É inadmissível que só agora, em 2019, o veterano Spike Lee tenha recebido a sua primeira indicação ao Oscar na categoria Melhor Direção. Um realizador com voz ativa e uma singular visão de cinema, ele ajudou a levar a realidade das ruas para a tela grande, se insurgindo contra o estado das coisas em títulos do quilate de Faça a Coisa Certa (1989), Febre da Selva (1991), Malcom X (1992), O Verão de Sam (1999) e A Última Noite (2002). Mesmo nos seus trabalhos mais comerciais, como Jogada Decisiva (1998) e O Plano Perfeito (2006), Lee sempre procurou ter algo a mais a dizer, a oferecer, o que logicamente o transformou num dos cineastas norte-americanos mais respeitados em atividade. Curiosamente, entretanto, nos últimos anos o diretor parecia ter perdido a sua ferocidade. Dos seus últimos projetos, o único recebido com entusiasmo foi o provocador Chi-Raq (2015), um oásis de frescor num período de lançamentos ora fraquíssimos, ora esquecíveis. Como li outro dia em algum lugar pelas redes sociais da vida, a era Obama parece ter feito muito mal a verve criativa de Spike Lee. A fera, porém, estava adormecida, não enjaulada. Bastou a balança voltar a desequilibrar, a voz da opressão falar mais alto, para que o realizador retornasse da sua entressafra com o poderoso Infiltrado na Klan. De volta a sua forma mais afiada e questionadora, Lee enfia o dedo na ferida ao se insurgir contra a crescente onda de preconceito nos Estados Unidos da América, buscando no passado a inspiração necessária para construir uma das mais contundentes, cínicas e corajosas críticas políticas já produzidas em Hollywood. Um filme que se orgulha das suas raízes, da sua mensagem, da rica cultura afro-americana e (especialmente) dos feitos de jovens corajosos que - no ápice da intolerância - resistiram contra uma das mais nefastas faces do racismo.
Tudo, obviamente, temperado com o
perspicaz viés crítico de Spike Lee. Inspirado numa “parada” muito real, o
realizador, ao lado dos roteiristas Charlie Wachtel, David Rabinowitz e Kevin
Willmott, nos provoca enquanto espectador ao realçar o lado mais irônico por
trás dos fatos apresentados. Estamos diante de uma obra hilária quando julga
ser, enfática quando tem que ser, tensa quando precisa ser e implacável quando
ousa ser. O viés cômico, aqui, surge como uma espécie de isca para o grande
público, uma artimanha encontrada por este legendário cineasta na tentativa
amplificar o alcance da sua urgente e incisiva mensagem. Embora já chegue
chutando a porta ao iniciar o longa com um revoltante discurso racista interpretado
com ódio por um magistral Alec Baldwin (o ator que no SNL ficou conhecido por
fazer uma das mais populares paródias do presidente Donald Trump), Lee, num
primeiro momento, abraça o humor ao estabelecer a inusitada situação do
policial Ron Stallworth (John David Washington). Um jovem ambicioso que, graças
ao seu esforço e pioneirismo, se torna o primeiro policial negro de uma
miscigenada cidade do Colorado. Sem a intenção de sustentar velhos clichês, o
diretor é cuidadoso ao não só rir do preconceito enraizado, mas também ao
capturar o ar da mudança dentro da corporação, criando assim um cenário
naturalmente engraçado. Um ambiente que se torna ainda mais peculiar quando
Ron, num gesto espontâneo, decide fazer contato com um membro da Klu Klux Klan,
uma organização racista que lutava pela supremacia branca. Para a sua surpresa,
ele não demora muito para conseguir uma reunião com o grupo, o que chama a
atenção dos seus superiores. Disposto a dar sequência aos seus planos, o jovem
policial resolve dividir o caso com um colega detetive, o judeu Flip Zimmerman
(Adam Driver), o homem que seria o responsável por ser o seu rosto dentro do
grupo. Juntos, Ron e Flip decidem invadir a Klan num dos mais destemidos processos
de infiltração da sua época, sem sequer desconfiar que logo chamariam a atenção
do cabeça do grupo, o conhecido David Duke (Topher Grace).
