Um dos relatos mais comoventes
que eu tive a oportunidade de assistir em 2018, Domando o Destino (The Rider, no original) é o tipo de
obra que só o cinema ‘indie’ é capaz de produzir. Um retrato contemplativo
sobre a resiliência humana a partir da perspectiva de um jovem que viu os seus
sonhos ruírem da noite para o dia. Com uma dose de sinceridade cada vez mais
rara na indústria da Sétima Arte, a diretora, produtora e roteirista Chloé Zhao
fascina ao “esticar” ao máximo a linha que separa o documental da ficção,
entregando uma história real, sobre pessoas reais, filmado com a imponência dos
maiores clássicos do Western norte-americano. Uma obra preciosa que, ao ir além
da figura do convalescente protagonista, desconstrói alguns dos mais velhos
arquétipos do gênero num drama familiar poderoso e indescritivelmente sensível.
Durante a realização de um dos seus filmes, o desconhecido Song my Brothers Taught Me (2015), Chloé Zhao conheceu o caubói Brady Jandreau, um rapaz cativante que, ao longo das filmagens, se ofereceu para ensina-la a montar em cavalos. Tempos depois, após prometer que daria a ele a chance de atuar num dos seus projetos futuros, a cineasta de origem chinesa descobriu que a jovem estrela dos rodeios havia sofrido um grave acidente em uma das suas montarias. Comovida, Chloé decidiu então que essa seria a sua próxima história, o que ajuda a explicar o magnífico sentimento de verdade em torno de Domando o Destino. Numa opção ousada, a realizadora optou por recriar os fatos a partir das experiências daqueles que realmente o viveram, escalando um elenco de não atores, encabeçados pelo próprio Brady, na tentativa de traduzir o impacto da deficiência na rotina de um jovem sonhador apaixonado por aquilo que fazia. Uma experiência única, de rara delicadeza, um profundo estudo de personagem com foco nos medos, anseios e desilusões de um homem obrigado a mudar.
A alma de Domando o Destino, inclusive, reside justamente na força do elo entre os protagonistas, algo
realmente difícil de se replicar numa obra 100% ficcional. Embora Chloé Zhao faça
questão de tratar a história de Brady da forma mais cinematográfica possível, é
nítido o seu esforço em valorizar a dinâmica entre os empáticos personagens, em
trazer a realidade para o centro da tela. Estamos diante de uma família real,
com conflitos reais, que sentiu na pele a dor de Brady ao ser impossibilitado
de fazer aquilo que mais amava. Num extraordinário processo de direção de não
atores, Zhao esbanja maturidade ao capturar o amargor do caubói, ao estabelecer
a sua complexa relação com o pai, o franco Tim Jandreau, e a sua revigorante
amizade com a irmã, a autista Lily Jandreau. Sem nunca interferir demais nos
gestos dramáticos dos seus comandados, Zhao investe numa agridoce abordagem
naturalista, realçando os altos e baixos do errático peão ora de maneira doce e
esperançosa, ora de forma bruta e pessimista.
Por mais que o silencioso (e visualmente
belíssimo) viés contemplativo dite o tom da jornada do protagonista, a
diretora, quando necessário, é inteligente ao preencher as lacunas com soluções
genuinamente cinematográficas. Num momento em que Brady parecia próximo de
explodir, por exemplo, Chloé Zhao pinta a tela de vermelho com estilo, deixando
claro que na nossa frente está alguém com problemas para encontrar o seu prumo.
Mais à frente, quando Brady já parecia ter reencontrado o equilíbrio, a
realizadora chinesa nos brinda com um fantástico plano sequência de quase cinco
minutos, reforçando o seu talento com os animais de forma íntima e absolutamente
única. Ao invés de transformar tudo numa típica história de superação, Zhao vai
além ao tentar realmente entender os conflitos do protagonista, ao, através da
sua nova condição, discutir a sua perspectiva de futuro, as suas frustrações e o
seu ingênuo sopro de esperança. O resultado é um retrato denso e comovente sobre
um homem com dificuldades para renegar os seus sonhos em busca de algo para seguir
vivendo.
E como se não bastasse isso,
Chloé Zhao é igualmente sutil ao estabelecer o aspecto macro da sua história, a
realidade de um respeitado jovem peão impossibilitado de exercer o seu principal
“ganha-pão”. Sem nunca vitimizá-lo, a realizadora mostra propriedade ao tentar
entender tanto o senso de responsabilidade de Bradley para com a sua família,
quanto a sua falta de preparo para outras funções, reforçando o ‘background’
dramático ao revelar o impacto do “ostracismo” na vida de um rapaz que se
acostumou a viver os dias de glória. Somado a isso, nitidamente fascinada pelo
ambiente dos rodeios, um universo perigoso em que um “passo em falso” pode
representar uma lesão, a aposentadoria precoce ou até mesmo a morte, Zhao resgata
alguns elementos do Western ao desconstruir a imagem do caubói. Esqueça a
abordagem geralmente sisuda\insensível. O ambiente brutalizado. A partir da
figura de Bradley, o longa é cuidadoso ao capturar o senso de camaradagem entre
os competidores, a preocupação, o respeito, o orgulho e o apreço mútuo,
escancarando os seus temores e costumes com rara sensibilidade. Um sentimento
de fraternidade que fica bem claro na emocionante relação entre Bradley e o seu
velho amigo Lane Scott. Muito mais do que um simples personagem de apoio, a
ex-estrela dos rodeios surge como uma espécie de bússola moral para o
protagonista, um elo afetuoso capturado da maneira mais sincera possível pelas
lentes de Zhao. Vide o poderoso clímax.
Não se engane, porém, com a
abordagem íntima e naturalista. Sempre que possível, Chloé Zhao se arrisca ao
reverenciar a estética clássica do velho oeste, tirando o máximo proveito dos
imponentes cenários rurais, da iluminação natural e da expressiva fotografia fria
de Joshua James Richard (O Reino de Deus) na construção de sequências
maiúsculas e enquadramentos dignos de moldura. Como não citar, por exemplo, a
cena da última cavalgada de Bradley junto do seu velho amigo de quatro patas, um
momento revigorante que – por si só – ajuda a estabelecer a face mais
indomável\persistente do protagonista. No embalo dos melancólicos acordes da
atmosférica trilha sonora de Nathan Halpern, Domando o Destino (The Rider, no
original) é um drama indispensável, um relato poético, imersivo e genuinamente
humano sobre um jovem às avessas com a sua nova realidade. Um peão de rodeios “derrubado”
pela vida obrigado a mudar para seguir lutando e sonhando.
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