quarta-feira, 7 de novembro de 2018

A Noite Devorou o Mundo

O apocalipse sentimental

O que eu mais gosto nos filmes de zumbi é a capacidade deste fértil subgênero em usar o horror para discutir questões bem mais densas e profundas. Desde que o saudoso George A. Romero reinventou o segmento com a pequena pérola A Noite dos Mortos Vivos (1968),  leia mais aqui, virou rotina ver alguns criativos realizadores usarem os erráticos mortos-vivos dentro de um contexto multitemático, refletindo sobre questões sociais, culturais e até mesmo pessoais em obras carregada de simbolismos. Eu já vi, por exemplo, filmes de zumbi sobre a paranoia da Guerra Fria e a segregação racial (A Noite dos Mortos Vivos), sobre o consumismo desenfreado e a vil natureza humana (O Despertar dos Mortos), sobre os perigos das desumanas experiências científicas e da opressão (O Dia dos Mortos), sobre a desigualdade e o duelo de classes (A Terra dos Mortos, Invasão Zumbi), sobre a violência contra as mulheres e a desigualdade de gênero (Extermínio) e até mesmo sobre amizade e companheirismo (Todo Mundo Quase Morto e Fido). 

Na verdade, ao ir além do "apetite" voraz dos populares 'zombies', essa turma de realizadores conseguiu usá-los como uma espécie de espelho para os nossos piores medos e falhas, expondo, em meio ao caos e a desesperança, o pior do ser-humano. Inserido neste contexto, fica claro que o intenso A Noite Devorou o Mundo não é somente mais um filme de horror recheado de zumbis. Sob a inventiva batuta do jovem Dominique Rocher, o longa traz frescor ao gênero ao encontrar no apocalipse zumbi a oportunidade de tecer um perspicaz comentário sobre a solidão e o impacto da separação na rotina de um apático homem. Embora, a rigor, a película em nenhum momento tente "reinventar a roda", é legal ver a ambição do diretor francês em tirar do papel uma produção mais contemplativa e intimista. O que, indiscutivelmente, deve frustrar àqueles que esperam uma obra mais descompromissada e\ou frenética. 



Confiando no talento do promissor Anders Danielsen Lie (do impactante 22 de Julho), que, sozinho em cena na maior parte da película, captura o misto de desconforto, raiva e crescente loucura de um sobrevivente "abandonado", Rocher é astuto ao, num primeiro momento, flertar com o senso de nervosismo das principais produções do segmento. Ao longo do imersivo primeiro ato, conhecemos não só o introspectivo Sam, como também a sua reação ao descobrir que o "mundo" foi varrido por uma epidemia zumbi. Sem a intenção de perder tempo com explicações baratas, o diretor é cuidadoso ao trazer tanto o subtexto sentimental para o centro da trama, quanto ao capturar o despreparo do protagonista diante daquela situação, encontrando na sua frieza inerte o paralelo perfeito para a construção das suas espertas metáforas. Isolado no aparamento da sua ex-namorada, o músico Sam pouco a pouco começa a tentar retomar o controle da situação, mas esbarra na sua acomodação, na sua fragilidade e principalmente na sua crescente instabilidade.


Se retirássemos os zumbis da equação, estaríamos diante de um drama sobre um homem depressivo, abatido, estagnado na aparente segurança do seu "mundinho", incapaz de se expor aos "perigos" da vida externa, de uma eventual nova relação. Sem querer revelar muito, é interessante ver a sagacidade do argumento em ampliar o escopo da trama, usando os demais "moradores" do prédio como o estopim para um estudo de personagem mais completo. No momento em que a poeira baixa, o realizador se arrisca ao tornar tudo o mais pessoal possível, ao deixar a jornada de sobrevivência em segundo plano e se concentrar na desconstrução emocional de Sam. Sem dizer uma só palavra, Rocher é sutil ao traduzir visualmente o estado de espírito do personagem, os seus anseios, os seus remorsos e a sua deterioração. Reparem como, por exemplo, os outros elementos humanos presentes no script dialogam diretamente com os problemas dos personagens. Seja o casal de idosos que preferiu a morte a uma vida só, seja a ameaçadora família de zumbis, seja o "homem" solitário preso no elevador. Todos têm um algo a mais a dizer sobre os medos de Sam, sobre os seus traumas, as suas expectativas e os seus erros.


Na transição para o último ato, inclusive, a aparição de um novo elemento na trama ajuda a tornar os símbolos ainda mais claros, uma solução que, embora soe inicialmente conveniente e condescendente, passa a fazer todo o sentido no momento em que nos deparamos com uma inspirada reviravolta. Por mais que ao longo do segundo ato a obra perca um pouco de ritmo, é bom frisar que Rocher nunca deixa o seu filme se tornar desinteressante, principalmente pela sua capacidade em tornar o processo de exploração do edifício o mais tenso e ao mesmo tempo revelador possível. Em alguns momentos, inclusive, o longa é sagaz ao explorar a arte de Sam, a sua musicalidade, realçando através das suas lúdicas e solitárias performances o seu conflitante estado de espírito. Não se engane, porém, com o aspecto reflexivo da obra. Embora não faça uso do elemento 'gore', Dominique Rocher se esforça para fazer jus ao legado do subgênero zumbi, entregando sequências de ação genuinamente nervosas, criaturas com uma maquiagem expressiva e uma movimentação angustiante, além de uma atmosfera pós-apocalíptica realmente crível.


Num 'mise en scene' esperto e gradativo, o realizador é habilidoso ao explorar não só o cenário em que o protagonista estava inserido, como também o devastado ambiente que o cercava, investindo ora em planos íntimos e sequenciais, ora em planos engenhosos e panorâmicos. Um predicado potencializado pela ousadia de Rocher em rodar a maior parte da película na luz do dia, um desafio sempre muito grande dentro do cinema de horror. Na transição para o último ato, inclusive, o realizador pisa no acelerador ao criar pelo menos três cenas naturalmente aflitivas, com destaque máximo para a sequência da fuga no esfumaçado apartamento, exibindo pulso narrativo e muitos recursos técnicos. Na hora de colocar a sua obra num patamar superior, entretanto, Rocher flerta com o pretensiosimo ao entregar um desfecho coerente, mas um tanto quanto frustrante. De uma hora para outra Sam passa a tomar decisões estúpidas, daquelas que parecem criadas para permitir que alguns dos momentos citados acima pudessem existir. Por mais que a mensagem final seja clara, concluído a jornada de amadurecimento do personagem pós-divórcio, o arremate parece menos inteligente do que acha ser, nos deixando em dúvidas quanto a verdade defendida pelo filme. Nada que, diga-se de passagem, estrague a experiência proposta por A Noite Devorou o Mundo, um 'zombie movie' denso e instigante que esbanja criatividade ao associar a crise emocional de um homem "recém-divorciado" ao apocalipse zumbi. Por essa eu não esperava. 

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