quinta-feira, 21 de março de 2019

Crítica | O Retorno de Ben

O estrago causado pelo vício

Narrativamente inconsistente, O Retorno de Ben acerta enquanto drama ao escancarar o impacto do vício na rotina de uma pacata família norte-americana. Dirigido e roteirizado pelo competente Peter Hedges (A Estranha Vida de Timothy Green), o longa desperdiça oportunidades, interfere demais no intimismo da situação, mas, ainda assim, mostra propriedade ao dar um contorno tenso e intenso a desesperadora jornada de uma mãe diante de um inesperado reencontro. Embora esteticamente sem grandes atrativos, Hedges encontra a força da sua obra no talentoso elenco, em especial na performance da multifacetada Julia Roberts, observando o drama de muitas figuras maternas sob uma perspectiva pessoal, tridimensional e acima de tudo universal. Tudo aqui soa muito verdadeiro. Um sentimento de tristeza e amargura que tem muito a dizer sobre o tortuoso (e por vezes sem volta) caminho pelo mundo das drogas. 

Por mais que, na tentativa de talvez conferir mais ritmo a trama, Peter Hedges opte por seguir um caminho menos plausível a partir do segundo ato, O Retorno de Ben é especialmente cuidadoso ao logo de cara esclarecer o quão devastador pode ser o efeito do vício na identidade de um cativante jovem. Sem a intenção de dar respostas óbvias, o diretor encontra no olhar humano do seu filho, o promissor ator Lucas Hedges (Manchester a Beira-Mar), os ingredientes necessários para compor um personagem que já nas suas primeiras cenas não conseguia esconder a sua vulnerabilidade. Estamos diante de um jovem irritadiço, inseguro e nitidamente quebrado pelas drogas. Alguém no fio da meada, em busca de um norte, mas relutante quanto a sua capacidade de se manter sóbrio. Num trabalho delicado e ao mesmo tempo físico, Hedges (o filho) consegue sem grandes dificuldades traduzir a desoladora posição do seu Ben. O misto de dor, resiliência, medo e afeto que o guiavam na luta contra o fantasma do vício. De volta para casa para passar o natal com a sua família após um período na reabilitação, ele é recebido inicialmente com entusiasmo pela sua mãe, a confiante Holly (Julia Roberts), uma mulher que, após algumas experiências recentes muito negativas, decidiu dar um novo voto de confiança para o filho. O que era para ser um dia de muita felicidade, entretanto, ganha contornos pesados quando os dois se veem obrigados a encarar as (ainda expostas) feridas do passado, colocando em cheque os seus respectivos limites enquanto tentam estreitar um laço enfraquecido pela dependência química.


É inegável que O Retorno de Ben funciona dentro da sua proposta. Peter Hedges acerta em cheio ao não criminalizar a figura do viciado, ao expor a dura realidade das famílias acometidas por esta mazela social e ao realçar o quão perigoso pode ser o mundo das drogas. Narrativamente, porém, fica claro que o longa opta por seguir o caminho mais fácil. Quando se concentra na imersiva dinâmica familiar com a chegada do instável dependente químico, o realizador é cuidadoso ao se debruçar sobre os conflitos dos seus humanos personagens. O foco, felizmente, não fica apenas na figura de Ben. Hedges (o pai) é maduro ao capturar o misto de euforia e preocupação da mãe, a indignação do padrasto (vivido pelo competente Courtney B. Vance), o receio da irmã mais nova (interpretada com peso Kathryn Newton). Um cenário por si só instigante que cresce à medida que percebemos a fragilidade de Ben no retorno ao seu velho mundo. As tentações são óbvias. As lembranças dolorosas. Os problemas iminentes. Uma pena que, na transição para a segunda metade da película, o diretor reduza drasticamente o peso da sua história ao investir numa subtrama envolvendo um “sequestro”. Embora, mesmo aqui, o longa tenha os seus méritos, principalmente pela forma como apenas insinua parte da rotina do protagonista pré-reabilitação, Hedges sacrifica a universalidade da sua obra ao tentar adicionar um pouco de tensão ao filme, esvaziando algumas das questões mais complexas em torno do nebuloso passado do personagem título. 


Uma mudança de rumo desastrada que só não prejudica o filme como um todo graças a complexa relação entre mãe e filho. Se Lucas Hedges, como dito acima, impacta ao nos fazer crer que estamos diante de um jovem ainda domado pelo vício, Julia Roberts abraça o turbilhão de emoções da sua Holly com propriedade. Embora o texto, por diversas vezes, se revele aquém do padrão exigido pelo tema, ela eleva o nível do material com uma performance vigorosa. A estrela de Uma Linda Mulher consegue ir da amorosa\compreensiva à raivosa\inclemente em fração de segundos. Roberts nos faz crer no sofrimento da sua figura materna, uma mulher consciente do caráter do seu filho disposta a crer (talvez mais do que o ideal) que ele estava no caminho da recuperação. Ainda que, no momento em que o longa abandona o ambiente doméstico, a franca relação entre os dois perca parte da sua força, Hedges compensa ao capturar o completo desespero da personagem diante da iminência de algo terrível, alterando o protagonismo da sua obra ao entender que o vício não afeta somente o usuário de drogas. Uma opção que, diga-se de passagem, faz todo o sentido, em especial quando o realizador decide invadir a dura rotina daqueles(a) que precisam varar a noite à procura de um ente querido. Juntos, aliás, Hedges e Roberts exibem uma sincera conexão em cena, o que comprova também a sutileza de Peter na condução destas cenas mais íntimas.


Cinematograficamente pobre, O Retorno de Ben tem os seus predicados dramáticos, mas funciona, em especial, graças as intensas performances e a propriedade com que Peter Hedges investiga a realidade dos dependentes químicos. Eclipsado pelo seu “par gêmeo”, o comentado drama Querido Menino, o longa merece elogios ao não titubear em reforçar o estrago causado pelo vício, um efeito devastador capaz de abrir feridas profundas e em muitos casos impossíveis de serem cicatrizadas.

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