quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Crítica | First Reformed – Fé Corrompida

O perigo da polarização

Um pastor em crise de fé se sente inspirado a ajudar um casal de jovens ativistas ambientais às avessas com o destino da sua relação. O que ele não esperava é que o efeito causado pela dupla seria tão transformador. Com base neste instigante ‘plot’, o diretor e roteirista Paul Schrader volta aos holofotes disposto a provocar com o assombroso First Reformed - Fé Corrompida. Um daqueles (raros) projetos tematicamente ousados que tem muito a dizer sobre alguns reconhecíveis paradoxos sociais. Responsável por assinar os argumentos de dois dos mais influentes filmes norte-americanos da sua geração, os mordazes Taxi Driver (1976) e Touro Indomável (1980), o realizador é enfático ao usar o contexto religioso como o palco para uma agressiva discussão ambiental, refletindo sobre os perigos da polarização ao colocar inertes e extremistas num mesmo e perigoso barco. Apesar das suas perceptíveis dispersões narrativas, Schrader imprime a sua autoral assinatura ao discutir o choque entre luz e trevas sob uma perspectiva original, mostrando o quão tênue pode ser a linha entre o justo e o injusto num cenário de desesperança, dor e amargura. Uma realidade em que a inocência é incapaz de sobreviver.



Reconhecido pelas suas opiniões firmes e pelo seu comportamento antissistema, Paul Schrader retorna a sua melhor forma ao conseguir canalizar os seus questionamentos sobre o mundo em que vivemos numa obra inquietante, enervante e carregada de urgentes mensagens. Uma discussão pesada que, sabiamente, parte de um dos temas mais sensíveis em alguns grandes centros urbanos: as sequelas do aborto. Ao longo do imersivo primeiro ato, o diretor estabelece as motivações e o estado de espírito dos seus personagens em torno desta espinhosa questão, usando o drama individual como uma perspicaz porta de entrada para uma visão bem mais abrangente sobre o tema. De um lado temos o capelão Toller (Ethan Hawke), um homem com feridas familiares ainda expostas incapaz de superar o luto e a morte do seu querido filho. Do outro surge o ativista Michael (Philip Ettinger), um jovem depressivo que, diante do seu pessimismo quanto ao futuro do nosso planeta, reluta em colocar um filho neste mundo. Convencido pela sua compreensiva e fiel esposa Mary (Amanda Seyfried), ele decide ouvir o reverendo em busca de uma luz, sem sequer desconfiar que estava diante de um semelhante, um homem igualmente quebrado em busca de um por quê para seguir resistindo.  


Sem medo de soar panfletário, Paul Schrader precisa de pouco menos de vinte minutos para estabelecer a sua complexa visão sobre os temas propostos. A intenção, aqui, não é simplesmente questionar o efeito devastador das grandes indústrias sobre o meio ambiente, as escusas relações entre instituições que deveriam estar em lados opostos da balança, o desdém do cidadão comum perante a destruição do nosso habitat, a alienação daqueles que buscam uma visão simplificada sobre o todo e (principalmente) as perigosas sequelas da polarização num ambiente em que a desinformação impera. A partir da densa relação entre Toller, Michael e Mary, First Reformed não titubeia em apontar a mira para o seu público, em nos tirar de uma acomodada zona de conforto ao desenhar as suas reflexões. As suas indagações são bem mais profundas e provocadoras. O que fica bem claro, em especial, na emblemática conversa inicial entre pastor e ativista, uma daquelas sequências ímpares que prepara o terreno para a grande questão central do longa: por que a mesma sociedade que se preocupa tanto com o aborto, negligencia sem grande pudor a destruição do nosso planeta (ou seja, a morte coletiva)? Valorizando basicamente o poder dos seus diálogos e das intensas performances, Schrader começa ali a expor as nossas incoerências, a exaltação do eu\meu em detrimento do nós\nosso. Mais do que julgá-los, o diretor é cuidadoso ao, nesse segmento, ouvir os dois lados, tratar como válidas as duas explanações, algo que se torna decisivo para o que virá a seguir. Para o efeito transformador desta franca conversa no destino de Toller.


