Frequentemente associado a face
mais opulenta de Hollywood, o gênero musical tem cada vez ganhado mais força
dentro do criativo cinema ‘indie’. Indo de encontro aos gigantescos Moulin
Rouge (2001), Os Miseráveis (2012) e o recente O Rei do Show (2017), alguns
realizadores perceberam que com originalidade e pés no chão era possível
aproximar o segmento do “mundo real”. Um dos primeiros a conseguir destaque foi
o talentoso John Carney (Sing Street, Mesmo se Nada der Certo) que, com um
orçamento minúsculo e muita paixão, entregou o revigorante Apenas uma Vez
(2007). Uma daquelas pequenas e realísticas pérolas que ora e vez alcançam o ‘mainstream’.
Alguns anos depois foi a vez de Damien Chazelle tirar do papel o explosivo
Whiplash: Em Busca da Perfeição (2014), um relato excruciante sobre o impacto
da ambição na rotina de um jovem baterista de jazz. Foi com o magnífico ‘hit’
La La Land (2017), porém, que o gênero se modernizou de vez. Embora com um
orçamento bem maior do que os dois títulos citados acima, o mesmo Chazelle
conseguiu tirar do papel um romance ao mesmo tempo mágico e realístico, usando
a ensolarada Los Angeles como o pano de fundo de uma história ora leve e refrescante,
ora dura e desconcertante. Inspirado pela honestidade de Apenas uma Vez, pela
energia de Whiplash e pelo realismo pop de La La Land, Been So Long se revela
um musical pequeno, mas brioso, uma crônica agradável sobre uma mãe solteira
obrigada a se “desarmar” em busca do amor. Inspirado no musical homônimo de Ché
Walker, o longa dirigido por Tinge Krishnan é astuto ao injetar cores na
acinzentada Londres, transitando por temas genuinamente urbanos sem sacrificar
o senso de entretenimento deste popular segmento. Uma obra que, mesmo diante de
inúmeros predicados estéticos e narrativos, traz como o grande diferencial o
seu diversificado elenco, injetando uma bem-vinda dose de negritude (étnica e
musical) num geralmente embranquecido gênero.
É bom frisar, entretanto, que em
nenhum momento No Ritmo da Sedução (que título brasileiro terrível) tenta
tornar este fato o chamariz da obra. Por mais que, a rigor, o musical original
tenha óbvias raízes negras, é legal ver o esmero de Tinge Krishnan em não
tipificar os seus personagens. Os protagonistas são negros, mas poderiam ser
brancos, asiáticos, latinos. Estamos diante de tipos comuns, com problemas
reais, com conflitos densos, com obstáculos daqueles que nos obrigam a
endurecer e enxergar a vida de uma forma – digamos – bem menos musical.
Inserida neste contexto está Simone (Michaela Coel), uma mãe solteira que, para
dar os cuidados necessários à sua filha deficiente física, precisou abrir mão
de muita coisa, incluindo a sua vida social. Indo da casa para o trabalho e
vice-versa, ela se contentou em abraçar uma rotina pouco emocionante, para a
irritação da sua descolada melhor amiga Yvone (Ronke Adekoluejo). Cansada de
conviver com a Simone caseira e pouco vaidosa, ela decide obrigar a sua
ex-parceira de noite a sair para beber. O que as duas não esperavam,
entretanto, é que elas fossem cruzar o caminho do simpático Raymond (Arinzé
Kene), um ex-presidiário em condicional que logo se sente atraído por Simone.
Empurrada pela amiga, ela decide dar uma chance para este persuasivo desconhecido,
sem sequer desconfiar que este romance em potencial poderia reabrir algumas
feridas tão recentemente cicatrizadas.
Como fica bem claro no ‘plot’
acima, Been So Long passa longe da temática dos principais filmes do gênero. E
isso é um predicado verdadeiramente revigorante. Ao invés de se concentrar na “musicalidade”
do amor romântico, Tinge Krishnan é cuidadosa ao ampliar o escopo da trama, ao,
a partir da rigidez acuada de Simone, falar sobre o amor de mãe, o amor
fraterno entre amigas e até mesmo o amor entre estranhos. Transitando entre a doçura
e o realismo, a realizadora é habilidosa ao investigar os conflitos de uma
mulher que desaprendeu a amar, embrutecida pelas responsabilidades impostas
pela vida materna\adulta. Fazendo da cosmopolita Londres o palco perfeito para
esta história de diversidade e dilemas urbanos, Krishnan mostra propriedade ao
tornar Simone o centro das atenções, ao tratar os seus anseios\medos mais
íntimos com o peso que o tema exigia. Afinal de contas estamos diante de uma
personagem que simboliza a resiliência de muitas mulheres, de pessoas que,
abandonadas a sua própria sorte, se viram obrigadas a se tornar mãe, pai,
provedora, protetora. Um fardo indiscutivelmente pesado que, graças a seriedade
do argumento em investigá-lo, só amplifica o potencial de identificação da
protagonista. Desde a fantástica primeira sequência, um número musical
ensolarado em que Simone, ao lado da sua filha Mandy, opta por não ceder ao
clima de euforia da cena, a diretora é enfática ao mostrar que estamos diante
de uma figura reprimida, uma mãe zelosa que, cansada de sofrer, decidiu dedicar
todo o seu amor a sua pequena herdeira. Sem um pingo de condescendência, é
legal ver a sagacidade do roteiro em pouco a pouco inverter o ‘status quo’ desta
relação. Não demora muito para percebemos que Mandy se tornou uma espécie de
muleta para a sua mãe, a desculpa perfeita para ela se fechar para o mundo
externo. Com dinamismo e comedimento, Krishnan é sucinta ao estabelecer os porquês
desta reação, reforçando o arco íntimo da protagonista ao não só dar uma voz
mais ativa para a precoce criança, mas também ao “apimentar” as coisas com o ressurgimento
da ausente figura paterna vivida por Joe Dempsie. Muito mais do que um simples
agente complicador, o personagem adiciona nuances interessantes a história, principalmente
por expor de vez a face mais frágil e errática de Simone.
