Preciso confessar algo. O ‘hype’
me “cegou” para alguns dos problemas do primeiro Deadpool (2014). Num momento
em que os filmes de super-heróis estavam começando a ficar caretas demais, foi
difícil segurar a empolgação com a insana adaptação idealizada por Ryan
Reynolds, uma obra precursora que ajudou a mostrar que um pouco de ousadia e
agressividade não fariam mal ao gênero. E talvez pelo ineditismo o filme
merecesse as quatro estrelas que eu dei na minha crítica na época do
lançamento. Numa revisão futura, entretanto, as falhas ficaram mais evidentes.
Enquanto comédia, na verdade, o original seguiu funcionando muito bem,
principalmente por debochar do ‘status quo’ do segmento com inspiração e
incorreção. Já como filme de super-herói, Deadpool ficou ligeiramente aquém das
expectativas. Se deixarmos as espertas firulas narrativas de lado, o que sobra
é uma aventura simples, com um vilão genérico, um arco vingativo requentado e (de
fato) inventivas sequências de ação. Uma combinação (ainda assim) eficaz que fez
do longa um dos mais criativos representantes do gênero na última década. Dito
isso, é legal ver como o extravagante Deadpool 2 repara as pequenas falhas do
seu antecessor com energia, indo além da comicidade do anti-heroico personagem
título ao investir numa premissa mais engenhosa, em coadjuvantes de peso e num
perspicaz\disfuncional arco familiar. Embora o fator originalidade se perca na
continuação, a película agora dirigida por David Leitch (ou um dos caras que
matou o cachorro do John Wick) consegue transitar entre a ação e a comédia com
maior plasticidade, testando (mais uma vez) as expectativas do público ao
entregar uma obra visualmente à altura do que vem sendo feito no gênero na
atualidade. O resultado é uma combinação mais explosiva que, mesmo derrapando
aqui ou ali, mostra astúcia ao rir de alguns velhos clichês do gênero com o
padrão Deadpool de ironia.
Confesso, porém, que cheguei a me
preocupar com o rumo que o longa tomaria durante o irregular primeiro ato. E
não propriamente por causa do Deadpool. Assim como no filme original, ele segue
uma figura engraçadíssima, enfileirando piadas e gráficas sequências de ação
com enorme fluidez. O problema parecia ser o rumo que o roteiro assinado por
Rhett Reese, Paul Wernick e pelo próprio Ryan Reynolds escolheria tomar. Consciente
da fragilidade do arco central no antecessor, o trio decidiu requentar alguns
velhos clichês dos quadrinhos numa história de vingança\redenção mais sólida,
tirando o inconsequente mercenário da sua “zona de conforto” ao mostrar que ele
não era tão invulnerável assim. Ainda que, assim como no primeiro longa, a
introdução dos conflitos do protagonista tenha sido feita com muito dinamismo, Ação
e Comédia se confundem em cena com energia, por um momento eu cheguei a temer
que o argumento fosse se levar a sério desta vez. O que seria,
indiscutivelmente, um equívoco fatal. Até porque, eu não gastei o meu suado
dinheiro para ver Deadpool, logo ele, reclamando das suas falhas e decisões. A
dobradinha DC\Warner com Batman, Superman e Mulher Maravilha tem tentado fazer
isso há tempos e o resultado não deu muito certo. Menos mal que, felizmente,
logo o iminente problema se transforma no grande trunfo desta sequência. Isso
porque, David Leitch é astuto ao subverter requentadas fórmulas a seu favor,
usando alguns (inocentes) clichês do segmento apenas como um agente catalisador
da história. Como o elo entre os seus sacanas personagens. Na trama, após
sofrer um atentado, Deadpool recebe abrigo do gigante cromado Colossus e a
chance de se tornar um X-Men. Mesmo diante de tamanho voto de confiança, o
desbocado mercenário não demora muito para decepcionar o seu “amigo”, o que o
leva a uma prisão de segurança máxima para mutantes. Nesse meio tempo, Deadpool
conhece o raivoso Russel (Julian Dennison), um jovem criado num orfanato para
mutantes que decide se vingar do administrador do local. Vendo no jovem a
chance de se redimir, o anti-herói decide permanecer ao seu lado, sem sequer
desconfiar que um caçador vindo do futuro, o mutante Cable (Josh Brolin),
queria ver o garoto morto.
