Não é de hoje que o mundo do
cinema adora uma boa história de superação. Se envolver limitações físicas,
então, a chance de ganhar a tela grande é cristalina. Títulos como Meu Pé
Esquerdo (1989), Nascido em 4 de Julho (1989), Tempo de Despertar (1990), Homens
de Honra (2000), O Escafandro e a Borboleta (2008), Intocáveis (2011), As
Sessões (2012), A Teoria de Tudo (2014) não me deixam mentir. Todos
indiscutíveis sucessos de público e\ou crítica. Curiosamente, entretanto, em
2018 dois valorosos representantes dos gêneros praticamente passaram
despercebidos pelos cinemas ao redor do mundo. Contrariando as expectativas, O
Que te Faz mais Forte e Uma Razão para Viver naufragaram nas bilheterias e,
mesmo recepcionados de maneira amistosa pela crítica, foram completamente
esnobados na temporada de premiações. Um desdém, a meu ver, difícil de
entender, principalmente pelo nível de qualidade das duas obras.
E indiscutível que Jake
Gyllenhaal está entre os nomes mais talentosos da sua geração. E também entre
os mais subestimados. Avesso aos holofotes do blockbuster, o eclético ator
norte-americano tem enfileirados trabalhos de ótimo nível, investindo em tipos
desafiadores e performances marcantes. Foi assim, por exemplo, no intenso Os
Suspeitos (2013), no visceral Nocaute (2015), no exótico Okja (2017) e óbvio no
insano O Abutre (2015). Neste último, aliás, Gyllenhaal chegou a estar cotado
entre os favoritos ao Oscar de Melhor Ator, mas, numa virada inesperada, ele
sequer foi indicado ao prêmio. Pouco tempo depois, quando o mesmo Jake
Gyllenhaal foi anunciado como o protagonista do dramático O Que te Faz mais
Forte, tudo parecia indicar que estávamos diante de um sucesso. Uma sensação
reforçada pelo excelente trailer. Como ficou claro no parágrafo acima,
Hollywood (e o público em geral) costuma reconhecer a entrega de um realizador,
principalmente quando o projeto exige da sua fisicalidade. O que se viu, porém,
foi uma recepção morna para um filme (e especialmente uma atuação) muito acima
da média. Uma não, duas, já que a promissora Tatiana Maslany segue o nível do
seu parceiro de cena numa performance genuinamente emotiva. Embora tocasse num
tema tão vivo no coração da sociedade americana, o covarde atentado durante a
Maratona de Boston de 2013, o longa dirigido pelo eclético David Gordon Green
passou em branco nas bilheterias e no radar das grandes premiações, o que se
revelou um pecado, especialmente, pela abordagem realista defendida pela obra.
Sem a intenção de criar um novo
ídolo, O Que te Faz mais Forte é contundente ao revelar o doloroso processo de
“ressocialização” do pacato Jeff Bauman, um pacato atendente que, por estar na
hora errada e no lugar errado, perdeu as suas pernas na explosão de duas bombas
caseiras. Ao contrário da maioria dos filmes do gênero, o foco de David Gordon
Green não está na história de superação, nem tão pouco na construção de um
ídolo urbano, mas no impacto deste atentado na rotina de uma disfuncional
família norte-americana. Como de costume nos seus dramas ‘indie’s’, Green
investe pesado no naturalismo. Os atores soam como pessoas comuns. A fotografia
“lavada” remete a filmagem amadora. A câmera na mão parece nos colocar no olho
do furacão, no meio do caos que se tornou a rotina de Bauman após o trágico
evento. Por mais que o argumento se estenda demais em alguns momentos, os
conflitos familiares do protagonista, por exemplo, se tornam repetitivos na
segunda metade do longa, é interessante ver o esmero de Gordon em desconstruir
a imagem do eventual herói. Bauman sofre como um ser-humano comum. Reage como
alguém que realmente perdeu a sua autonomia. Indo além do doloroso processo de
recuperação física, capturado com uma desconfortável verossimilhança pelas
lentes de Green, o argumento é contundente ao se debruçar sobre os conflitos do
protagonista. Ao traduzir a sua raiva, a sua desilusão, a sua agressividade e
também a sua imaturidade. Esquálido em cena, Jake Gyllenhaal provoca um misto de
sensações ao entregar uma performance complexa, realçando a instabilidade do
sobrevivente em sequências ora explosivas, ora angustiantes. Um predicado,
inclusive, valorizado pela maneira franca com que o longa se concentra na
turbulenta relação entre Bauman e a sua ex-namorada, a dedicada Erin.
