sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Vamos falar sobre superação com O Que te Faz mais Forte e Uma Razão para Viver


Não é de hoje que o mundo do cinema adora uma boa história de superação. Se envolver limitações físicas, então, a chance de ganhar a tela grande é cristalina. Títulos como Meu Pé Esquerdo (1989), Nascido em 4 de Julho (1989), Tempo de Despertar (1990), Homens de Honra (2000), O Escafandro e a Borboleta (2008), Intocáveis (2011), As Sessões (2012), A Teoria de Tudo (2014) não me deixam mentir. Todos indiscutíveis sucessos de público e\ou crítica. Curiosamente, entretanto, em 2018 dois valorosos representantes dos gêneros praticamente passaram despercebidos pelos cinemas ao redor do mundo. Contrariando as expectativas, O Que te Faz mais Forte e Uma Razão para Viver naufragaram nas bilheterias e, mesmo recepcionados de maneira amistosa pela crítica, foram completamente esnobados na temporada de premiações. Um desdém, a meu ver, difícil de entender, principalmente pelo nível de qualidade das duas obras. 

- O Que te Faz mais Forte (2018)


E indiscutível que Jake Gyllenhaal está entre os nomes mais talentosos da sua geração. E também entre os mais subestimados. Avesso aos holofotes do blockbuster, o eclético ator norte-americano tem enfileirados trabalhos de ótimo nível, investindo em tipos desafiadores e performances marcantes. Foi assim, por exemplo, no intenso Os Suspeitos (2013), no visceral Nocaute (2015), no exótico Okja (2017) e óbvio no insano O Abutre (2015). Neste último, aliás, Gyllenhaal chegou a estar cotado entre os favoritos ao Oscar de Melhor Ator, mas, numa virada inesperada, ele sequer foi indicado ao prêmio. Pouco tempo depois, quando o mesmo Jake Gyllenhaal foi anunciado como o protagonista do dramático O Que te Faz mais Forte, tudo parecia indicar que estávamos diante de um sucesso. Uma sensação reforçada pelo excelente trailer. Como ficou claro no parágrafo acima, Hollywood (e o público em geral) costuma reconhecer a entrega de um realizador, principalmente quando o projeto exige da sua fisicalidade. O que se viu, porém, foi uma recepção morna para um filme (e especialmente uma atuação) muito acima da média. Uma não, duas, já que a promissora Tatiana Maslany segue o nível do seu parceiro de cena numa performance genuinamente emotiva. Embora tocasse num tema tão vivo no coração da sociedade americana, o covarde atentado durante a Maratona de Boston de 2013, o longa dirigido pelo eclético David Gordon Green passou em branco nas bilheterias e no radar das grandes premiações, o que se revelou um pecado, especialmente, pela abordagem realista defendida pela obra.


Sem a intenção de criar um novo ídolo, O Que te Faz mais Forte é contundente ao revelar o doloroso processo de “ressocialização” do pacato Jeff Bauman, um pacato atendente que, por estar na hora errada e no lugar errado, perdeu as suas pernas na explosão de duas bombas caseiras. Ao contrário da maioria dos filmes do gênero, o foco de David Gordon Green não está na história de superação, nem tão pouco na construção de um ídolo urbano, mas no impacto deste atentado na rotina de uma disfuncional família norte-americana. Como de costume nos seus dramas ‘indie’s’, Green investe pesado no naturalismo. Os atores soam como pessoas comuns. A fotografia “lavada” remete a filmagem amadora. A câmera na mão parece nos colocar no olho do furacão, no meio do caos que se tornou a rotina de Bauman após o trágico evento. Por mais que o argumento se estenda demais em alguns momentos, os conflitos familiares do protagonista, por exemplo, se tornam repetitivos na segunda metade do longa, é interessante ver o esmero de Gordon em desconstruir a imagem do eventual herói. Bauman sofre como um ser-humano comum. Reage como alguém que realmente perdeu a sua autonomia. Indo além do doloroso processo de recuperação física, capturado com uma desconfortável verossimilhança pelas lentes de Green, o argumento é contundente ao se debruçar sobre os conflitos do protagonista. Ao traduzir a sua raiva, a sua desilusão, a sua agressividade e também a sua imaturidade. Esquálido em cena, Jake Gyllenhaal provoca um misto de sensações ao entregar uma performance complexa, realçando a instabilidade do sobrevivente em sequências ora explosivas, ora angustiantes. Um predicado, inclusive, valorizado pela maneira franca com que o longa se concentra na turbulenta relação entre Bauman e a sua ex-namorada, a dedicada Erin.


