segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Crítica | Guerra Fria

O pêndulo matou o tempo

Dois filmes. Duas realidades bem semelhantes. Duas abordagens completamente diferentes. Após refletir com silêncio e introspecção sobre as profundas feridas pessoais causadas pela Segunda Guerra Mundial no excruciante Ida (2015), Pawel Pawlikowski retorna a este doloroso tema dentro de um contexto artístico e latente com o poderoso Guerra Fria. Embora a proposta crua e seca aproxime as duas obras, o realizador polonês causa um misto de sensações ao narrar uma história de amor regida pelas sequelas do conflito, extraindo o máximo do contexto histórico estabelecido já no título ao dar uma (belíssima) voz ao grito de liberdade de dois músicos obrigados a sacrificar tanto em prol da sua relação. Contrastando a sua vistosa fotografia em preto e branco com a sua realística visão sobre os fatos propostos, Pawilikowski nos brinda com um romance dramático pesado e intimista. Um retrato desconcertante sobre as lacunas do tempo perdido, do tempo sumariamente tomado e o impacto dele na identidade dos sobreviventes. 


Com roteiro também assinado por Pawel Pawlikowski, Guerra Fria eleva o teor da reflexão ao não reduzir tudo aos traumas de guerra. Os personagens, aqui, não surgem devastados, “quebrados” logo nos primeiros minutos de projeção. Se em Ida o foco estava numa personagem de origem judaica, no seu mais novo projeto os holofotes estão sobre dois poloneses cristãos, o pianista Wiktor (Tomasz Kot) e a cantora Zula (Joanna Kulig). Embora, obviamente, tenham sofrido muito menos que os judeus durante a Segunda Guerra, a dupla, assim como muitos compatriotas, viu o seu país ser invadido impiedosamente pelos alemães, perdendo o direito (em muitos casos) a propriedade, as terras e a própria liberdade em si. Sem a intenção de dedicar muito tempo ao contexto histórico, o longa, que se inicia em 1949, é astuto ao estabelecer os ecos da invasão através das suas imagens. Pawlikowski  precisa de poucos minutos para situar o espectador quanto ao tamanho do estrago deixado pelos nazistas em território polonês.


O grande trunfo de Guerra Fria, entretanto, está na propriedade com que o cineasta usa a delicada situação política da Polônia no pós-guerra como um emblemático agente catalisador deste romance. Com o fim da invasão da Alemanha nazista, o país do leste europeu se tornou um mero espólio nas mãos da União Soviética. Uma das inúmeras nações "tomadas" pela onda Comunista que se espalhou pelo continente e praticamente dividiu o mundo em dois lados. Ou seja, a liberdade do cidadão polonês durou pouco. Com base neste complexo cenário sabiamente estabelecido sem um pingo de didatismo, Pawel Pawlikowski esbanja pulso narrativo ao revelar o impacto da tirania na vida de Wiktor e Zula. A opressão, aqui, ganha forma de maneira sutil, mas gritante dentro da perspectiva artística. Os dois teriam que sacrificar muito para sustentar esta fulminante relação de amor. Após um pequeno período de “tranquilidade” num recém reaberto conservatório de música tradicional polonesa, eles logo percebem que alguns velhos fantasmas não demorariam a bater nas suas respectivas portas. Enquanto ela, uma jovem independente de passado nebuloso, tinha todos os motivos para ver a sua liberdade ameaçada, ele, um maestro virtuoso e respeitado, não tolerava a ideia de ter a sua identidade tomada por um novo regime autocrata. Sem qualquer firula narrativa, Pawlikowski é enfático ao estabelecer as bases deste tórrido romance, o que eles estavam dispostos a sacrificar e o que era mais caro para ambos. A crise de sintonia entre Wiktor e Zula só não era mais forte que o elo que os unia. Um sentimento de turbulência que cresce à medida que o casal é obrigado a encarar a consequência das suas escolhas.