Impecável ao desvendar o estado
emocional da complexa protagonista, Been so Long é igualmente zeloso ao
estabelecer o realístico arco romântico. Embora, narrativamente, o longa se renda
à algumas soluções indiscutivelmente formulaicas e\ou convenientes, Tinge
Krishnan compensa ao valorizar a química natural entre Simone e Raymond, se
encantando pela face mais comum dos dois personagens enquanto desenvolve esta
instável história de amor. Assim como a mãe solteira, o ex-presidiário também
tem os seus fantasmas para enfrentar. Como se não bastassem os seus próprios
problemas, a maioria deles envolvendo o seu processo de ressocialização, ele se
vê obrigado a enfrentar a “barreira” em torno de Simone, ao convencê-la que já
estava na hora dela tentar embarcar em algo novo. No embalo dos envolventes ‘hits’
de R&B e Soul, o diretor é sutil ao capturar tanto o aspecto mais sedutor
desta relação, quanto o mais conflitante, reforçando o elo entre os dois nos adoráveis
números musicais. Por mais que, verdade seja dita, a película careça de um ‘hit’
chiclete\impactante, a dupla de compositores Christopher Nicolas Bangs e Arthur
Darvill esbanja musicalidade ao investir em canções diversificadas, capturando
o estado de espírito dos personagens em performances ora leves e empolgantes,
ora singelas e dramáticas. Sem querer revelar muito, a sequência da “fossa” no
bar, em especial, está entre os pontos altos da obra, principalmente pela
capacidade de Krishnan em unir os principais arcos numa só apresentação. Num
todo, aliás, por mais que a carismática Ronke Adekoluejo deixe a desejar
vocalmente em alguns dos números, Michaela Coel e Arinzé Kene capturam a
sinceridade das letras com intensidade, alcance e extrema afinação, realçando a
verdade dos seus respectivos personagens de maneira genuinamente sentimental.
O coração de Been So Long, na
verdade, reside justamente na estupenda performance de Michaela Coel.
Consciente da sua responsabilidade em viver o drama de muitas outras mulheres
ao redor dos grandes centros urbanos, a expressiva atriz abraça com entusiasmo
a oportunidade de interpretar um tipo tão complexo e repleto de camadas,
capturando o misto de independência, tenacidade e vulnerabilidade da sua Simone
com enorme propriedade. Por trás de uma casca rígida e imponente, existe uma mãe
com sentimentos mal resolvidos, carente de ajuda e afeto, uma mulher altruísta
capaz de se entregar ao máximo àqueles que a amam. Uma característica pura que
Coel consegue imprimir em cada uma das suas relações, em especial no cativante
arco materno e na sua honesta relação com a espevitada Ivone. Ponto para a
radiante performance de Ronke Adekoluejo, engraçadíssima na pele da única
pessoa capaz de tirar Simone da sua zona de conforto. Nem só de flores (e competentes
canções) vive No Ritmo da Sedução. Quando se desconecta da figura da
protagonista, o longa erra bem mais do que acerta. Na tentativa de ampliar o
estofo da trama, o roteiro investe em personagens secundários interessantes,
mas mal aproveitados, entre eles o dono de bar solitário vivido por Luke Norris
e o transloucado morador de rua interpretado pelo talentoso George McKay. Por
mais que os dois tenham os seus momentos, principalmente nos números musicais,
é nítido que eles estão basicamente a serviço do arco central e nunca ganham a
devida atenção dentro da história. Além disso, eu fiquei com a impressão que o
filme termina numa ligeira curva descendente, o que fica bem claro na “xôxa”
cena final, um dos poucos momentos em que a paixão não está impressa em tela.
Um deslize que, se tratando de um musical, soa bem mais perceptível do que nos
demais gêneros.
Nada que, de maneira alguma,
reduza os méritos de Been so Long: No Ritmo da Sedução, uma produção original
Netflix estilosa, plural e contemporânea que é enfática ao defender que
qualquer um poder ter a sua vida transformada num musical. Seja uma pianista
estrangeira, seja um talentoso baterista, seja uma aspirante à atriz, seja uma
resiliente mãe solteira. Apesar de tocar em temas muito comuns no imaginário
urbano, a diretora Tinge Krishnan o faz com feminilidade e requinte estético, o
que fica bem claro na colorida fotografia neonizada de Catherine Derry e nas
espertas soluções visuais, entregando assim um musical com uma voz própria,
independente e inegavelmente humana.
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