Um pastor em crise de fé se sente
inspirado a ajudar um casal de jovens ativistas ambientais às avessas com o
destino da sua relação. O que ele não esperava é que o efeito causado pela
dupla seria tão transformador. Com base neste instigante ‘plot’, o diretor e
roteirista Paul Schrader volta aos holofotes disposto a provocar com o
assombroso First Reformed - Fé Corrompida. Um daqueles (raros) projetos
tematicamente ousados que tem muito a dizer sobre alguns reconhecíveis
paradoxos sociais. Responsável por assinar os argumentos de dois dos mais
influentes filmes norte-americanos da sua geração, os mordazes Taxi Driver
(1976) e Touro Indomável (1980), o realizador é enfático ao usar o contexto
religioso como o palco para uma agressiva discussão ambiental, refletindo sobre
os perigos da polarização ao colocar inertes e extremistas num mesmo e perigoso
barco. Apesar das suas perceptíveis dispersões narrativas, Schrader imprime a
sua autoral assinatura ao discutir o choque entre luz e trevas sob uma
perspectiva original, mostrando o quão tênue pode ser a linha entre o justo e o
injusto num cenário de desesperança, dor e amargura. Uma realidade em que a
inocência é incapaz de sobreviver.
Reconhecido pelas suas opiniões
firmes e pelo seu comportamento antissistema, Paul Schrader retorna a sua
melhor forma ao conseguir canalizar os seus questionamentos sobre o mundo em
que vivemos numa obra inquietante, enervante e carregada de urgentes mensagens.
Uma discussão pesada que, sabiamente, parte de um dos temas mais sensíveis em
alguns grandes centros urbanos: as sequelas do aborto. Ao longo do imersivo
primeiro ato, o diretor estabelece as motivações e o estado de espírito dos
seus personagens em torno desta espinhosa questão, usando o drama individual
como uma perspicaz porta de entrada para uma visão bem mais abrangente sobre o
tema. De um lado temos o capelão Toller (Ethan Hawke), um homem com feridas
familiares ainda expostas incapaz de superar o luto e a morte do seu querido
filho. Do outro surge o ativista Michael (Philip Ettinger), um jovem depressivo
que, diante do seu pessimismo quanto ao futuro do nosso planeta, reluta em
colocar um filho neste mundo. Convencido pela sua compreensiva e fiel esposa
Mary (Amanda Seyfried), ele decide ouvir o reverendo em busca de uma luz, sem
sequer desconfiar que estava diante de um semelhante, um homem igualmente
quebrado em busca de um por quê para seguir resistindo.
Sem medo de soar panfletário,
Paul Schrader precisa de pouco menos de vinte minutos para estabelecer a sua
complexa visão sobre os temas propostos. A intenção, aqui, não é simplesmente questionar
o efeito devastador das grandes indústrias sobre o meio ambiente, as escusas
relações entre instituições que deveriam estar em lados opostos da balança, o
desdém do cidadão comum perante a destruição do nosso habitat, a alienação daqueles
que buscam uma visão simplificada sobre o todo e (principalmente) as perigosas
sequelas da polarização num ambiente em que a desinformação impera. A partir da
densa relação entre Toller, Michael e Mary, First Reformed não titubeia em
apontar a mira para o seu público, em nos tirar de uma acomodada zona de
conforto ao desenhar as suas reflexões. As suas indagações são bem mais profundas
e provocadoras. O que fica bem claro, em especial, na emblemática conversa inicial
entre pastor e ativista, uma daquelas sequências ímpares que prepara o terreno
para a grande questão central do longa: por que a mesma sociedade que se
preocupa tanto com o aborto, negligencia sem grande pudor a destruição do nosso
planeta (ou seja, a morte coletiva)? Valorizando basicamente o poder dos seus
diálogos e das intensas performances, Schrader começa ali a expor as nossas
incoerências, a exaltação do eu\meu em detrimento do nós\nosso. Mais do que julgá-los,
o diretor é cuidadoso ao, nesse segmento, ouvir os dois lados, tratar como
válidas as duas explanações, algo que se torna decisivo para o que virá a
seguir. Para o efeito transformador desta franca conversa no destino de Toller.
