagaz ao explorar a
ideia de linha temporal alternativa. A interferência gera uma nova realidade a
partir do ponto alterado. Uma lógica explorada dentro de uma perspectiva intensa e mais
adulta. Embora, vez ou outra, o argumento derrape nas curvas do didatismo ao
não confiar plenamente na capacidade de interpretação do espectador, vide a dispensável aparição da doutora vivida pela talentosa Belén Rueda (Os Olhos de
Julia), Paulo contorna as cascas de banana do segmento ao conferir peso as
consequências. Ao, aqui sim, se prender mais a figura dos protagonistas. Os
personagens são o que são. O que muda é o destino deles a partir da
interferência. É legal ver como as novas experiências do passado ecoam de
maneira perfeitamente explicável no presente, o que só estreita o crescente elo
entre a atordoada Vera (Adriana Ugarte) e o compreensivo policial Leyra (Chino
Darin). O ambiente que os envolve, aliás, também pouco muda, o que ajuda a
interligar de maneira harmoniosa as duas linhas temporais. Fica fácil, ao longo
do filme, identificar em que ponto o passado “se distanciou” do presente.
Resta então a questão moral. O
que aconteceu com a filha de Vera? Uma vida vale mais do que outra? Estaria uma
mãe disposta a sacrificar uma realidade feliz em prol de outra realidade feliz? Mesmo que essa não seja a sua? Diante de questões tão complexas, Paulo é eficaz
ao, num primeiro momento, explorar o drama que se avizinha e guia a jornada da
protagonista. Até onde esta mãe estaria disposta a ir para recuperar o que foi
seu? Na transição para o último ato, porém, o realizador peca pelo
sentimentalismo ao arrematar a dolorosa jornada da sua protagonista. Por mais
que os atos dos personagens sejam totalmente compreensíveis, a impressão que
fica é Oriol Paulo subaproveita a complexidade do tema em prol da construção da
sua principal (e a meu ver previsível) reviravolta, acelerando as coisas ao
investir num clímax que se revela bem mais simples do que a obra com um todo
parecia sugerir. Nada que, verdade seja dita, prejudique o resultado final de Durante
a Tormenta. Em mais uma produção enervante, instigante e por vezes impactante,
a sequência na casa do assassino é digna dos grandes, Oriol Paulo reaquece o
subgênero viagem no tempo num thriller dramático com identidade própria. Um
filme que, embora escorregue nos detalhes, surpreende não pelas suas
reviravoltas, nem tão pouco pela sua madura visão sobre o tema proposto, mas
pela forma coesa e inteligente com que transita entre o drama, a
ficção-científica e o suspense.
4 comentários:
Só queria saber como o policial fez para alternar o passado pra ficar vivo no presente
É aqui que o filme perdeu pontos comigo. Poucos, é verdade, mas perdeu. Geralmente dentro dos filmes de viagem no tempo são nos detalhes que as coisas se complicam. Em Durante a Tormenta, no fim, achei que as peças se encaixaram bem demais na nova linha alternativa.Faltou valorizar os detalhes. Alerta de spoilers a seguir. Teoricamente, ele só não repetiu os erros da linha anterior. Em especial o fato de tê-la afastado do que viria a ser o seu futuro marido. Mas, como ele se manteve como policial, ele deve ter entrado na casa, visto aquilo tudo de novo e seguido basicamente os mesmos passos. Uma correção de rota bem pequena. Valeu pela visita e pelo comentário.
Vcs ñ entenderam! Ele voltou 3 dias depois do ocorrido (72 hras) ja tinha ocorrido o assassinato, ele já não tinha morrido pq ja tinha visto a mulher do futuro e ja seria a segunda linha do tempo (na qual ele não morre) mas fixa obssecaso pela mulher, ele so pede pra ñ ir encontrar com ela na tal data, nem
Denunciar o assassinato pq só assim ela conheceriia o amigo do marido.
Sim Amy, foi o que escrevi acima. Isso ficou bem claro no filme. O que eu critiquei foi o fato de tudo ter se encaixado tão bem no fim. Quem está a acostumado a ver filmes de viagem no tempo sabe que a chance de uma pequena mudança gerar uma situação nova é bem provável. Na crítica eu citei alguns filmes em que, uma simples alteração na linha temporal, desencadeia drásticas mudanças no tempo presente. Neste sentido, e só neste sentido, acho que Durante a Tormenta subestimou um pouco a complexidade do gênero. Valeu pela visita e também pelo comentário.
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