Dois filmes. Duas realidades bem
semelhantes. Duas abordagens completamente diferentes. Após refletir com
silêncio e introspecção sobre as profundas feridas pessoais causadas pela
Segunda Guerra Mundial no excruciante Ida (2015), Pawel Pawlikowski retorna a
este doloroso tema dentro de um contexto artístico e latente com o poderoso
Guerra Fria. Embora a proposta crua e seca aproxime as duas obras, o realizador
polonês causa um misto de sensações ao narrar uma história de amor regida pelas
sequelas do conflito, extraindo o máximo do contexto histórico estabelecido já
no título ao dar uma (belíssima) voz ao grito de liberdade de dois músicos
obrigados a sacrificar tanto em prol da sua relação. Contrastando a sua vistosa
fotografia em preto e branco com a sua realística visão sobre os fatos
propostos, Pawilikowski nos brinda com um romance dramático pesado e intimista. Um retrato desconcertante sobre as lacunas do tempo perdido, do tempo
sumariamente tomado e o impacto dele na identidade dos sobreviventes.
Com roteiro também assinado por
Pawel Pawlikowski, Guerra Fria eleva o teor da reflexão ao não reduzir tudo aos
traumas de guerra. Os personagens, aqui, não surgem devastados, “quebrados”
logo nos primeiros minutos de projeção. Se em Ida o foco estava numa personagem
de origem judaica, no seu mais novo projeto os holofotes estão sobre dois
poloneses cristãos, o pianista Wiktor (Tomasz Kot) e a cantora Zula (Joanna
Kulig). Embora, obviamente, tenham sofrido muito menos que os judeus durante a
Segunda Guerra, a dupla, assim como muitos compatriotas, viu o seu país ser
invadido impiedosamente pelos alemães, perdendo o direito (em muitos casos) a
propriedade, as terras e a própria liberdade em si. Sem a intenção de dedicar
muito tempo ao contexto histórico, o longa, que se inicia em 1949, é astuto ao
estabelecer os ecos da invasão através das suas imagens. Pawlikowski precisa de
poucos minutos para situar o espectador quanto ao tamanho do estrago
deixado pelos nazistas em território polonês.
O grande trunfo de Guerra Fria,
entretanto, está na propriedade com que o cineasta usa a delicada
situação política da Polônia no pós-guerra como um emblemático agente
catalisador deste romance. Com o fim da invasão da Alemanha nazista, o país do
leste europeu se tornou um mero espólio nas mãos da União Soviética. Uma das inúmeras nações "tomadas" pela onda Comunista que se espalhou pelo continente e praticamente
dividiu o mundo em dois lados. Ou seja, a liberdade do cidadão polonês durou
pouco. Com base neste complexo cenário sabiamente estabelecido sem
um pingo de didatismo, Pawel Pawlikowski esbanja pulso narrativo ao revelar o impacto
da tirania na vida de Wiktor e Zula. A opressão, aqui, ganha forma de maneira
sutil, mas gritante dentro da perspectiva artística. Os dois
teriam que sacrificar muito para sustentar esta fulminante relação de amor.
Após um pequeno período de “tranquilidade” num recém reaberto conservatório de
música tradicional polonesa, eles logo percebem que alguns velhos fantasmas não
demorariam a bater nas suas respectivas portas. Enquanto ela, uma jovem
independente de passado nebuloso, tinha todos os motivos para ver a sua liberdade
ameaçada, ele, um maestro virtuoso e respeitado, não tolerava a ideia de ter a
sua identidade tomada por um novo regime autocrata. Sem qualquer firula
narrativa, Pawlikowski é enfático ao estabelecer as bases deste tórrido
romance, o que eles estavam dispostos a sacrificar e o que era mais
caro para ambos. A crise de sintonia entre Wiktor e Zula só não era mais forte que o elo que os unia. Um sentimento de turbulência que cresce à medida
que o casal é obrigado a encarar a consequência das suas escolhas.
Não espere, portanto, uma
história de amor romantizada. Estamos diante de dois indivíduos complexos, com
anseios, traumas, medos e expectativas. Um homem e uma mulher apaixonados um
pelo outro, mas também por sua arte, suas raízes e sua liberdade.
