O que fazer quando um dos nossos
bens mais preciosos é sumariamente tomado? Quando a dor chega ao ponto de
perdemos a confiança em nós mesmos e\ou no outro? Essa crise traumática surge
como o agente catalisador do fascinante Não Deixe Ratros, um ‘road-movie’
poderoso sobre um homem e a sua querida filha em uma errática fuga pelo coração
da América. Sob a áspera batuta de Debra Granik, do igualmente desconcertante
Inverno da Alma (2010), o longa propõe um retrato singular sobre o impacto de
um trauma na rotina de uma disfuncional família, refletindo sobre a triste
realidade de muitos ao redor do mundo sob uma perspectiva íntima, agridoce e
silenciosa. Entre o drama social e o ‘coming of age movie’, a realizadora é
enfática ao dividir o protagonismo, ao dar uma comovente voz aos dois, indo
além do simples estudo de personagem ao discutir o peso da perda da lucidez na rotina de uma família que só queria permanecer unida.
Por mais que, numa análise superficial, o argumento assinado pela própria Debra Granik, ao lado de Anne Rosellini, remeta ao excelente Capitão Fantástico (2016), não demora muito para percebermos que estamos diante de um animal completamente diferente. Inspirado no livro My Abandonment (algo como Meu Abandono em português), uma história verídica contada pelo escritor Peter Rock, Sem Rastros não se contém em momento algum ao trazer a realidade para o centro da tela. Esqueça o viés ideológico do longa estrelado por Viggo Mortensen. A mensagem contrária ao injusto sistema em que vivemos. Embora a crítica social também seja gritante aqui, o foco é bem mais melancólico e trágico. Impecável ao estabelecer o quão tênue pode ser a linha entre a liberdade e a fuga, Granik instiga ao narrar a jornada de Will (Ben Foster) e Tom (Thomasin McKenzie), pai e filha que por opção própria estabeleceram residência numa floresta pública de Portland. Perfeitamente adaptados a vida de subsistência na mata, a selvagem rotina dos dois é abreviada quando um estranho encontra o paradeiro deles e os “denuncia” para a polícia. Expostos aos olhos da sociedade, os conflitos de Will e Tom se potencializam no momento em que eles se veem obrigados a encontrar um novo lugar para chamar de seu, sem sequer desconfiar que esta busca poderia colocar em risco o sincero elo entre os dois.
Incapaz de flertar com o
melodrama, Sem Rastos é o tipo de drama que não deixa o ritmo cair por um
segundo sequer. Mesmo nos muitos momentos mais silenciosos, Debra Granik mostra
o seu invejável pulso narrativo ao desvendar os peculiares personagens perante
o público, permitindo que pouco a pouco possamos entender melhor a realidade
dos dois. Sem a intenção de dar respostas fáceis, o longa é inicialmente
cuidadoso ao estabelecer o singelo vínculo de cumplicidade entre pai e filha.
Embora a disfuncionalidade no estilo de vida deles seja óbvia, a realizadora
mostra delicadeza ao abordar as opções de Will enquanto pai, ao tentar defender
que de alguma forma o que acontecia ali funcionava. Neste primeiro momento, a
rigor, parece que estamos diante de um par de sem tetos, dois tipos
marginalizados que conseguiram encontrar a dignidade num ambiente isolado. Não
demora muito, porém, para essa impressão cair por terra e percebermos que existe
muito mais por trás da dupla. Perspicaz ao antecipar o ponto de ruptura da
trama, Granik é igualmente habilidosa ao gradativamente introduzir os motivos em
torno de tamanha particularidade. Com rigidez narrativa e um bem-vindo respeito
a face introspectiva dos seus personagens, a diretora se debruça sobre os
problemas de pai e filha com profundidade, indo além do silêncio ao tentar
entender a mente dos dois, os seus traumas, medos, anseios e frustrações. Um
estudo de personagem revelador que emplaca graças a sagacidade do roteiro em
dividir o tempo de tela dos dois a partir do segundo ato e em sugerir uma
igualitária troca de experiências.
