domingo, 9 de dezembro de 2018

Mowgli: Entre Dois Mundos

A verdadeira lei da selva

Esqueça o clássico da Disney. Esqueça os musicais. Esqueça o Baloo fofinho. Esqueça até mesmo a imponente releitura em ‘live-action’ lançada há alguns poucos anos. Se você estiver procurando isso, fique com as versões de 1967 e 2016. Numa releitura selvagem e por vezes visceral, Mogli: Entre dois Mundos esbanja coragem ao se distanciar do teor “familiar” que consagrou a célebre coletânea de contos do escritor Rudyard Kipling dentro da cultura pop. Numa bem-sucedida tentativa de capturar a aura animalesca do texto original, o virtuoso diretor Andy Serkis surpreende ao se encantar pelo lado mais complexo da jornada do protagonista, propondo a já esperada mensagem de igualdade\afirmação proposta pela história desta vez dentro de um contexto bem mais denso e agressivo. E isso, obviamente, com o esmero técnico que o transformou numa das maiores referências quando o assunto é a técnica de captura de movimentos. Um entusiasmo que fica claro na audaciosa opção de imprimir feições humanas na sua fauna de animais digitais fotorrealísticos, uma alternativa singular que, embora nem sempre funcione bem, confere um charme todo especial a esta autoral revisão da fábula de Kipling. 



Vamos aos fatos. Andy Serkis é um dos raros realizadores na atualidade que preza pela sua integridade artística. Alçado ao estrelato pelos seus trabalhos com o desenvolvimento do ‘motion capture’ em títulos como O Senhor dos Anéis e Planeta dos Macacos, o realizador britânico optou por se manter fiel a sua visão de cinema, mesmo que isso diminuísse o alcance das suas produções. E em Mowgli é justamente isso que acontece. O foco, aqui, não está na criançada empolgada com os musicais Disney, no adulto interessado num entretenimento aventuresco, nem tão pouco no marketing e nos lucros com vendas de “bonequinhos”. Serkis decidiu revisar a obra de Kipling da forma mais madura possível, revigorando um (já) requentado arco ao mirar nos fãs de cinema. Independentemente de faixa etária. Sem medo de quebrar as expectativas do público, Entre dois Mundos é certeiro ao restabelecer o ‘status quo’ do pequeno Mogli (Rohan Chand, surpreendente) dentro de um ambiente muito mais selvagem que nas adaptações Disney. Os personagens são basicamente os mesmos, os vínculos idem, mas as relações ganham nuances bem mais complexas. Com dinamismo e poder de síntese, o argumento assinado pela novata Callie Kloves é astuto ao estabelecer essa feroz nova realidade sem sacrificar o elo entre os protagonistas, rompendo com alguns velhos arquétipos enquanto escancara o desequilíbrio causado pela presença humana dentro deste ambiente selvagem. Ao longo do envolvente primeiro ato, Serkis é cuidadoso, por exemplo, ao tratar Mogli como um alvo de desconfiança por parte da alcateia. Ao dar contornos mais erráticos a fiel pantera Baghera (intenso na pesada voz de Christian Bale), um amigo protetor consciente dos perigos que cercavam o filhote de humano. Seguindo essa linha, a cobra Kaa (insinuante na enigmática voz de Cate Blanchett) está longe de ser a vilã ardilosa, o urso Baloo (compreensivo na imponente voz de Andy Serkis) de preguiçoso não tem nada e o lobo Akela (frágil na serena voz de Peter Mullan) se revela muito mais vulnerável do que nas versões anteriores. Uma mudança de personalidade que casa perfeitamente com a proposta tridimensional desta adaptação.


