sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Crítica | Infiltrado na Klan

Spike Lee is back!

É inadmissível que só agora, em 2019, o veterano Spike Lee tenha recebido a sua primeira indicação ao Oscar na categoria Melhor Direção. Um realizador com voz ativa e uma singular visão de cinema, ele ajudou a levar a realidade das ruas para a tela grande, se insurgindo contra o estado das coisas em títulos do quilate de Faça a Coisa Certa (1989), Febre da Selva (1991), Malcom X (1992), O Verão de Sam (1999) e A Última Noite (2002). Mesmo nos seus trabalhos mais comerciais, como Jogada Decisiva (1998) e O Plano Perfeito (2006), Lee sempre procurou ter algo a mais a dizer, a oferecer, o que logicamente o transformou num dos cineastas norte-americanos mais respeitados em atividade. Curiosamente, entretanto, nos últimos anos o diretor parecia ter perdido a sua ferocidade. Dos seus últimos projetos, o único recebido com entusiasmo foi o provocador Chi-Raq (2015), um oásis de frescor num período de lançamentos ora fraquíssimos, ora esquecíveis. Como li outro dia em algum lugar pelas redes sociais da vida, a era Obama parece ter feito muito mal a verve criativa de Spike Lee. A fera, porém, estava adormecida, não enjaulada. Bastou a balança voltar a desequilibrar, a voz da opressão falar mais alto, para que o realizador retornasse da sua entressafra com o poderoso Infiltrado na Klan. De volta a sua forma mais afiada e questionadora, Lee enfia o dedo na ferida ao se insurgir contra a crescente onda de preconceito nos Estados Unidos da América, buscando no passado a inspiração necessária para construir uma das mais contundentes, cínicas e corajosas críticas políticas já produzidas em Hollywood. Um filme que se orgulha das suas raízes, da sua mensagem, da rica cultura afro-americana e (especialmente) dos feitos de jovens corajosos que - no ápice da intolerância - resistiram contra uma das mais nefastas faces do racismo. 



Tudo, obviamente, temperado com o perspicaz viés crítico de Spike Lee. Inspirado numa “parada” muito real, o realizador, ao lado dos roteiristas Charlie Wachtel, David Rabinowitz e Kevin Willmott, nos provoca enquanto espectador ao realçar o lado mais irônico por trás dos fatos apresentados. Estamos diante de uma obra hilária quando julga ser, enfática quando tem que ser, tensa quando precisa ser e implacável quando ousa ser. O viés cômico, aqui, surge como uma espécie de isca para o grande público, uma artimanha encontrada por este legendário cineasta na tentativa amplificar o alcance da sua urgente e incisiva mensagem. Embora já chegue chutando a porta ao iniciar o longa com um revoltante discurso racista interpretado com ódio por um magistral Alec Baldwin (o ator que no SNL ficou conhecido por fazer uma das mais populares paródias do presidente Donald Trump), Lee, num primeiro momento, abraça o humor ao estabelecer a inusitada situação do policial Ron Stallworth (John David Washington). Um jovem ambicioso que, graças ao seu esforço e pioneirismo, se torna o primeiro policial negro de uma miscigenada cidade do Colorado. Sem a intenção de sustentar velhos clichês, o diretor é cuidadoso ao não só rir do preconceito enraizado, mas também ao capturar o ar da mudança dentro da corporação, criando assim um cenário naturalmente engraçado. Um ambiente que se torna ainda mais peculiar quando Ron, num gesto espontâneo, decide fazer contato com um membro da Klu Klux Klan, uma organização racista que lutava pela supremacia branca. Para a sua surpresa, ele não demora muito para conseguir uma reunião com o grupo, o que chama a atenção dos seus superiores. Disposto a dar sequência aos seus planos, o jovem policial resolve dividir o caso com um colega detetive, o judeu Flip Zimmerman (Adam Driver), o homem que seria o responsável por ser o seu rosto dentro do grupo. Juntos, Ron e Flip decidem invadir a Klan num dos mais destemidos processos de infiltração da sua época, sem sequer desconfiar que logo chamariam a atenção do cabeça do grupo, o conhecido David Duke (Topher Grace).


 Com base nos relatos do próprio Ron Stallworth, autor do livro em que o roteiro se baseia, Infiltrado da Klan impressiona ao abraçar uma vasta gama de temas com enorme propriedade e dinamismo. Por mais que o viés cômico salte aos olhos na metade inicial do longa, Spike Lee esbanja maturidade ao gradativamente impregnar este relato aparentemente absurdo com o desconfortável cheiro da realidade. O que fica bem claro, por exemplo, na poderosa sequência do discurso do líder dos movimentos raciais Kwame Ture (Corey Hawkins, magnífico). Tratada preliminarmente como o momento em que veríamos Ron em ação pela primeira vez, a sequência ganha um novo sentido quando Lee abre completo espaço para as eloquentes (e infelizmente atuais) palavras do hábil palestrante. Além de capturar o misto de indignação, raiva e orgulho do discursante, Lee extrai o máximo do cenário em si ao nitidamente exaltar a beleza afro e do efeito catalisador causado pelas palavras ali ditas. Num ‘mise en scene’ marcante, o realizador captura os rostos dos presentes naquela manifestação antissistema com imponência e requinte estético, valorizando os traços de cada um dos anônimos, os penteados, o ‘look’ descolado e acima de tudo a urgência impressa nas suas respectivas faces. Uma sequência emblemática. Ao longo de todo o filme, aliás, Spike Lee é inteligente ao trazer para o centro da trama a realidade cultural e social daquela época, ao encontrar na relação entre Ron e a ativista vivida pela expressiva Laura Harrier as brechas necessárias para falar sobre música, cinema e os costumes de uma geração que aprendeu a ter que lutar para conquistar o que é seu. Com direito a espertas inserções gráficas e diálogos sagazes sobre a maneira com que o negro era retratado na cultura pop da época. O mesmo, aliás, podemos dizer da primorosa trilha-sonora não original do longa que, recheada de clássicos da época, só torna esta cativante relação (e o filme como um todo) mais pop e imersivo.


