terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Domando o Destino - The Rider

As quedas da vida

Um dos relatos mais comoventes que eu tive a oportunidade de assistir em 2018, Domando o Destino (The Rider, no original) é o tipo de obra que só o cinema ‘indie’ é capaz de produzir. Um retrato contemplativo sobre a resiliência humana a partir da perspectiva de um jovem que viu os seus sonhos ruírem da noite para o dia. Com uma dose de sinceridade cada vez mais rara na indústria da Sétima Arte, a diretora, produtora e roteirista Chloé Zhao fascina ao “esticar” ao máximo a linha que separa o documental da ficção, entregando uma história real, sobre pessoas reais, filmado com a imponência dos maiores clássicos do Western norte-americano. Uma obra preciosa que, ao ir além da figura do convalescente protagonista, desconstrói alguns dos mais velhos arquétipos do gênero num drama familiar poderoso e indescritivelmente sensível.

Durante a realização de um dos seus filmes, o desconhecido Song my Brothers Taught Me (2015), Chloé Zhao conheceu o caubói Brady Jandreau, um rapaz cativante que, ao longo das filmagens, se ofereceu para ensina-la a montar em cavalos. Tempos depois, após prometer que daria a ele a chance de atuar num dos seus projetos futuros, a cineasta de origem chinesa descobriu que a jovem estrela dos rodeios havia sofrido um grave acidente em uma das suas montarias. Comovida, Chloé decidiu então que essa seria a sua próxima história, o que ajuda a explicar o magnífico sentimento de verdade em torno de Domando o Destino. Numa opção ousada, a realizadora optou por recriar os fatos a partir das experiências daqueles que realmente o viveram, escalando um elenco de não atores, encabeçados pelo próprio Brady, na tentativa de traduzir o impacto da deficiência na rotina de um jovem sonhador apaixonado por aquilo que fazia. Uma experiência única, de rara delicadeza, um profundo estudo de personagem com foco nos medos, anseios e desilusões de um homem obrigado a mudar.


A alma de Domando o Destino, inclusive, reside justamente na força do elo entre os protagonistas, algo realmente difícil de se replicar numa obra 100% ficcional. Embora Chloé Zhao faça questão de tratar a história de Brady da forma mais cinematográfica possível, é nítido o seu esforço em valorizar a dinâmica entre os empáticos personagens, em trazer a realidade para o centro da tela. Estamos diante de uma família real, com conflitos reais, que sentiu na pele a dor de Brady ao ser impossibilitado de fazer aquilo que mais amava. Num extraordinário processo de direção de não atores, Zhao esbanja maturidade ao capturar o amargor do caubói, ao estabelecer a sua complexa relação com o pai, o franco Tim Jandreau, e a sua revigorante amizade com a irmã, a autista Lily Jandreau. Sem nunca interferir demais nos gestos dramáticos dos seus comandados, Zhao investe numa agridoce abordagem naturalista, realçando os altos e baixos do errático peão ora de maneira doce e esperançosa, ora de forma bruta e pessimista.


Por mais que o silencioso (e visualmente belíssimo) viés contemplativo dite o tom da jornada do protagonista, a diretora, quando necessário, é inteligente ao preencher as lacunas com soluções genuinamente cinematográficas. Num momento em que Brady parecia próximo de explodir, por exemplo, Chloé Zhao pinta a tela de vermelho com estilo, deixando claro que na nossa frente está alguém com problemas para encontrar o seu prumo. Mais à frente, quando Brady já parecia ter reencontrado o equilíbrio, a realizadora chinesa nos brinda com um fantástico plano sequência de quase cinco minutos, reforçando o seu talento com os animais de forma íntima e absolutamente única. Ao invés de transformar tudo numa típica história de superação, Zhao vai além ao tentar realmente entender os conflitos do protagonista, ao, através da sua nova condição, discutir a sua perspectiva de futuro, as suas frustrações e o seu ingênuo sopro de esperança. O resultado é um retrato denso e comovente sobre um homem com dificuldades para renegar os seus sonhos em busca de algo para seguir vivendo.


E como se não bastasse isso, Chloé Zhao é igualmente sutil ao estabelecer o aspecto macro da sua história, a realidade de um respeitado jovem peão impossibilitado de exercer o seu principal “ganha-pão”. Sem nunca vitimizá-lo, a realizadora mostra propriedade ao tentar entender tanto o senso de responsabilidade de Bradley para com a sua família, quanto a sua falta de preparo para outras funções, reforçando o ‘background’ dramático ao revelar o impacto do “ostracismo” na vida de um rapaz que se acostumou a viver os dias de glória. Somado a isso, nitidamente fascinada pelo ambiente dos rodeios, um universo perigoso em que um “passo em falso” pode representar uma lesão, a aposentadoria precoce ou até mesmo a morte, Zhao resgata alguns elementos do Western ao desconstruir a imagem do caubói. Esqueça a abordagem geralmente sisuda\insensível. O ambiente brutalizado. A partir da figura de Bradley, o longa é cuidadoso ao capturar o senso de camaradagem entre os competidores, a preocupação, o respeito, o orgulho e o apreço mútuo, escancarando os seus temores e costumes com rara sensibilidade. Um sentimento de fraternidade que fica bem claro na emocionante relação entre Bradley e o seu velho amigo Lane Scott. Muito mais do que um simples personagem de apoio, a ex-estrela dos rodeios surge como uma espécie de bússola moral para o protagonista, um elo afetuoso capturado da maneira mais sincera possível pelas lentes de Zhao. Vide o poderoso clímax.


Não se engane, porém, com a abordagem íntima e naturalista. Sempre que possível, Chloé Zhao se arrisca ao reverenciar a estética clássica do velho oeste, tirando o máximo proveito dos imponentes cenários rurais, da iluminação natural e da expressiva fotografia fria de Joshua James Richard (O Reino de Deus) na construção de sequências maiúsculas e enquadramentos dignos de moldura. Como não citar, por exemplo, a cena da última cavalgada de Bradley junto do seu velho amigo de quatro patas, um momento revigorante que – por si só – ajuda a estabelecer a face mais indomável\persistente do protagonista. No embalo dos melancólicos acordes da atmosférica trilha sonora de Nathan Halpern, Domando o Destino (The Rider, no original) é um drama indispensável, um relato poético, imersivo e genuinamente humano sobre um jovem às avessas com a sua nova realidade. Um peão de rodeios “derrubado” pela vida obrigado a mudar para seguir lutando e sonhando.

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