A vida cotidiana nunca foi tratada
com tanta grandiosidade na Sétima Arte quanto em Roma, a mais nova pérola do
extraordinário Alfonso Cuarón. Um filme raro e poderoso, principalmente pela
sua capacidade em dar contornos épicos a uma história tão rotineira e
(infelizmente) reconhecível. A rigor, estamos diante de um drama familiar
intimista, a jornada de duas mulheres de classes sociais distintas unidas pelo
abandono e o desprezo masculino. Numa memorável carta de amor ao cinema,
entretanto, o diretor mexicano impressiona ao elevar o escopo da sua obra a
níveis inigualáveis, capturando o fervor na sociedade mexicana no início da década
de 1970 a partir da vulnerável perspectiva de uma família diante de um iminente
divórcio. Numa opção audaciosa, Cuarón decide filmar a dura realidade dos seus humanos
personagens com a imponência de títulos do quilate de Rastros de Ódio (1956), Lawrence
da Arábia (1962), Era uma Vez no Oeste (1968) e mais recentemente Titanic
(1997), o que fica bem claro quando nos deparamos com o potencial imagético e o
virtuosismo estético contido em cada uma das suas preciosas imagens. E isso, é
bom frisar, sem sacrificar o aspecto narrativo da película, tão impactante quanto
o visual. O resultado é um longa vistoso, forte e genuinamente crítico, uma epopeia
urbana recheada de símbolos que se revela uma comovente ode a resiliência
feminina em tempos de turbulência. Uma experiência cinematográfica indescritível.
Um entusiasta do poder imagético
do dispositivo cinema, Alfonso Cuarón sabe como poucos transitar do macro para
o micro em suas obras. Na verdade, visual e narrativa são geralmente companheiros
inseparáveis nos seus trabalhos. Seja numa aventura infanto-juvenil (Harry Potter
e o Prisioneiro de Askaban), seja num implacável Sci-Fi distópico (Filhos da
Esperança), seja num grandiloquente drama de sobrevivência espacial
(Gravidade), seus projetos se tornaram verdadeiros eventos cinematográficos
muito em função do seu encantamento pelo fator humano independentemente do tamanho
da sua produção. Um traço, muito provavelmente, oriundo da sua fase “raiz”, do
seu começo no cinema independente mexicano, da época em que era obrigado a
fazer muito com bem pouco para se destacar. Em Roma, porém, Cuarón decidiu
seguir um caminho diferente. Acostumado ao valorizar o micro em títulos de
porte\alcance macro, o diretor mexicano propõe uma bem-vinda inversão ao tratar
o rotineiro com algo épico, gigantesco. As suas imagens, por diversas vezes,
falam por si só. A partir de um ‘plot’ genuinamente íntimo, a história de uma
empregada, a afetuosa Cleo (Yalitza
Aparicio), obrigada a lidar com os seus problemas e o dos seus patrões durante o
turbulento divórcio deles, o realizador amplia o escopo do drama ao tornar tudo o
mais imponente possível. Num ‘mise en scene’ primoroso, Cuarón evita ao máximo
os planos fechados\detalhes. Os seus enquadramentos são geralmente abertos, panorâmicos,
independendo do ambiente em que a cena está inserida. Tudo se torna
indescritivelmente cinematográfico. Uma lavagem no quintal, uma corrida ao cinema,
uma simples caminhada por uma rua do subúrbio. O mexicano filma o banal como se
estivesse rodando uma epopeia do tipo Coração Valente (1995), enchendo o set de
figurantes, elementos cênicos e muito (mas muito) movimento. Confesso que, por
diversas vezes, me peguei boquiaberto, impactado, sem saber se me concentrava
no foco da ação, ou na beleza exótica dos cenários propostos.
O que falar, aliás, da estonteante fotografia em preto e branco do próprio
Alfonso Cuarón. Fazendo um precioso uso da iluminação natural, dos texturizados
contrastes e dos incríveis planos sequenciais, o diretor nos presenteia com
enquadramentos de gosto refinadíssimo, extraindo o belo dos lugares mais
improváveis. Seja uma paradisíaca praia no litoral, seja uma lamacenta cidade
do interior, os cenários são tratados com o mesmo requinte estético, com a
mesma grandiosidade, culminando num conjunto cênico que há muito tempo o cinema
não via. Desde Mad Max: Estrada da Fúria (2016) e antes o próprio Gravidade (2013) eu não me
deparava com uma experiência assim. Como não citar, por exemplo, a
inacreditável sequência do incêndio, ou então a magnífica cena da manifestação,
planos gigantescos (e inesperados) em que a sensação de caos é tão gritante que
chega a causar repentino choque. Até em cima disso, aliás, Cuarón é perspicaz
ao, sempre que possível, distanciar a trama do ambiente doméstico, extraindo o
máximo das antagônicas locações escolhidas em cenas dignas de aplausos. E com
isso não quero dizer que as passagens “caseiras” são menos impactantes. Muito
pelo contrário. Com movimentos de câmera ousados (muitos deles circulares) e uma impressionante noção de
espaço, o realizador mexicano é cuidadoso ao capturar a rotina de Cleo e da
família dos seus patrões em takes expressivos, prezando pela riqueza de
detalhes e pela sensação de desordem ao criar um cenário naturalmente imersivo.