Mesmo sem nunca colocar a relação
familiar em segundo plano, Debra Granik eleva o nível do drama ao entender que
precisava também desenvolver a individualidade dos personagens. Enquanto se
concentra na figura de Will, Não Deixe Rastros se revela um drama social de
respeito, um retrato desolador sobre um veterano de guerra que só queria se
esconder dos seus traumas. Estamos diante de um homem quebrado, acuado, um tipo
que só queria fugir para bem longe dos seus problemas com a pessoa que mais
amava. Sem querer revelar muito, a diretora preza pela sutileza ao abordar as
sequelas da guerra dentro de um contexto tão singular, explorando o insinuante poder
de sugestão do texto ao descortinar os medos mais íntimos desta zelosa figura
paterna. Um predicado, verdade seja dita, valorizado pela magnífica presença de
Ben Foster, de longe um dos nomes mais subestimados na atualidade em Hollywood.
Acostumado a viver tipos explosivos e\ou viscerais, o intenso ator surpreende
ao entregar uma performance comedida, silenciosa, nos dando a possibilidade de
enxergar o turbilhão emocional do seu Will sem precisar dizer muitas palavras.
Um homem em constante fuga incapaz de perceber que era impossível seguir
fugindo de algo que estava dentro dele. É a partir deste denso arco, aliás, que
Granik encontra o motivo perfeito para pouco a pouco transferir o protagonismo
para a jovem Tom, talvez a grande vítima das dolorosas feridas de guerra do seu
pai.
Num excelente trabalho de
transição temporal, Não Deixe Rastros não titubeia ao fazer esta passagem de
bastão, flertando com elementos do ‘coming of age movie’ ao narrar a jornada de
amadurecimento de Tom sob uma perspectiva sólida e convincente. Guiada pela
extraordinária atuação da novata Thomasin McKenzie, madura ao interiorizar o
turbilhão de emoções que envolve a sua personagem, Debra Granik cria um
interessante paralelo com o seu último filme (o enervante Inverno da Alma) ao
dar contornos libertários a precoce luta de uma jovem para que a sua voz pudesse
ser ouvida. A diferença é que, enquanto no longa estrelado pela então novata
Jennifer Lawrence o contexto era bem mais vil e desesperançoso, a realizadora
mostra aqui uma ponta de otimismo ao se encantar pelo espírito altruísta
daqueles que pouco tem, permitindo que Tom pudesse ver o outro lado da sociedade
que o seu pai parecia tanto repudiar. Na verdade, a força que ela precisava
para se impor como parte da família nasce das novas experiências da adolescente
durante uma viagem rumo a um destino incerto. Sem nunca sacrificar o elo entre
pai e filha, que permanece integro até o primoroso clímax, Granik esbanja
sabedoria ao introduzir o crescente choque de ideias entre os dois, elevando o
nível da segunda metade como um todo ao, através de geniais metáforas animalescas,
refletir sobre o estado de espírito e o destino dos protagonistas. O que fica
bem claro, em especial, quando o assunto é o simbólico uso das abelhas, uma
maneira inteligente da diretora defender que eles precisariam confiar para encontrar
um lugar onde se encaixar numa sociedade por vezes tão insensível e agressiva.
Realístico do primeiro ao último
minuto de projeção, uma sensação ampliada pela fria fotografia lavada de
Michael McDonough, Não Deixe Rastros provoca um misto de sensações ao narrar a melancólica
luta de pai e filha contra um inimigo implacável e invisível. Diante de um tema
tão sensível dentro dos EUA, as feridas da guerra no aspecto emocional de um
veterano, Debra Granik envolve ao entregar uma obra visualmente gélida, de
poucas palavras, que revigora pela forma com que se encanta pelo honesto sentimento
por trás desta inabalável relação. Um retrato duro, triste, mas ao mesmo tempo
compreensivo sobre o quão dolorosa pode ser está tentativa (em vão) de fugir da
realidade.
2 comentários:
Triste demais. Não uma tristeza puramente melancólica, mas uma tristeza existencial de inconformação com a sociedade. Todos sentimentos contidos, mas extremamente reveladores. O pai expressa um olhar que de tanta amargura chega a doer. Um dos melhores filmes que assisti em 2020. Das mazelas deste ano de pandemia e quarentena, a poesia suave e profunda é traduzida numa fotografia deslumbrante e em interpretações soberbas. Algo que. no livro, Peter Rock, deixa transbordar em palavras muito mais de descrição que de ação. Chorei na cena de despedida entre pai e filha, mas sorri com a sacola de mantimentos colocada na árvore com o barulhinho sibilante com que pai e filha comunicam seu afeto.
Muito bom... dramático e inspirador.
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