O que eu mais gosto nos filmes de
zumbi é a capacidade deste fértil subgênero em usar o horror para discutir
questões bem mais densas e profundas. Desde que o saudoso George A. Romero reinventou o segmento com a pequena pérola A Noite dos Mortos Vivos (1968), leia mais aqui, virou rotina ver alguns criativos realizadores usarem os erráticos mortos-vivos
dentro de um contexto multitemático, refletindo sobre questões sociais,
culturais e até mesmo pessoais em obras carregada de simbolismos. Eu já vi, por
exemplo, filmes de zumbi sobre a paranoia da Guerra Fria e a segregação racial
(A Noite dos Mortos Vivos), sobre o consumismo desenfreado e a vil natureza
humana (O Despertar dos Mortos), sobre os perigos das desumanas experiências
científicas e da opressão (O Dia dos Mortos), sobre a desigualdade e o duelo de
classes (A Terra dos Mortos, Invasão Zumbi), sobre a violência contra as
mulheres e a desigualdade de gênero (Extermínio) e até mesmo sobre amizade e
companheirismo (Todo Mundo Quase Morto e Fido).
Na verdade, ao ir além do
"apetite" voraz dos populares 'zombies', essa turma de realizadores
conseguiu usá-los como uma espécie de espelho para os nossos piores medos e
falhas, expondo, em meio ao caos e a desesperança, o pior do ser-humano.
Inserido neste contexto, fica claro que o intenso A Noite Devorou o Mundo não é
somente mais um filme de horror recheado de zumbis. Sob a inventiva batuta do
jovem Dominique Rocher, o longa traz frescor ao gênero ao encontrar no
apocalipse zumbi a oportunidade de tecer um perspicaz comentário sobre a
solidão e o impacto da separação na rotina de um apático homem. Embora, a
rigor, a película em nenhum momento tente "reinventar a roda", é legal
ver a ambição do diretor francês em tirar do papel uma produção mais
contemplativa e intimista. O que, indiscutivelmente, deve frustrar àqueles que
esperam uma obra mais descompromissada e\ou frenética.
Confiando no talento do promissor
Anders Danielsen Lie (do impactante 22 de Julho), que, sozinho em cena na maior
parte da película, captura o misto de desconforto, raiva e crescente loucura de
um sobrevivente "abandonado", Rocher é astuto ao, num primeiro
momento, flertar com o senso de nervosismo das principais produções do
segmento. Ao longo do imersivo primeiro ato, conhecemos não só o introspectivo
Sam, como também a sua reação ao descobrir que o "mundo" foi varrido
por uma epidemia zumbi. Sem a intenção de perder tempo com explicações baratas,
o diretor é cuidadoso ao trazer tanto o subtexto sentimental para o centro da
trama, quanto ao capturar o despreparo do protagonista diante daquela situação,
encontrando na sua frieza inerte o paralelo perfeito para a construção das suas
espertas metáforas. Isolado no aparamento da sua ex-namorada, o músico Sam
pouco a pouco começa a tentar retomar o controle da situação, mas esbarra na
sua acomodação, na sua fragilidade e principalmente na sua crescente
instabilidade.
Se retirássemos os zumbis da
equação, estaríamos diante de um drama sobre um homem depressivo, abatido,
estagnado na aparente segurança do seu "mundinho", incapaz de se
expor aos "perigos" da vida externa, de uma eventual nova relação.
Sem querer revelar muito, é interessante ver a sagacidade do argumento em
ampliar o escopo da trama, usando os demais "moradores" do prédio
como o estopim para um estudo de personagem mais completo. No momento em que a
poeira baixa, o realizador se arrisca ao tornar tudo o mais pessoal possível,
ao deixar a jornada de sobrevivência em segundo plano e se concentrar na
desconstrução emocional de Sam. Sem dizer uma só palavra, Rocher é sutil ao
traduzir visualmente o estado de espírito do personagem, os seus anseios, os
seus remorsos e a sua deterioração. Reparem como, por exemplo, os outros
elementos humanos presentes no script dialogam diretamente com os problemas dos
personagens. Seja o casal de idosos que preferiu a morte a uma vida só, seja a
ameaçadora família de zumbis, seja o "homem" solitário preso no
elevador. Todos têm um algo a mais a dizer sobre os medos de Sam, sobre os seus
traumas, as suas expectativas e os seus erros.
Na transição para o último ato,
inclusive, a aparição de um novo elemento na trama ajuda a tornar os símbolos
ainda mais claros, uma solução que, embora soe inicialmente conveniente e
condescendente, passa a fazer todo o sentido no momento em que nos deparamos
com uma inspirada reviravolta. Por mais que ao longo do segundo ato a obra
perca um pouco de ritmo, é bom frisar que Rocher nunca deixa o seu filme se
tornar desinteressante, principalmente pela sua capacidade em tornar o processo
de exploração do edifício o mais tenso e ao mesmo tempo revelador possível. Em
alguns momentos, inclusive, o longa é sagaz ao explorar a arte de Sam, a sua
musicalidade, realçando através das suas lúdicas e solitárias performances o
seu conflitante estado de espírito. Não se engane, porém, com o aspecto
reflexivo da obra. Embora não faça uso do elemento 'gore', Dominique Rocher se
esforça para fazer jus ao legado do subgênero zumbi, entregando sequências de
ação genuinamente nervosas, criaturas com uma maquiagem expressiva e uma
movimentação angustiante, além de uma atmosfera pós-apocalíptica realmente
crível.
Num 'mise en scene' esperto e
gradativo, o realizador é habilidoso ao explorar não só o cenário em que o
protagonista estava inserido, como também o devastado ambiente que o cercava,
investindo ora em planos íntimos e sequenciais, ora em planos engenhosos e
panorâmicos. Um predicado potencializado pela ousadia de Rocher em rodar a
maior parte da película na luz do dia, um desafio sempre muito grande dentro do
cinema de horror. Na transição para o último ato, inclusive, o realizador pisa
no acelerador ao criar pelo menos três cenas naturalmente aflitivas, com
destaque máximo para a sequência da fuga no esfumaçado apartamento, exibindo
pulso narrativo e muitos recursos técnicos. Na hora de colocar a sua obra num
patamar superior, entretanto, Rocher flerta com o pretensiosimo ao entregar um
desfecho coerente, mas um tanto quanto frustrante. De uma hora para outra Sam
passa a tomar decisões estúpidas, daquelas que parecem criadas para permitir
que alguns dos momentos citados acima pudessem existir. Por mais que a mensagem
final seja clara, concluído a jornada de amadurecimento do personagem
pós-divórcio, o arremate parece menos inteligente do que acha ser, nos deixando
em dúvidas quanto a verdade defendida pelo filme. Nada que, diga-se de passagem,
estrague a experiência proposta por A Noite Devorou o Mundo, um 'zombie movie'
denso e instigante que esbanja criatividade ao associar a crise emocional de um
homem "recém-divorciado" ao apocalipse zumbi. Por essa eu não
esperava.
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