Não espere, portanto, uma história de amor romantizada. Estamos diante de dois indivíduos complexos, com anseios, traumas, medos e expectativas. Um homem e uma mulher apaixonados um pelo outro, mas também por sua arte, suas raízes e sua liberdade. Fazendo um primoroso uso das transições temporais, Pawel Pawlikowski provoca ao praticamente não dar atenção ao que aconteceu nas transformadoras lacunas. A cada um dos múltiplos cortes secos, Wiktor e Zula surgem em tela diferentes, modificados tanto visualmente, quanto psicologicamente. Por mais que o sincero sentimento entre eles permaneça, é interessante ver a maturidade do realizador ao se debruçar sobre o drama dos dois, sobre os efeitos do tempo (e de tudo que aconteceu nestes “lapsos”) na realidade do casal. Com poucas explicações e muitas insinuações, Pawlikowski brilha ao capturar a deterioração dos dois, ao desenvolver a paradoxal situação deles. Um casal que, apesar da conexão, passou a viver em mundos diferentes, numa realidade dividida por um muro invisível e difícil de transpor. Sem querer revelar muito, o argumento é genial ao, nas entrelinhas, trazer o contexto da Guerra Fria para a rotina do casal, ao traduzir para a realidade deles a genial metáfora do pêndulo matando o tempo sugerida por uma das personagens do longa. Por mais que eles quisessem muito viver a paixão, a paz e a liberdade, uma ameaça silenciosa seguia os ameaçando, os afastando, os destruindo. Como se o amor deles não pudesse sobreviver naquele mundo. A dualidade do conflito invade a intimidade do casal. Uma relação cheia de idas e vindas magnificamente costuradas pelo roteiro.


É indiscutível, porém, que parte do charme de Guerra Fria reside no visual do longa e na maneira com que o realizador filma o seu imponente casal de protagonista. Assim como em Ida, Pawel Pawlikowski impõe a sua assimétrica assinatura ao investir em enquadramentos pouco ortodoxos. Como se não bastasse o por vezes claustrofóbico uso do aspecto quadrangular da tela, o realizador polonês extrai o máximo da texturizada fotografia fria em preto e branco de Lukasz Zal na composição dos seus poderosos planos abertos. Tudo para realçar não só os contrastantes cenários, a expressão dos seus comandados e o movimento das sequências dançantes, mas também a vulnerabilidade dos protagonistas diante do ambiente proposto. Eles são tratados como mais um na multidão, um par de indivíduos abandonados à sua própria sorte num mundo cínico e dividido. É muito difícil, no entanto, tirar o olho da imagética personagem vivida por Joanna Kulig. Mesmo quando Pawlikowski aponta a sua câmera para o nada, ou tira o casal de protagonistas do centro do quadro, a radiante atriz hipnotiza ao encarar as muitas fases de uma jovem mulher talentosa indecisa quanto ao que está disposta a sacrificar para a consolidação deste romance. Por mais que a sua marcante beleza seja notória, Kulig impressiona ao trazer na sua expressão os efeitos das suas experiências de vida ao longo desta tortuosa jornada, exprimindo independência, desconforto, energia, dor e amargura com enorme maturidade. Uma performance memorável. O mesmo, aliás, podemos dizer do intenso Tomasz Kot. Na pele de um homem mais velho e por isso mais prático, o elegante ator desconstrói o seu Wiktor em cena com peso e sensibilidade, se tornando gradativamente o elo mais fraco desta relação. Juntos, aliás, Kulig e Kot exibem também uma invejável química em cena, conferindo emoção e dramaticidade a uma relação conduzida sem um pingo de sentimentalismo. Uma pena que, diante da proposta narrativamente enxuta do longa, Pawlikowski não se aprofunde tanto em algumas das nuances individuais do casal de protagonistas. Pequenas brechas que, ao não serem preenchidas, prejudicam o desenvolvimento dos conflitos pessoais dos dois.


Contando ainda com expressivos números musicais, Joanna Kulig dança e solta a sua poderosa voz em pelo menos três grandes sequências, Guerra Fria causa um fascínio por vezes desconfortável ao narrar a dura tentativa do amor em se sobrepor ao conflito. Com personagens imponentes, um inteligente uso do contexto histórico, diálogos magníficos e um visual de gosto extremamente requintado, Pawel Pawlikowski volta a se debruçar sobre o drama dos seus conterrâneos poloneses num romance dramático puro, seco e realístico. Um relato íntimo sobre os que sobreviveram, resistiram, viveram e padeceram vítimas dos seus sentimentos e daquilo que acreditavam.


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