Diante deste remodelado cenário, Andy Serkis é igualmente habilidoso ao reforçar os laços entre os personagens. Mesmo obrigado a acelerar a trama, que, assim como no livro original, não fica “presa” ao ambiente selvagem, o realizador injeta a dramaticidade necessária para que possamos enxergar a sincera relação de cumplicidade entre Mowgli, Baghera e Baloo; a pueril amizade entre o menino lobo e o cativante Bhoot (Louis Ashbourne Serkis, o sobrenome não nega a relação com o pai diretor); além (claro!) da raivosa rixa entre ele e o ardiloso tigre Shere Kahn (Benedict Cumberbatch). É legal ver como a história caminha com as suas próprias pernas do primeiro ao último minuto, oferecendo um novo rumo bem mais condizente com a remodelada identidade dos protagonistas. Sem querer revelar muito, na hora H, Serkis investe em pelo menos duas sequências extremamente ousadas, uma delas chega a ser desconcertante, mostrando que na selva é preciso sujar as mãos para chegar ao topo da cadeia alimentar. O meu único senão com o roteiro, na verdade, fica para a transição para o último. Embora toda a passagem na cidadela indiana seja visualmente memorável, principalmente pelo esmero do diretor em imprimir a cultura local na tela sem parecer que estamos diante de um doc genérico, o roteiro se precipita ao tornar o processo de adaptação de Mogli junto aos humanos mais frenético que o esperado. O que, inclusive, explica a subaproveitada conexão entre ele a sua referência materna (Freida Pinto). Além disso, por mais que Shere Khan se revele um antagonista até mais ameaçador que o da recente versão dirigida por Jon Favreau, Serkis vacila ao, na ânsia de estabelecer a importante figura do caçador (Mathew Rhys), se distanciar demais dele neste trecho do filme, cometendo assim um erro que qualquer grande roteiro deveria evitar: não diga o que aconteceu, mostre. Num todo, porém, mesmo diante destes altos e baixos narrativos, é inegável o esforço do realizador em mostrar a verdadeira lei da selva sob esta perspectiva fabulesca, o que ajuda a valorizar a mensagem em prol do equilíbrio ambiental defendida pela adaptação.


Como disse acima, entretanto, o grande charme de Mowgli reside na ousada opção estética proposta por Andy Serkis. Após a incrível experiência fotorrealística em obras como King Kong e Planeta dos Macacos, o realizador resolveu arriscar ao criar um ambicioso ‘mashup’ de estilos. O resultado pode não ser o mais verossímil, mas é indiscutivelmente original. Numa mistura pouco ortodoxa, se por um lado Serkis mostra um inestimável esmero pelo realismo na textura, no design realístico das cicatrizes\feridas, no peso da animação e na reação da pelugem aos efeitos naturais (luz, água, vento), por outro ele flerta com elementos mais “lúdicos” ao conferir uma expressão "humanizada" ao rosto dos animais. Fazendo um precioso uso da técnica de captura de movimentos, Serkis cria assim um ‘mise en scene’ bem mais dramático do que o esperado, muito em função das fortes performances de todo o elenco. E isso, na maioria das vezes, sem sacrificar o viés animalesco dos personagens. O que fica bem claro, em especial, nas ferozes sequências do “teste” e da fuga das ruínas dos macacos, assim como em todas as cenas que o realístico Baloo dá as caras. 


Além de tentar valorizar ao máximo o elo físico entre o intenso Rohan Chand e os personagens digitais, Serkis é igualmente habilidoso ao aplicar o CGI em cenários em sua maioria reais, mostrando uma refinada assinatura ao investir em expansivos planos abertos e enquadramentos naturalmente imagéticos. Vide a magnífica sequência final, um daqueles quadros dignos de moldura. O grande ponto baixo quando o assunto é o visual, no entanto, fica pela figura dos lobos, de longe o elemento mais artificial da película. Se nos animais com rostos “largos” as feições humanas se encaixam com maior naturalidade, nos caninos o resultado soa mais cartunesco que o ideal, chegando até a descaracteriza-los. Talvez por isso a alcateia em si tenha até um menor espaço nesta versão. Outro ponto que não fica à altura dos demais filmes de Serkis está no olhar dos personagens. Nos takes mais fechados, como de costume, o trabalho é de altíssimo nível. Já em alguns momentos, nos planos mais abertos, o brilho no olhar não soa tão vivo assim, contrastando com a riqueza de detalhes das feições de personagens como o vilão Shere Kahn (impiedoso na voz ameaçadora de Benedict Cumberbatch) e a loba Nisha (dublada com doçura por Naomie Harris).


Trazendo sangue para um universo até então adaptado sob uma perspectiva lúdica, Mogli: Entre Dois Mundos é uma releitura corajosa com momentos de tensão e empolgação que compensa os seus deslizes com muito coração. Embora o argumento se apresse na transição para o último ato, é fácil dizer que Andy Serkis entrega uma adaptação recheada de predicados, uma obra com uma cinematografia imponente e luminosa (Michael Seresin), efeitos digitais de alto nível, uma abordagem selvagem e um inestimável respeito pelo material fonte. Um filme sincero que, agrade ou não, se mostra fiel a sua feroz proposta, um senso de integridade cada vez mais raro dentro do universo dos grandes blockbusters.

2 comentários:

Anônimo disse...

O minha predileção por esse filme, foi do desenho animado, os outros não assisti na forma humana do Mowgli, mas pra criança é um bom entretimento esse filme, uma história muito legal.

thicarvalho disse...

Eu acho esse um filme para crianças e adultos. É narrativamente mais realístico, selvagem. Uma proposta corajosa do Andy Serkis. Valeu pela visita.