O grande mérito narrativo de Infiltrado na Klan, entretanto, está na sua
capacidade de diluir as linhas entre gêneros contrastantes. Spike Lee consegue
ir da gargalhada repentina para a dor imediata num piscar de olhos. Ao longo do
segundo ato, o teor farsesco começa a dar lugar a um clima mais realístico. O
senso de perigo se torna mais evidente. Por mais que, a rigor, Lee faça uma
imagem propositalmente estúpida da maior parte dos integrantes da Klu Klux Khan,
em especial do líder David Duke vivido por um positivamente afetado Topher
Grace, ele é astuto ao em nenhum momento torna-los menos detestáveis e\ou
ameaçadores. Escondida na falta de inteligência deste grupo de personagens
existia a intolerância, a violência, o ódio enraizado. Elementos que se afloram
à medida que Ron e Flip começam a levar a sério esta extremista ameaça. A
partir de tipos como o ardiloso Félix (Jasper Pääkkönen), Lee consegue
elevar a escala de tensão da trama harmoniosamente, preparando o terreno para o
magistral último ato. Além disso, o realizador desfila a sua genialidade ao
investigar a mudança de pensamento dentro da própria Klan, criando assim o paralelo
perfeito com a realidade em que vivemos.Através da figura de Duke e do seu
discurso “democraticamente brando”, Spike Lee não perde a oportunidade de
propor uma preciosa reflexão sobre o racismo velado, sobre a intolerância que
persegue, que mata e (principalmente) que elege sem necessariamente ter a
sensação de sangue nas mãos. A discussão entre Ron e um dos seus superiores
sobre o possível impacto das mudanças deste grupo na política norte-americana,
por exemplo, é de uma coragem inimaginável, principalmente por tirar o elefante
da sala no que diz respeito ao real alvo desta poderosa crítica. Somado a isso,
nas entrelinhas, Lee não perde a oportunidade de expor as verdades por trás de
algumas populares frases do imaginário americano atual, mostrando o real perigo
escondido em sentenças ufanistas e propositalmente divisivas.
Um sentimento de ameaça que fica
bem claro dentro do assombroso último ato. Com completo domínio narrativo sobre
a sua obra, Spike Lee eleva o nível de dramaticidade e suspense ao entregar um
dos clímaces mais poderosos da história recente do cinema. Quando tudo parecia
rumar para um desfecho tradicional, o realizador esmurra os nossos estômagos ao
esfregar a realidade na cara do público, ao ouvir a castigada e inspiradora voz
da experiência, criando um dinâmico paralelo entre as vítimas e os seus
algozes. Impulsionado pela fluida montagem e pelos enervantes riffs de piano da
impactante trilha sonora de Terence Blanchard, Lee interliga os polos de
maneira brilhante, culminando num desfecho de ‘plot’ contundente, crítico e a
sua peculiar maneira cínico. Um desfecho emblemático, em especial, pela maneira
com que o realizador “resgata” um dos filmes mais infames já produzidos por
Hollywood: O Nascimento de Uma Nação (1915). Traçando um desolador paralelo
entre uma brutal história real e os efeitos da obra de D.W. Griffith, Lee não
perde a oportunidade atacar com toda a sua ferocidade e bravura esta abominável
grande produção, criando um choque natural ao personificar a face mais nefasta
do racismo.
E isso sem, em momento algum, criar vítimas. No final deste desconcertante
relato, a sensação é de sobrevivência, de resiliência e de orgulho. Um
sentimento de empoderamento que, diga-se de passagem, ganha um forte eco na
grave voz de John David Washington. Filho do também ator Denzel Washington, ele
esbanja carisma ao criar um protagonista charmoso, destemido e descomplicado,
um personagem preparado para lidar com o preconceito, mas um tanto quanto
ingênuo e sensível. Com um afiado senso de humor e um olhar intenso, John
consegue transitar entre os diversos tons da obra com desenvoltura, criando um protagonista
consciente das suas responsabilidades. O mesmo, aliás, podemos dizer de Adam
Driver. Um dos realizadores mais singulares da sua geração, o astro da franquia
Star Wars confere uma preciosa aura comum ao seu Flip, criando um policial
cascudo que parece ser verdadeiramente capaz de sobreviver infiltrado. Como se
não bastasse a extraordinária química entre os dois, Lee é astuto ao, através
deles, se debruçar sobre os dilemas mais íntimos da dupla, dois homens (um
negro e um judeu) acostumados a “asfixiar” as suas raízes na tentativa de se
adaptar.
Um verdadeiro manifesto contra o
ódio e o racismo, Infiltrado na Klan redefine a sua importância ao mostrar que
alguns dos fatos impressos no longa estão mais vivos do que poderíamos
imaginar. Quando a questionadora obra parecia já ter apresentado todas as suas credenciais,
Spike Lee cruza a linha que separa os talentosos dos gênios ao arrematar a
trama de maneira avassaladora, interligando passado e presente com uma coragem
e um viés crítico raríssimo dentro do showbiz nos dias de hoje.
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