Um arco sombrio e tortuoso que dita o tom de First Reformed nos seus dois últimos atos. Sem a intenção de contemporizar, Paul Schrader invade a intimidade do pastor Toller com peso e introspecção, usando a sua crise de fé como o gancho perfeito para a introdução da face mais extremista da obra. Convivendo com os seus próprios fantasmas, o fragilizado protagonista é mais influenciado do que influencia. Na busca por um sentido, por algo a se apegar, o solitário reverendo vê a sua indomável raiva encontrar uma válvula de escape nos ideais do jovem ativista. Através da transformação de Toller, Schrader é incisivo ao expor os perigos da distorção de ideais justos, realçando a vulnerabilidade de um cidadão comum e traumatizado  diante dos efeitos do extremismo. Numa espiral de deterioração crescente e convincente, o longa mira tanto no radicalismo ideológico, quanto no extremismo do dia a dia, naquele que se lê nas redes sociais, que se aprende nas Igrejas, nas Escolas e no próprio Estado. Sempre que dá voz aos mais jovens, aliás, Schrader parece fazer questão de escancarar o vazio dos seus discursos, culminando em diálogos de uma ingenuidade propositalmente constrangedora. No momento em que decide personificar o alvo da sua crítica ambiental, entretanto, o veterano realizador peca pelo excesso ao tornar tudo bem unidimensional. Por mais que o discurso relapso aqui apresentado não fuja da realidade, o cineasta carrega nas tintas na tentativa de criar o estopim necessário para embasar a explosão de Toller, algo que me pareceu dispensável diante do seu evidente desequilíbrio emocional. Além disso, por mais que a pretensiosa sequência do “transe” cause um bem-vindo incomodo, Schrader parece por vezes se dispersar demais do arco central, o que, a meu ver, ajuda a explicar a quebra o ritmo do longa na sua metade final.


Um pequeno desequilíbrio que em nada prejudica o resultado final de First Reformed. Até porque, na transição para o último ato, Paul Schrader volta a se concentrar naquilo que importa ao arrematar com visceralidade a jornada de Toller. No centro do (fechado) quadro em 80% da obra, Ethan Hawke entrega mais uma das suas poderosas atuações ao explodir em cena na hora H, tornando o viés crítico proposto pelo longa ainda mais impactante e venal. Impulsionado pela sagacidade de Schrader ao diluir as tintas entre o conceito de martírio tradicionalmente religioso e o extremismo, o versátil ator consegue ir da serenidade ao choque com enorme maturidade, entregando uma das mais complexas performances de 2018. Uma atuação memorável potencializada pelo rigor estético de Schrader em traduzir o vazio que o cercava. Como se não bastasse o escopo no formato 4:3 e os planos em sua maioria simétricos, o realizador, com o apoio da equipe de direção de arte, investe pesado num cenário minimalista, oco, lúgubre, como se ali realmente abitasse um ser sem luz. Um homem que preferiu trajar o preto, vestir o luto e se esconder daquilo que o assombrava no amargor da escuridão. O contraste, porém, surge com a presença de uma radiante Amanda Seyfried. Mesmo com um espaço menor dentro da trama, é através dela que Schrader expõe o melhor do pastor, os vestígios de um homem que se perdeu na sua própria desesperança, criando uma relação que cresce consistentemente até o metafórico clímax.


Uma mensagem em prol da vida seja no aspecto micro, seja (especialmente) no aspecto macro, First Reformed reflete sobre as sequelas de uma sociedade adoentada dentro de uma perspectiva extrema, corajosa e questionadora. Indo da reflexão existencial típica das obras de Ingmar Bergman (O Sétimo Selo, Luz de Inverno) à crítica implacável de nomes como o documentarista Davis Guggenheim (Uma Verdade Inconveniente), Paul Schrader faz as pazes com o cinema de autor numa obra que, embora não seja para todos, tem muito a dizer sobre o estado das coisas nos grandes centros urbanos.

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