Muito mais do que a porta voz do arco romântico, a independente protagonista surge como a tábua de sustentação de Bauman. Sem um pingo de concessão, Davd Gordon Green expõe através dela as falhas de um homem perdido diante do “circo” criado em torno dele. Ao contrário da errática figura materna vivida pela talentosa Miranda Richardson, Erin é o verdadeiro agente catalisador da trama, a responsável por dizer as verdades escondidas no clichê heroico falsamente alimentado pela mídia. Numa performance contida e madura, Tatiana Maslany rouba a cena ao traduzir a delicada posição da sua personagem, uma mulher amorosa sufocada por um fardo cada vez mais pesado. Com a sua abordagem sempre intimista, Green é inteligente ao capturar tanto o crescente desconforto entre os dois, quanto os contrastes entre as performances de Gyllenhaal e Maslany, valorizando o melhor e o pior dos dois personagens em diálogos incisivos e acima de tudo realísticos. É necessário frisar, entretanto, que O Que te Faz mais Forte segue uma cartilha bem reconhecível dentro do gênero. No momento em que o filme parecia estritamente conectado com o drama humano de Bauman, o roteiro cede ao tentar aparar todas as arestas dentro do otimista clímax. Por mais que a relação do casal ganhe um desfecho condizente com os dois atos anteriores, Green patina ao tentar ampliar o escopo, ao traçar um contextualizado paralelo entre os dilemas do sobrevivente e de outras vítimas. Num primeiro momento, na delicada sequência em que conhecemos o homem responsável por prestar os primeiros socorros a Bauman, o diretor mostra propriedade ao refletir sobre as sequelas impostas pelas recentes incursões bélicas norte-americanas, Na transição para o clímax, porém, Green peca pelo excesso na tentativa de transforma-lo um símbolo de inspiração, tornando tudo exageradamente literal aos olhos do público. Nada que, verdade seja dita, reduza o impacto de O Que te Faz mais Forte, um drama comovente capaz de exaltar a resiliência humana sem esquecer de investigar os bastidores de uma dolorosa e conflitante história de superação.



- Uma Razão para Viver (2018)


Um filme desconectado do seu tempo, Uma Razão para Viver pinta um retrato encantadoramente clássico sobre a resiliência de um homem e da sua dedicada família. Com experiência de sobra na produção cinematográfica, vide o seu visionário trabalho no desenvolvimento da tecnológica de captura de movimentos, o talentoso Andy Serkis estreia na direção num drama de época revigorante, uma obra delicada e visualmente belíssima que opta por se concentrar no aspecto inspirador desta cativante história real. Uma alternativa, diga-se de passagem, justa, principalmente pelo esforço de Serkis em valorizar os laços familiares e em traduzir, sob um ensolarado viés otimista, a revigorante jornada Robin e Diana Cavendish. Produzido pelo filho do casal, Jonathan Cavendish, o longa estrelado pelos talentosos Andrew Garfield e Claire Foy é enfático ao deixar o sofrimento em segundo plano. Por mais que, num primeiro momento, Serkis seja categórico ao revelar a dor do inerte protagonista, paralisado do pescoço para baixo vítima de uma poliomielite, não demora muito para o longa mostrar as suas reais intenções. Ao contrário de títulos recentes, como o realístico O Escafandro e a Borboleta e o agridoce Os Intocáveis, o argumento assinado pelo experiente William Nicholson (Gladiador) prefere enxergar o copo meio cheio, se distanciando dos pequenos obstáculos ocasionados pela doença ao valorizar o espírito libertário de Robin. Ainda que o desconfortável som do respirador se revele extremamente audível, como se Serkis, numa solução narrativa perspicaz, estivesse nos lembrando constantemente da vulnerável posição do protagonista, o longa cativa ao realçar tanto a luta de Robin em busca da sua autonomia perdida, quanto a dedicação da independente Diana para sustentar os sonhos do seu querido marido. Ao longo dos dois primeiros atos, Serkis capricha ao estabelecer a iluminada nova rotina do deficiente, ao capturar a sua relação com o filho recém-nascido, a ajuda dos seus amigos mais íntimos e a sua crescente dedicação a causa dos deficientes. Tudo é muito belo e convidativo aos olhos do público, um predicado valorizado pela refinada direção de arte e pela (quase) onírica fotografia em diurnos tons dourados do veterano Robert Richardson (O Aviador, Bastardos Inglórios).


