Quando viver com medo é simplesmente viver
Herdeiro natural de títulos do
porte de Faça a Coisa Certa (1989), Os Donos da Rua (1991), Fruitvale Station
(2013) e o recente Corra! (2017), Ponto Cego (Blindspotting, no original) é o tipo de soco no estômago
cinematográfico que ora e vez nós merecemos levar. Embora parta de uma
premissa recorrente na atualidade, a violência policial contra os negros
norte-americanos, a comédia dramática dirigida pelo novato Carlos Lopez Estrada
surpreende ao não ficar presa no ato em si. Um ataque covarde e naturalmente
trágico que, ao ser tratado como algo rotineiro na rotina dos personagens, surge
apenas como o agente catalisador da história. Como mais um pesadelo no dia a
dia daqueles que se acostumaram a lidar com isso.
Impulsionado pelas soberbas performances da dupla Daveed Digs (da série Black-Ish e do musical Hamilton) e Rafael Casal, o realizador mexicano é enfático ao discorrer sobre a realidade de dois amigos de infância que cresceram em meio a violência, a desigualdade e a marginalidade. Com um afiado senso de ironia, Lopez é astuto ao trazer a pluralidade étnica para o centro da trama, colocando o dedo na ferida ao mostrar como a questão racial ainda hoje faz uma grande diferença nos grandes centros urbanos. De um lado temos o bem-humorado Colin (Digs), um homem capaz de aprender com os seus erros disposto a retomar o rumo da sua vida após um período em liberdade condicional. Do outro temos o falastrão Miles (Casal), um pai de família de bom coração, mas um tanto quanto estourado, que não parece medir a consequência dos seus atos. Apesar da proximidade social entre os dois, logo fica claro o tamanho do abismo que os separa. Ao inverter os arquétipos frequentemente utilizados no gênero, o branco é o "gangsta" da vez, Lopez coloca o dedo em algumas enraizadas feridas ao mostrar como, ainda hoje, a cor da pele segue definindo a identidade\índole de algumas pessoas. Sem um pingo de condescendência, o diretor é feroz ao apontar o dedo para aqueles que não querem ver, mostrando como, mesmo numa sociedade teoricamente multirracial, o preconceito e a desigualdade seguia vitimando pessoas inocentes. E isso sob a perspectiva de um homem comum que, após um episódio traumático, não conseguiu simplesmente "virar a cara" e continuar vivendo.
O grande trunfo de Ponto Cego, no
entanto, está na maneira com que o roteiro evita limitar tudo a
violência urbana. Por mais que o longa seja contundente quando necessário ao
revelar o misto de medo, desrespeito e insegurança em torno da rotina dos
afro-americanos, a sequência da batida policial, em especial, é sufocante, Carlos Lopez Estrada estica a
corda ao tecer um precioso comentário mais amplo sobre questões culturais,
sobre a inversão de identidades, sobre as sequelas geradas pela miscigenação "fake". O arquétipo do homem descontruído\hispster é o principal alvo da película. Aquele que quer se enturmar, usa gírias, topa morar no bairro, mas, pouco a pouco, parece interferir bem mais do que oferecer algo em troca. Uma
abordagem potencializada pelo cenário em que a trama é situada, uma “modificada”
cidade de Oakland. Assim como aconteceu com outras regiões dos EUA, vide o caso
do Bronx em Nova Iorque, o local em questão vem passando por um “embranquecimento” social. Um processo de
apropriação que, obviamente, só potencializa a sensação de desconforto\raiva
dos protagonistas. O tipo de sentimento que floresce à medida que a trama avança, principalmente
quando o longa decide investigar também o quão forte é o elo entre os amigos diante
das evidentes barreiras raciais.
Por mais que no último ato o argumento dê uma forçada de barra ao tentar trazer a questão da violência policial novamente para o epicentro da história, um deslize atenuado pela maneira multidimensional com que o longa trata o agressor (Ethan Embry, ótimo) e a força da cena em si, Ponto Cego é um filme crítico, engraçado e genuinamente reflexivo que merece (ou melhor, precisa) ter a sua reprimida voz ouvida. Usando o rap, a descolada montagem, o visual estiloso e o seu corajoso senso de humor como um diferencial, Carlos Estrada Lopez entrega um drama social pesado, um filme pequeno e ao mesmo tempo eloquente capaz de escancarar a barreira que separa aqueles que exaltam a multirracialidade e aqueles que realmente vivem a multirracialidade. Uma obra que, através de cenas fortes e por vezes desconcertantes, só constata o quão tolos são aqueles que defendem que o racismo não existe mais.
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