Fazendo um primoroso uso das transições temporais, Pawel Pawlikowski provoca ao
praticamente não dar atenção ao que aconteceu nas transformadoras lacunas. A
cada um dos múltiplos cortes secos, Wiktor e Zula surgem em tela diferentes,
modificados tanto visualmente, quanto psicologicamente. Por mais que o sincero
sentimento entre eles permaneça, é interessante ver a maturidade do realizador ao se debruçar sobre o drama dos dois, sobre os efeitos do tempo (e de
tudo que aconteceu nestes “lapsos”) na realidade do casal. Com poucas
explicações e muitas insinuações, Pawlikowski brilha ao capturar a deterioração
dos dois, ao desenvolver a paradoxal situação deles. Um casal que, apesar da conexão, passou a viver em mundos diferentes, numa
realidade dividida por um muro invisível e difícil de transpor. Sem querer
revelar muito, o argumento é genial ao, nas entrelinhas, trazer o contexto da
Guerra Fria para a rotina do casal, ao traduzir para a realidade deles a genial
metáfora do pêndulo matando o tempo sugerida por uma das personagens do longa.
Por mais que eles quisessem muito viver a paixão, a paz e a liberdade, uma
ameaça silenciosa seguia os ameaçando, os afastando, os destruindo. Como se o amor deles não pudesse sobreviver naquele mundo. A dualidade do conflito invade a intimidade do casal. Uma
relação cheia de idas e vindas magnificamente costuradas pelo roteiro.
É indiscutível, porém, que parte do charme de Guerra Fria reside no visual do longa e na maneira com que o
realizador filma o seu imponente casal de protagonista. Assim como em Ida, Pawel Pawlikowski impõe a sua assimétrica
assinatura ao investir em enquadramentos pouco ortodoxos. Como se não bastasse
o por vezes claustrofóbico uso do aspecto quadrangular da tela, o realizador
polonês extrai o máximo da texturizada fotografia fria em preto e branco de Lukasz
Zal na composição dos seus poderosos planos abertos. Tudo para realçar não só os
contrastantes cenários, a expressão dos seus comandados e o movimento das
sequências dançantes, mas também a vulnerabilidade dos protagonistas diante do ambiente
proposto. Eles são tratados como mais um na multidão, um par de indivíduos
abandonados à sua própria sorte num mundo cínico e dividido. É muito difícil,
no entanto, tirar o olho da imagética personagem vivida por Joanna Kulig. Mesmo
quando Pawlikowski aponta a sua câmera para o nada, ou tira o casal de
protagonistas do centro do quadro, a radiante atriz hipnotiza ao encarar as
muitas fases de uma jovem mulher talentosa indecisa quanto ao que está disposta
a sacrificar para a consolidação deste romance. Por mais que a sua marcante
beleza seja notória, Kulig impressiona ao trazer na sua expressão os efeitos
das suas experiências de vida ao longo desta tortuosa jornada, exprimindo
independência, desconforto, energia, dor e amargura com enorme maturidade. Uma
performance memorável. O mesmo, aliás, podemos dizer do intenso Tomasz Kot. Na
pele de um homem mais velho e por isso mais prático, o elegante ator
desconstrói o seu Wiktor em cena com peso e sensibilidade, se tornando
gradativamente o elo mais fraco desta relação. Juntos, aliás, Kulig e Kot
exibem também uma invejável química em cena, conferindo emoção e dramaticidade
a uma relação conduzida sem um pingo de sentimentalismo. Uma pena que, diante
da proposta narrativamente enxuta do longa, Pawlikowski não se aprofunde tanto
em algumas das nuances individuais do casal de protagonistas. Pequenas brechas que, ao não serem preenchidas, prejudicam o desenvolvimento dos conflitos pessoais dos dois.
Contando ainda com
expressivos números musicais, Joanna Kulig dança e solta a sua poderosa voz em
pelo menos três grandes sequências, Guerra Fria causa um fascínio por vezes
desconfortável ao narrar a dura tentativa do amor em se sobrepor ao conflito.
Com personagens imponentes, um inteligente uso do contexto histórico, diálogos
magníficos e um visual de gosto extremamente requintado, Pawel Pawlikowski
volta a se debruçar sobre o drama dos seus conterrâneos poloneses num romance
dramático puro, seco e realístico. Um relato íntimo sobre os que sobreviveram,
resistiram, viveram e padeceram vítimas dos seus sentimentos e daquilo que acreditavam.
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