Um arco sombrio e tortuoso que
dita o tom de First Reformed nos seus dois últimos atos. Sem a intenção de contemporizar,
Paul Schrader invade a intimidade do pastor Toller com peso e introspecção, usando
a sua crise de fé como o gancho perfeito para a introdução da face mais extremista
da obra. Convivendo com os seus próprios fantasmas, o fragilizado protagonista é
mais influenciado do que influencia. Na busca por um sentido, por algo a se
apegar, o solitário reverendo vê a sua indomável raiva encontrar uma válvula de
escape nos ideais do jovem ativista. Através da transformação de Toller, Schrader
é incisivo ao expor os perigos da distorção de ideais justos, realçando a
vulnerabilidade de um cidadão comum e traumatizado diante dos efeitos do extremismo.
Numa espiral de deterioração crescente e convincente, o longa mira tanto no
radicalismo ideológico, quanto no extremismo do dia a dia, naquele que se lê nas redes
sociais, que se aprende nas Igrejas, nas Escolas e no próprio Estado. Sempre que
dá voz aos mais jovens, aliás, Schrader parece fazer questão de escancarar o
vazio dos seus discursos, culminando em diálogos de uma ingenuidade propositalmente constrangedora. No momento em que decide personificar o alvo da
sua crítica ambiental, entretanto, o veterano realizador peca pelo excesso ao
tornar tudo bem unidimensional. Por mais que o discurso relapso aqui
apresentado não fuja da realidade, o cineasta carrega nas tintas na tentativa
de criar o estopim necessário para embasar a explosão de Toller, algo que me
pareceu dispensável diante do seu evidente desequilíbrio emocional. Além disso,
por mais que a pretensiosa sequência do “transe” cause um bem-vindo incomodo, Schrader
parece por vezes se dispersar demais do arco central, o que, a meu ver, ajuda a
explicar a quebra o ritmo do longa na sua metade final.
Um pequeno desequilíbrio que em
nada prejudica o resultado final de First Reformed. Até porque, na transição
para o último ato, Paul Schrader volta a se concentrar naquilo que importa ao
arrematar com visceralidade a jornada de Toller. No centro do (fechado) quadro
em 80% da obra, Ethan Hawke entrega mais uma das suas poderosas atuações ao
explodir em cena na hora H, tornando o viés crítico proposto pelo longa ainda
mais impactante e venal. Impulsionado pela sagacidade de Schrader ao diluir as
tintas entre o conceito de martírio tradicionalmente religioso e o extremismo, o
versátil ator consegue ir da serenidade ao choque com enorme maturidade, entregando
uma das mais complexas performances de 2018. Uma atuação memorável
potencializada pelo rigor estético de Schrader em traduzir o vazio que o
cercava. Como se não bastasse o escopo no formato 4:3 e os planos em sua maioria simétricos, o realizador, com o apoio da equipe de direção de arte, investe
pesado num cenário minimalista, oco, lúgubre, como se ali realmente abitasse um
ser sem luz. Um homem que preferiu trajar o preto, vestir o luto e se esconder
daquilo que o assombrava no amargor da escuridão. O contraste, porém, surge com
a presença de uma radiante Amanda Seyfried. Mesmo com um espaço menor dentro da
trama, é através dela que Schrader expõe o melhor do pastor, os vestígios de um
homem que se perdeu na sua própria desesperança, criando uma relação que cresce
consistentemente até o metafórico clímax.
Uma mensagem em prol da vida seja
no aspecto micro, seja (especialmente) no aspecto macro, First Reformed reflete
sobre as sequelas de uma sociedade adoentada dentro de uma perspectiva extrema,
corajosa e questionadora. Indo da reflexão existencial típica das obras de
Ingmar Bergman (O Sétimo Selo, Luz de Inverno) à crítica implacável de nomes
como o documentarista Davis Guggenheim (Uma Verdade Inconveniente), Paul
Schrader faz as pazes com o cinema de autor numa obra que, embora não seja para
todos, tem muito a dizer sobre o estado das coisas nos grandes centros urbanos.
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