A cereja do bolo quando o assunto é o visual, entretanto, está no nítido senso
de nostalgia de Cuarón. Vide a brincadeira auto referencial envolvendo um certo
filme espacial e a forma com que ele homenageia o cinema dentro da obra. Na
verdade, mais do que simplesmente revisitar as memórias da sua infância sob uma perspectiva
lúdica, ele é cuidadoso ao mostrar para as novas gerações a realidade em que cresceu,
refletindo sobre os contrastes sociais, a crise política, a repressão e o machismo
que o cercava ao imprimir em tela (num fantástico trabalho de direção de arte e
efeitos visuais) a sua visão do México setentista. Um retrato completo e passional
sobre um período chave na sua história e na do seu país.
Como disse lá em cima, porém, visual e narrativa costumam caminhar de
mãos dadas nas obras de Alfonso Cuarón. E aqui não é diferente. Tão impactante
quanto o aspecto estético, o roteiro assinado pelo próprio diretor é incisivo
ao desvendar o turbilhão de emoções em torno de uma jovem mulher despreparada
para lidar com os problemas que estavam por vir. Guiada pela soberba
performance da força da natureza chamada Yalitzion Aparicio, que, no seu filme
de estreia, esbanja maturidade, comedimento e sensibilidade num trabalho ora introspectivo,
ora afetuoso, o realizador mexicano é cuidadoso ao tentar entende-la melhor, ao
investigar as suas nuances mais íntimas enquanto estabelece os seus conflitos. Num
primeiro momento, ele é astuto ao se preocupar em estabelecer a rotina doméstica
de Cleo, ao mostrar a sua adorável relação com as crianças, o respeito junto
aos patrões, a sua posição dentro de uma estrutura familiar que não era sua.
Uma dinâmica, diga-se de passagem, ainda hoje reconhecível ao redor do nosso
continente. A barreira patrão\empregada, entretanto, começa a cair por terra no
momento em que matriarca e babá se veem expostas a um problema semelhante.
Com profundidade, intimismo e uma bem-vinda dose de naturalismo, Cuarón
consegue, a partir do discreto olhar de Cleo, traçar um paralelo entre as duas,
mostrando que algumas situações não escolhem classes sociais.
Sem nunca apelar para soluções didáticas e explicações desnecessárias, o
argumento é inteligente ao estreitar os laços entre a equilibrada protagonista e
a instável Sofia (interpretada com vigor pela convincente Marina de Tavira), ao
gradativamente “demolir” o muro que as separava, encontrando no arco
sentimental das suas o estopim necessário para criticar o machismo e escancarar
a face mais covarde dos seus personagens masculinos. Embora flerte por uma ou
duas vezes com algumas conveniências narrativas, Cuarón é categórico ao narrar
a trajetória de ambas rumo a independência, refletindo também sobre o divórcio,
o abandono e a disfuncionalidade familiar como um todo sob uma perspectiva densa
e multidimensional. Sem querer revelar muito, ainda que Cuarón faça um precioso
uso dos simbolismos em diversos outros momentos do longa, poucas vezes o fardo
do amor materno foi capturado com tanta franqueza no cinema quanto na sequência
do mar, uma cena tensa e sufocante que surge como a metáfora perfeita para a
realidade das duas personagens diante das suas respectivas “novas aventuras”. E
isso sem nunca soar ingênuo, o que fica bem claro dentro do comedido desfecho,
uma escolha interessante por se revelar a mais verídica\contextualizadora entre os três possíveis
finais desenhados pelo longa.
Uma crônica maiúscula sobre a rotina de muitas mulheres ao redor do
mundo, Roma é um drama poderoso, um longa singelo e ao mesmo tempo majestoso
capaz de discorrer sobre alguns enraizados problemas pessoais\sociais sob uma perspectiva
genuinamente cinematográfica. Responsável pela direção, roteiro, fotografia,
edição e produção do longa, Alfonso Cuarón faz jus as elevadas expectativas em
torno deste original Netflix ao entregar uma película arrojada, com visual de
filme épico e alma ‘indie’, uma experiência realística e sensorial de um autor
convicto da sua arte. Um diretor capaz de traduzir em tela as suas engenhosas
pretensões, premiando o espectador com uma das maiores e mais belas películas
em anos.
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