sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Legítimo Rei

Sangue pela liberdade

Coração Valente (1995) é um filme antológico. Sob a contundente batuta de Mel Gibson, o longa se revelou a obra definitiva sobre a violenta batalha pela independência da Escócia, um épico inigualável que se colocou facilmente entre os melhores do gênero. Quando o assunto é a fundamentação histórica, entretanto, ficou claro que o ator e diretor resolveu reinterpretar os fatos a favor do seu legendário personagem. Fascinado pela rebeldia indomável do popular Sir William Wallace, o realizador o transformou no grande símbolo da luta armada escocesa, se insurgindo contra a politicagem da nobreza da época ao defender fervorosamente que a “revolução” nasceu das mãos e do coração do povo, representado, logicamente, na figura do protagonista. A grande vítima da sua revisão, no entanto, foi o igualmente respeitado lorde Robert The Bruce. Uma figura chave na luta contra a opressão inglesa, o futuro rei da Escócia foi retratado como um nobre justo, mas inerte, um homem capaz de trair em prol da segurança do seu povo. E Gibson, aqui, não poderia estar mais equivocado.

Embora não tenha participado da batalha que dizimou as tropas de William Wallace e tenha posteriormente se rendido ao rei Eduardo I após aceitar a derrota dos revoltosos, Robert nunca (e de forma alguma) traiu o seu parceiro de batalhas. Uma injustiça cinematográfica que, quase duas décadas depois, é devidamente corrigida no feroz Legítimo Rei. Inspirado por este indiscutível clássico do cinema moderno, o longa dirigido por um enérgico David Mackenzie (do magnífico A Qualquer Custo) bebe da fonte de Coração Valente ao explorar a face mais atroz e sanguinária deste caótico conflito, esbanjando visceralidade ao expor o rastro de morte causado por esta luta pela liberdade. Por mais que, a rigor, o longa se apresse demais em algumas passagens, reduzindo o impacto da redenção de Robert The Bruce e da metade final como um todo, o realizador é cuidadoso ao prezar pelos detalhes, ao traduzir tanto o sujo jogo político por trás das batalhas, quanto a face mais errática das novas lideranças, revigorando o tema ao oferecer uma visão bem mais completa sobre os bastidores desta histórica guerra. E isso, obviamente, sem sacrificar o viés épico da produção, impresso com enorme requinte estético em tela na magnífica reconstrução medieval, nos expansivos cenários rurais e nas brutais sequências de ação. 


Logo na fantástica cena de abertura, um engenhoso plano sequência de quase dez minutos, David Mackenzie é enfático ao situar não só o foco político da trama, mas principalmente a realidade dos derrotados escoceses. Num ‘mise en scene’ ágil e imersivo, o realizador é sagaz ao mostrar a posição dos acuados nobres sobreviventes, entre eles Robert The Bruce (Chris Pine), obrigados a “beijar a mão” do agressivo Rei Eduardo (Stephen Dillane) e aceitar a influência inglesa nos seus domínios. Em poucos minutos, Mackenzie passeia com a sua câmera por esse “pedaço da história”, estabelecendo com maestria o clima de tensão entre os poderes, a opressão da coroa britânica, as rixas entre os próprios escoceses e a rivalidade individual entre as novas gerações de monarcas. Na verdade, a grande sacada do argumento assinado por Bash Moran, James MacInnes e pelo próprio David Mackenzie está na maneira com que a trama se concentra nesta passagem de bastão, num conflito que começa a ser desenhado agora pela segunda geração de herdeiros ao trono. Diferente de Coração Valente, em que a guerra se concentrava nas (experientes) figuras do Rei Eduardo, do hábil político Robert Bruce Senior (outro extremamente vilanizado na obra de Mel Gibson) e claro de William Wallace, Legítimo Rei é cuidadoso ao seguir os impulsivos passos dos filhos, ao expor como os frágeis acordos de paz logo cairiam por Terra diante da covardia e da tirania imposta por ingleses. 


Com uma história que se inicia um pouco antes dos fatos apresentados no fim da obra de Mel Gibson, Legítimo Rei mostra propriedade ao, a partir dos olhos de um apático Robert The Bruce, revelar como a chama da revolução voltou a tomar a mente dos desamparados escoceses. Impulsionado pela soberba performance de Chris Pine, impecável ao retratar tanto a face resiliente e serena do futuro rei, quanto o seu lado mais falho e ingênuo, Mackenzie se esforça para tornar a sua ascensão a liderança o mais crível possível. Esqueça, portanto, o rebelde empático vivido por Gibson. O herói inabalável e destemido. Robert The Bruce é tratado aqui como um líder errático e despreparado, um homem obrigado a aprender com os seus erros, com as sanguinárias sequelas das suas fraquezas. Estamos diante de um lorde que, entre a cruz e a espada, entendeu que era a hora de sujar a espada, de encarar o caos, de assumir as suas responsabilidades como um futuro aspirante ao trono. Mesmo que isso custe a vida daqueles que ele mais ama. Uma jornada intensa e dolorosa traduzida com esmero pelas lentes de Mackenzie, sutil ao buscar no expressivo olhar de Pine, no misto de desesperança, frieza e fúria, os sentimentos que moveram o seu Robert The Bruce rumo a uma decisiva transformação.