O grande mérito narrativo de Infiltrado na Klan, entretanto, está na sua capacidade de diluir as linhas entre gêneros contrastantes. Spike Lee consegue ir da gargalhada repentina para a dor imediata num piscar de olhos. Ao longo do segundo ato, o teor farsesco começa a dar lugar a um clima mais realístico. O senso de perigo se torna mais evidente. Por mais que, a rigor, Lee faça uma imagem propositalmente estúpida da maior parte dos integrantes da Klu Klux Khan, em especial do líder David Duke vivido por um positivamente afetado Topher Grace, ele é astuto ao em nenhum momento torna-los menos detestáveis e\ou ameaçadores. Escondida na falta de inteligência deste grupo de personagens existia a intolerância, a violência, o ódio enraizado. Elementos que se afloram à medida que Ron e Flip começam a levar a sério esta extremista ameaça. A partir de tipos como o ardiloso Félix (Jasper Pääkkönen), Lee consegue elevar a escala de tensão da trama harmoniosamente, preparando o terreno para o magistral último ato. Além disso, o realizador desfila a sua genialidade ao investigar a mudança de pensamento dentro da própria Klan, criando assim o paralelo perfeito com a realidade em que vivemos.Através da figura de Duke e do seu discurso “democraticamente brando”, Spike Lee não perde a oportunidade de propor uma preciosa reflexão sobre o racismo velado, sobre a intolerância que persegue, que mata e (principalmente) que elege sem necessariamente ter a sensação de sangue nas mãos. A discussão entre Ron e um dos seus superiores sobre o possível impacto das mudanças deste grupo na política norte-americana, por exemplo, é de uma coragem inimaginável, principalmente por tirar o elefante da sala no que diz respeito ao real alvo desta poderosa crítica. Somado a isso, nas entrelinhas, Lee não perde a oportunidade de expor as verdades por trás de algumas populares frases do imaginário americano atual, mostrando o real perigo escondido em sentenças ufanistas e propositalmente divisivas.


Um sentimento de ameaça que fica bem claro dentro do assombroso último ato. Com completo domínio narrativo sobre a sua obra, Spike Lee eleva o nível de dramaticidade e suspense ao entregar um dos clímaces mais poderosos da história recente do cinema. Quando tudo parecia rumar para um desfecho tradicional, o realizador esmurra os nossos estômagos ao esfregar a realidade na cara do público, ao ouvir a castigada e inspiradora voz da experiência, criando um dinâmico paralelo entre as vítimas e os seus algozes. Impulsionado pela fluida montagem e pelos enervantes riffs de piano da impactante trilha sonora de Terence Blanchard, Lee interliga os polos de maneira brilhante, culminando num desfecho de ‘plot’ contundente, crítico e a sua peculiar maneira cínico. Um desfecho emblemático, em especial, pela maneira com que o realizador “resgata” um dos filmes mais infames já produzidos por Hollywood: O Nascimento de Uma Nação (1915). Traçando um desolador paralelo entre uma brutal história real e os efeitos da obra de D.W. Griffith, Lee não perde a oportunidade atacar com toda a sua ferocidade e bravura esta abominável grande produção, criando um choque natural ao personificar a face mais nefasta do racismo. 


E isso sem, em momento algum, criar vítimas. No final deste desconcertante relato, a sensação é de sobrevivência, de resiliência e de orgulho. Um sentimento de empoderamento que, diga-se de passagem, ganha um forte eco na grave voz de John David Washington. Filho do também ator Denzel Washington, ele esbanja carisma ao criar um protagonista charmoso, destemido e descomplicado, um personagem preparado para lidar com o preconceito, mas um tanto quanto ingênuo e sensível. Com um afiado senso de humor e um olhar intenso, John consegue transitar entre os diversos tons da obra com desenvoltura, criando um protagonista consciente das suas responsabilidades. O mesmo, aliás, podemos dizer de Adam Driver. Um dos realizadores mais singulares da sua geração, o astro da franquia Star Wars confere uma preciosa aura comum ao seu Flip, criando um policial cascudo que parece ser verdadeiramente capaz de sobreviver infiltrado. Como se não bastasse a extraordinária química entre os dois, Lee é astuto ao, através deles, se debruçar sobre os dilemas mais íntimos da dupla, dois homens (um negro e um judeu) acostumados a “asfixiar” as suas raízes na tentativa de se adaptar.


Um verdadeiro manifesto contra o ódio e o racismo, Infiltrado na Klan redefine a sua importância ao mostrar que alguns dos fatos impressos no longa estão mais vivos do que poderíamos imaginar. Quando a questionadora obra parecia já ter apresentado todas as suas credenciais, Spike Lee cruza a linha que separa os talentosos dos gênios ao arrematar a trama de maneira avassaladora, interligando passado e presente com uma coragem e um viés crítico raríssimo dentro do showbiz nos dias de hoje.

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