Basta assistir a um episódio do
popular reality show Trato Feito para termos a exata noção de o quão aquecido é
o mercado de antiguidades. Uma simples assinatura pode chegar a valer centenas,
milhares de dólares. Independentemente do documento em que ela estiver
inserida. Lá atrás, na década de 1990, a escritora Lee Israel percebeu isso. Inspirado
numa peculiar história real, Poderia Me Perdoar? cativa ao ir além dos fatos
mais infames de uma esnobada autora. Ao invés de concentrar no aspecto “criminoso”
da história, a promissora diretora Marielle Heller esbanja ternura ao dar voz a
mulher por trás dos seus atos, refletindo sobre os duros obstáculos impostos a
ela e como eles a modificaram. O resultado é um retrato ora humano e agridoce,
ora melancólico e triste sobre uma realizadora disposta a sacrificar a sua
autenticidade na busca pela dignidade que lhe foi tomada.
Sem a intenção de julgar, nem tão pouco reverenciar os “feitos” de Lee Israel, Poderia Me Perdoar? é cuidadoso ao investigar as nuances de uma personagem tão fechada. Com base no livro de memórias homônimo escrito pela própria Lee Israel, o excelente argumento assinado por Nicole Holofcener e Jeff Whity acerta ao propor um íntimo estudo de personagem. E fiel ao estado de espírito da protagonista. Estamos diante de uma figura complexa, antipática, com vícios e virtudes. O foco, porém, está no seu lado menos glorioso. Conhecemos Lee (Melissa McCarthy) aos 51 anos, uma mulher solitária e um tanto quanto cínica que devotava o pouco do seu afeto a sua querida gata Jasper. Embora, num passado não muito recente, a escritora tivesse conseguido emplacar uma das suas obras entre os ‘best-sellers’ do New York Time, o seu presente era um tanto quanto nebuloso. Tratada com completo desdém pela sua agente e pela classe como um todo, a desleixada biógrafa parecia presa a uma obra que ninguém tinha o interesse de ler. Quando a sua querida gata padece de uma repentina doença, Lee se vê obrigada a negociar uma carta pessoal de uma popular autora para arcar com as despesas. Surpresa com o valor recebido, ela decide florear outros dos seus “textos autografados” na tentativa de subir o preço do material. Em sérios problemas financeiros, ela, ao lado do seu extravagante amigo John Hock (Richard E. Grant) não demora muito dar um passo além, encontrando no mercado das falsificações uma pequena (e nem tão inofensiva assim) fonte de renda.
Por mais que, a rigor, o agente
catalisador de Poderia Me Perdoar? resida nos bastidores desta criminosa
empreitada, Marielle Heller é astuta concentrar todas as suas fichas na figura
de Lee. O que se revela um triunfo inquestionável. Não estamos diante de uma
golpista. De uma mulher ambiciosa que só queria o lucro. Sob uma perspectiva
íntima e genuinamente irônica, a realizadora se dispõe a compreender os motivos
por trás da incorreção, ao ouvir a verdade de uma autora que não parecia
disposta a se expor. Com leveza e ótimos diálogos, algo recorrente nas obras de
Nicole Holofcener, Heller pouco a pouco constrói um retrato complexo sobre Lee
Israel. Fazendo um inteligente uso do poder da insinuação, não demora muito
para percebermos que estamos diante de uma mulher quebrada, castigada pelo
tempo, pela sua falta coragem, pela sua autenticidade. Com o poder de síntese
necessário para oferecer uma visão completa sobre ela, Heller esbanja
maturidade ao refletir sobre a sua delicada posição enquanto uma escritora sem
voz, a sua carência sentimental enquanto uma lésbica solitária e a sua
vulnerável situação enquanto uma mulher incapaz de se sustentar. Uma combinação
de fatores bem estabelecida pelo argumento que ajuda a justificar os seus mais
infames atos. Prezando pelos detalhes, é interessante ver como da relação entre
Lee e a sua gata enxergamos a sua face mais carinhosa, da troca de farpas com a
relapsa agente (Jane Curtin) vemos o seu lado mais raivoso, da relação com a
gentil vendedora de livros (Dolly Wells, ótima) a sua faceta mais insegura e da
revigorante amizade com o boêmio Jack o seu lado mais mordaz. Embora soe
inicialmente comum aos olhos do público, Lee é uma daquelas personagens que têm
muito a dizer, principalmente pela sagacidade feminina do longa em escancarar a
dura realidade de uma mulher solteira obrigada a usar das suas armas para
desafiar um impiedoso ‘status quo’.
Por melhor que seja a construção
da personagem, entretanto, a força de Poderia Me Perdoar? reside na maiúscula performance
de Melissa McCarthy. Embora ela já tivesse mostrado com louvor a sua veia
dramática em outros momentos, a radiante estrela de Missão Madrinha de
Casamento e As Bem Armadas se afirma como uma atriz completa ao interiorizar o
turbilhão de emoções em torno de uma figura tão peculiar. Por mais que o seu
humor ferino case perfeitamente com o sarcasmo da protagonista, McCarthy vai
muito além do aspecto cômico ao realmente entender a dor de Lee Israel, ao
expor para o público a sua tristeza, a sua solidão, a sua nobreza e também o
seu perceptível remorso. Ela nos faz crer que, apesar da ilegalidade dos atos
em questão, a escritora se sentia traindo a sua profissão, os seus ídolos.
Orgulho (das falsificações) e culpa são dois sentimentos brilhantemente
trabalhados pela comediante. Além disso, McCarthy traz consigo uma verdade no
olhar de quem de certa forma também experimentou as agruras de uma mulher que
não parecia pertencer ao mundo em que vivia. Melhor que o trabalho dela, somente,
a humana relação de amizade entre Lee e o expansivo Jack Hock de Richard E.
Grant. Indo da comédia ao drama com enorme desenvoltura, o arco dos dois rende
algumas das melhores sequências do longa, muito em função da magistral
performance de Grant. Na pele de um gay flamboyant de passado nebuloso, o
experimentado ator agarrou com unhas e dentes a chance de interpretar um tipo
indiscutivelmente singular, conferindo a ele um fascinante misto de incorreção,
humor e alto-astral. Mesmo diante da imponente presença de McCarthy, ele rouba
a cena sempre que está nela, extraindo o máximo do precioso texto ao criar um
tipo capaz de errar e acertar como qualquer ser humano.
Embora previsível em sua fórmula e imageticamente simples,
Poderia Me Perdoar? rompe com o viés condescendente do gênero ao encontrar na peculiar
figura de Lee Israel a ponte para a construção de um drama sustentado por
dilemas genuinamente femininos. Por trás de um arquétipo aparentemente
cartunesco, o da “largada” solteirona solitária, Marielle Heller encontra uma
figura valente, talentosa, que não parecia disposta a se entregar. Uma mulher
como muitas que mereceu ter a sua história contada não por ter aplicado um
golpe, ou ter realizado um grande feito (interpretem como quiser), mas por ter achado
uma “brecha” para sobreviver num ambiente vil e desigual. O tipo de personagem
que precisa sempre ser muito exaltada, em especial numa época em que grandes
atrizes seguem clamando por papéis desafiadores e condizentes com a realidade
do gênero.
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