Um esmero que, diga se de passagem, se reflete também nos demais personagens. Embora peque pela unidimensionalidade aqui ou ali, David Mackenzie é sucinto ao valorizar num primeiro momento o micro em detrimento do macro, ao se preocupar em solidificar os laços construídos antes do frenesi da guerra. O que, indiscutivelmente, se torna muito importante diante dos brutais embates que tomam conta da trama a partir da acelerada segunda metade da película. A começar, por exemplo, com a adorável relação entre Robert e a destemida rainha Isabel. Indo de encontro ao rótulo da donzela indefesa, o diretor dedica o tempo necessário para transformá-la numa figura independente e justa, uma mulher capaz de comprar a causa do seu marido mesmo sabendo que isso poderia colocar a sua vida em risco. Como se não bastasse a magnética presença da promissora Florence Pugh (Lady McBeth), uma verdadeira ladra de cenas, Mackenzie consegue tirar o máximo proveito da química entre ela e Chris Pine, indo além do romance propriamente dito ao capturar os (constrangedores) costumes da época, o gradativo laço de intimidade entre os dois e a consequente cumplicidade. 


Assim como em Coração Valente, aliás, o realizador é igualmente habilidoso ao dar voz não só aos fiéis escudeiros de Bruce, como também aos seus mais ferrenhos opositores. Enquanto o leal Angus Lord de Islay (Tony Curran, excelente) e o deserdado James Douglas (Aaron Taylor-Johnson, numa performance positivamente insana) logo criam uma honesta identificação com o público, o histriônico príncipe Edward (Billy Howle) e o vil lorde Aymer de Valence (Sam Spruell) causam uma natural repulsa, dando ao realizador os ingredientes necessários para amplificar as rixas entre os polos e estabelecer os motivos para tamanho embate. Por mais que Mackenzie pese a mão quanto aos antagonistas, pintados superficialmente como homens cruéis e por vezes imorais, é legal ver a astúcia do roteiro em também tratá-los como tipos inábeis, como comandantes inexperientes e impulsivos, traçando assim um esperto paralelo entre ingleses e escoceses. A diferença é que, enquanto Robert The Bruce teve tempo para aprender com os seus próprios erros, um arco íntimo bem amarrado por Mackenzie, os imaturos líderes do exército inglês sequer desconfiavam das suas respectivas incapacidades, uma falta de estratégia que só ajuda a potencializar a sensação de caos do visceral último ato.


Quando Legítimo Rei decide abraçar o aspecto macro da história, no entanto, o roteiro parece não acompanhar o virtuosismo estético de David Mackenzie. Impecável ao narrar a primeira grande derrota de Bruce, ao revelar a onda de sangue espalhada pelos ingleses e a condição de miséria do esquálido exército escoceses, o realizador se vê obrigado a apressar as coisas no momento em que começa a acompanhar a retomada do rei "fora da lei" da Escócia. Aos poucos, os detalhes passam a ter menos importância. Os passos em falso são menos percebidos. De batalha em batalha a trama avança de maneira praticamente linear. Quase redundante. A sensação de perigo iminente se esvai gradativamente, como se o roteiro já tivesse a certeza que a vitória se aproximava. Embora, na transição para o último ato, Mackenzie recoloque o filme nos trilhos ao trazer novamente a opressão inglesa para o centro da tela, a impressão que fica por um momento é que o processo de reagrupamento do exército escocês se deu com inexplicável facilidade. Fica nítido que, diante da falta de tempo, o roteiro teve que acelerar as coisas, subaproveitando algumas interessantes questões, entre elas a instável relação entre o rei e o príncipe da Inglaterra, em prol da guerra propriamente dita. O que não chega a ser um problema, verdade seja dita, graças a ferocidade com que Mackenzie reproduz esta brutal luta pela liberdade. 


Com a sua refinada assinatura, o realizador extrai a beleza por trás do caos, investindo em sequências ora grandiosas e exuberantes, ora sujas e viscerais. Fazendo o mínimo uso do recurso do CGI, o que confere um peso todo especial ao longa, Mackenzie não se intimida ao valorizar o elemento épico da história, extraindo o máximo dos reconstruídos cenários, das paisagens naturais e do vasto número de extras na composição das angustiantes batalhas. Nos momentos mais imponentes, o diretor esbanja delicadeza ao apostar em gigantescos planos abertos e\ou aéreos, capturando o vai e vem das tropas de Robert The Bruce em quadros dignos de moldura. Já nas sequências mais agressivas, ele decide nos levar para o olho do furacão, explorando com inspiração o improviso da câmera na mão ao capturar bem de perto a violência explícita, ao traduzir o primitivismo bestial dos envolvidos sob uma perspectiva voraz e sanguinária. O que fica claro, em especial, no caótico clímax, quando, ao igualar todos num lamacento campo de guerra, Mackenzie torna tudo o mais real, brutal e enervante possível. No fim, gritos de comemoração se confundem com lágrimas compulsivas, o cansaço é mútuo, por alguns segundos podemos compartilhar da deterioração física\emocional impressa na tela.


São nas sequências mais íntimas, no entanto, que David Mackenzie exibe o seu detalhismo na reconstrução dos modos e costumes do século XIV. Fazendo um brilhante uso das luzes naturais, o realizador se esforça para nos inserir neste antigo ambiente, para tornar tudo o mais rústico e próprio da época, uma opção incrementada pela expressiva fotografia em tons de fogo do talentoso Barry Ackroyd (Guerra ao Terror). A impressão que fica, na verdade, é que Mackenzie parece querer nos transformar num espectador ocular da história, vide a arrepiante sequência da coroação do Rei da Escócia, quando fica claro o esmero do diretor em tornar tudo o mais verossímil possível. Prezando pelos detalhes estéticos e também históricos, Legítimo Rei faz justiça a legendária figura de Robert The Bruce num filme épico à moda antiga. Entre a grandiosidade e a brutalidade, David Mackenzie é enfático ao traduzir a face mais suja de um conflito deste porte, reverenciando a resiliente jornada desta marcante figura da história escocesa sem deixar de se comover com as milhares de vidas inocentes dedicadas a esta sangrenta luta pela liberdade contra a tirania.

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