Além disso, é legal ver também as boas intenções da película na defesa da autonomia das vítimas da poliomielite. Um tema por si só bem-vindo, mas que aqui, por se tratar de uma obra ambientada entre os anos 1950 e 1980, é cuidadoso ao revelar o quão retrógrado era o tratamento oferecido naquela época. Sem querer revelar muito, toda a passagem em solo alemão é de um realismo desconcertante, o que ajuda a reforçar o impacto dos “feitos” dos Cavendish’s. No momento em que a trama deveria dar um passo além, entretanto, a impressão que fica é que Andy Serkis e o argumento se contenta em trafegar pela superfície. O que fica bem claro quando o assunto é a relação entre Robin e Diana. Indo de encontra a outro consagrado título do gênero, o igualmente fascinante A Teoria de Tudo, o roteiro peca ao não ir mais a fundo nos dilemas íntimos de marido e mulher. Em um ou dois momentos, Serkis até tenta dar voz aos seus anseios mais humanos, colocar as suas respectivas posições em perspectiva, mas tudo é rapidamente resolvido sem grandes consequências. Na verdade, por mais que os dois personagens tenham muito a oferecer individualmente, principalmente a prática Diana, a relação amorosa aqui soa muito mais fraternal, do que passional. Um deslize, num primeiro momento, amenizado pelas dedicadas atuações de Andrew Garfield e Claire Foy. Enquanto o versátil ator britânico, embora estático numa cama, esbanja expressividade e serenidade ao traduzir os anseios de um homem disposto a arriscar a sua vida em prol da independência, a promissora “revelação” da série The Crown mostra o seu reconhecido magnetismo ao interiorizar a força da sua Diana, ao exaltar o misto de fidelidade e modernidade de uma mulher que se viu obrigada a tornar o pai, a mãe e a provedora desta família. Duas grandes atuações.


No momento em que o longa parecia totalmente seduzido pelo viés reverencial da obra, entretanto, Andy Serkis mostra maturidade ao se aproximar a realidade dentro do último ato. Numa repentina transição de cena, o realizador decide mostrar aquilo que foi omitido durante a maior parte da película, refletindo com mais peso sobre a real situação de Robin ao evidenciar que a paralisia não era a única das sequelas impostas pela poliomielite. Numa perspectiva agora agridoce, Serkis é cuidadoso ao investigar as intenções do protagonista diante do agravamento da doença, refletindo sobre os seus “direitos” com sutileza e intimismo. Mais do que apertar os botões certos na hora certa, o realizador enche a tela de sentimento ao mostrar o impacto do tempo na rotina daqueles que o cercaram durante toda a sua jornada, fugindo das lágrimas fáceis ao defender a sobriedade britânica até os minutos finais de película. O resultado é um clímax denso e bonito, um desfecho à altura dos feitos de Robin e Diana. Além disso, Serkis mostra recursos técnicos ao traduzir a desconfortável posição do protagonista, fazendo um criativo da câmera subjetiva e dos planos fechados na tentativa de permitir que o espectador experimentasse um pouco da sua inércia. Em suma, com um elenco entrosado, um visual refinado e acolhedora reconstrução de época, Uma Razão para Viver segue a cartilha do gênero ao tirar do papel uma inspiradora história de superação. Na sua primeira grande experiência atrás das câmeras, Andy Serkis oferece ao espectador um drama com uma aura pura e otimista, uma abordagem que, com raríssimas exceções, parece ter caído em desuso em Hollywood. O que, de certa forma, ajuda a explicar o injustificável desdém com que a obra foi tratada.


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