Indo de encontro ao longa
anterior, Deadpool 2 é bem melhor resolvido quanto a utilização do seu ‘plot’. Curiosamente,
entretanto, David Leitch esbanja perspicácia ao não se prender exageradamente ao
arco central, utilizando o ‘background’ dos protagonistas apenas como uma
descompromissada “desculpa” para reuni-los numa nova e violenta jornada. Sim,
por mais que Deadpool, Cable e Russel sejam personagens com motivações bem mais
sólidas\dramáticas que no original, e que elas sejam decisivas para o bom
andamento da trama, o argumento entende, a meu ver acertadamente, que a força
(e a originalidade) do filme estava basicamente na dinâmica entre os mutantes. Neste
sentido, como não gargalhar, por exemplo, com a impagável relação homoafetiva
entre o mercenário e Colossus, a conflituosa interação entre Deadpool e (a sua
escada cômica) Cable e a instável amizade com Russel. Confiante na qualidade do
texto e no poder de improviso do entrosado elenco, Leitch não se sente obrigado
em construir uma continuação maior e mais impactante, mas em valorizar aquilo
que melhor funcionou no longa anterior. O que não quer dizer que Deadpool 2 não
tenha uma história funcional. Pelo contrário. Na comparação com o primeiro, a
continuação entrega uma aventura “familiar” (ok, nem tão familiar assim) bem
melhor desenvolvida, principalmente pela capacidade dos roteiristas em
subverter alguns clichês típicos das sequências, entre eles a necessidade de
ter um antagonista mais imponente, uma trama mais sóbria e a construção de um
supergrupo. Tudo isso acontece aqui, mas não da forma como nós esperávamos. Se
num primeiro momento o longa parecia apontar para um caminho seguro e
extremamente previsível, aos poucos Leitch é sagaz ao quebrar as nossas
expectativas, fugindo do lugar comum ao reciclar fórmulas com inventividade e
uma destemida presença de espírito. O que fica bem claro, por exemplo, quando o
assunto é a improvável utilização da X-Force, ou a sempre arriscada ausência de
um vilão clássico dentro da história. A envolvente rixa entre Deadpool, Russel
e Cable, por si só, é bem mais interessante do que qualquer arqui-inimigo
genérico, como o esquecível Ajax, ou qualquer ameaça superpoderosa. Neste
sentido, aliás, é nítido que Deadpool 2 busca referência no revigorante Guardiões
da Galáxia Vol. 2 (2016), investindo numa descomplicada e cada vez mais rara
estrutura episódica.
Não adianta. Por melhor (e mais
bad-ass) que seja o Cable do “trincado” Josh Brolin. Por mais engraçado que
seja o revoltado Russel do promissor Julian Dennison. A alma de Deadpool 2
está, mais uma vez, na sacana comicidade do anti-herói e na radiante performance
de Ryan Reynolds. Indo além das constantes quebras de quarta parede e do
impagável deboche metalinguístico, David Leitch surpreende ao entregar gags
ainda mais insanas, se deliciando com o humor gráfico e de referência ao tirar
do papel situações surtadas e genuinamente engraçadas. Como não citar, por
exemplo, a sequência “das perninhas”, ou a desbocada relação “não
correspondida” entre Deadpool e Russel. Óbvio que nem todas as tiradas
funcionam, mas, diante da insana repetição de situações cômicas, é indiscutível
Reynolds (e o versátil elenco de apoio) tem um índice de aproveitamento digno
de nota. Não se engane, porém, com o constante viés cômico. Oriundo de uma das
melhores franquias de ação da atualidade, Leitch não decepciona no que diz respeito
aos embates entre os heróis. Com uma assinatura bem mais autoral, o realizador
nos brinda com pelo menos três memoráveis sequências de ação, esbanjando
dinamismo ao valorizar os confrontos físicos em detrimento das grandes
batalhas. Vide a engenhosa cena do caminhão, um embate fluído e impactante
potencializado pelas criativas coreografias e pela entrega da dupla
Reynolds\Brolin. Não posso deixar de citar, aliás, a incrível presença da atriz
Zazie Beets, que, na pele da sortuda Domino, protagoniza algumas das melhores e
mais empolgantes cenas da película. Quando o assunto é o CGI, porém, a
continuação segue aquém, ficando abaixo dos demais títulos do gênero tanto na
composição dos personagens digitais, quanto na concepção dos repetitivos
superpoderes.
No embalo da fantástica trilha
sonora pop, as referências aos musicais, em especial, são estupidamente
engraçadas, Deadpool 2 se revela uma continuação à altura da incorreção do
original. O que, por si só, é um baita elogio. Embora tenha um primeiro ato
relutante e perca (obviamente) no quesito originalidade, o longa compensa ao
valorizar a zoeira entre os personagens, usando a sua competente trama a
serviço de uma inusitada trupe de heróis numa transloucada sucessão de
inteligentes subversões narrativas. Um improvável filme “family friendly” para
adultos.
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