Muito mais do que a porta voz do
arco romântico, a independente protagonista surge como a tábua de sustentação
de Bauman. Sem um pingo de concessão, Davd Gordon Green expõe através dela as
falhas de um homem perdido diante do “circo” criado em torno dele. Ao contrário
da errática figura materna vivida pela talentosa Miranda Richardson, Erin é o
verdadeiro agente catalisador da trama, a responsável por dizer as verdades
escondidas no clichê heroico falsamente alimentado pela mídia. Numa performance
contida e madura, Tatiana Maslany rouba a cena ao traduzir a delicada posição
da sua personagem, uma mulher amorosa sufocada por um fardo cada vez mais
pesado. Com a sua abordagem sempre intimista, Green é inteligente ao capturar tanto
o crescente desconforto entre os dois, quanto os contrastes entre as
performances de Gyllenhaal e Maslany, valorizando o melhor e o pior dos dois
personagens em diálogos incisivos e acima de tudo realísticos. É necessário
frisar, entretanto, que O Que te Faz mais Forte segue uma cartilha bem
reconhecível dentro do gênero. No momento em que o filme parecia estritamente
conectado com o drama humano de Bauman, o roteiro cede ao tentar aparar todas
as arestas dentro do otimista clímax. Por mais que a relação do casal ganhe um
desfecho condizente com os dois atos anteriores, Green patina ao tentar ampliar
o escopo, ao traçar um contextualizado paralelo entre os dilemas do
sobrevivente e de outras vítimas. Num primeiro momento, na delicada sequência
em que conhecemos o homem responsável por prestar os primeiros socorros a
Bauman, o diretor mostra propriedade ao refletir sobre as sequelas impostas
pelas recentes incursões bélicas norte-americanas, Na transição para o clímax,
porém, Green peca pelo excesso na tentativa de transforma-lo um símbolo de
inspiração, tornando tudo exageradamente literal aos olhos do público. Nada
que, verdade seja dita, reduza o impacto de O Que te Faz mais Forte, um drama
comovente capaz de exaltar a resiliência humana sem esquecer de investigar os
bastidores de uma dolorosa e conflitante história de superação.
- Uma Razão para Viver (2018)
Um filme desconectado do seu
tempo, Uma Razão para Viver pinta um retrato encantadoramente clássico sobre a
resiliência de um homem e da sua dedicada família. Com experiência de sobra na
produção cinematográfica, vide o seu visionário trabalho no desenvolvimento da
tecnológica de captura de movimentos, o talentoso Andy Serkis estreia na
direção num drama de época revigorante, uma obra delicada e visualmente
belíssima que opta por se concentrar no aspecto inspirador desta cativante
história real. Uma alternativa, diga-se de passagem, justa, principalmente pelo
esforço de Serkis em valorizar os laços familiares e em traduzir, sob um
ensolarado viés otimista, a revigorante jornada Robin e Diana Cavendish.
Produzido pelo filho do casal, Jonathan Cavendish, o longa estrelado pelos
talentosos Andrew Garfield e Claire Foy é enfático ao deixar o sofrimento em
segundo plano. Por mais que, num primeiro momento, Serkis seja categórico ao
revelar a dor do inerte protagonista, paralisado do pescoço para baixo vítima
de uma poliomielite, não demora muito para o longa mostrar as suas reais
intenções. Ao contrário de títulos recentes, como o realístico O Escafandro e a
Borboleta e o agridoce Os Intocáveis, o argumento assinado pelo experiente
William Nicholson (Gladiador) prefere enxergar o copo meio cheio, se
distanciando dos pequenos obstáculos ocasionados pela doença ao valorizar o
espírito libertário de Robin. Ainda que o desconfortável som do respirador se
revele extremamente audível, como se Serkis, numa solução narrativa perspicaz,
estivesse nos lembrando constantemente da vulnerável posição do protagonista, o
longa cativa ao realçar tanto a luta de Robin em busca da sua autonomia
perdida, quanto a dedicação da independente Diana para sustentar os sonhos do
seu querido marido. Ao longo dos dois primeiros atos, Serkis capricha ao
estabelecer a iluminada nova rotina do deficiente, ao capturar a sua relação
com o filho recém-nascido, a ajuda dos seus amigos mais íntimos e a sua
crescente dedicação a causa dos deficientes. Tudo é muito belo e convidativo
aos olhos do público, um predicado valorizado pela refinada direção de arte e
pela (quase) onírica fotografia em diurnos tons dourados do veterano Robert
Richardson (O Aviador, Bastardos Inglórios).
Além disso, é legal ver também as
boas intenções da película na defesa da autonomia das vítimas da poliomielite.
Um tema por si só bem-vindo, mas que aqui, por se tratar de uma obra ambientada
entre os anos 1950 e 1980, é cuidadoso ao revelar o quão retrógrado era o
tratamento oferecido naquela época. Sem querer revelar muito, toda a passagem
em solo alemão é de um realismo desconcertante, o que ajuda a reforçar o
impacto dos “feitos” dos Cavendish’s. No momento em que a trama deveria dar um
passo além, entretanto, a impressão que fica é que Andy Serkis e o argumento se
contenta em trafegar pela superfície. O que fica bem claro quando o assunto é a
relação entre Robin e Diana. Indo de encontra a outro consagrado título do
gênero, o igualmente fascinante A Teoria de Tudo, o roteiro peca ao não ir mais
a fundo nos dilemas íntimos de marido e mulher. Em um ou dois momentos, Serkis
até tenta dar voz aos seus anseios mais humanos, colocar as suas respectivas
posições em perspectiva, mas tudo é rapidamente resolvido sem grandes
consequências. Na verdade, por mais que os dois personagens tenham muito a
oferecer individualmente, principalmente a prática Diana, a relação amorosa
aqui soa muito mais fraternal, do que passional. Um deslize, num primeiro
momento, amenizado pelas dedicadas atuações de Andrew Garfield e Claire Foy.
Enquanto o versátil ator britânico, embora estático numa cama, esbanja
expressividade e serenidade ao traduzir os anseios de um homem disposto a
arriscar a sua vida em prol da independência, a promissora “revelação” da série
The Crown mostra o seu reconhecido magnetismo ao interiorizar a força da sua
Diana, ao exaltar o misto de fidelidade e modernidade de uma mulher que se viu
obrigada a tornar o pai, a mãe e a provedora desta família. Duas grandes
atuações.
No momento em que o longa parecia
totalmente seduzido pelo viés reverencial da obra, entretanto, Andy Serkis
mostra maturidade ao se aproximar a realidade dentro do último ato. Numa
repentina transição de cena, o realizador decide mostrar aquilo que foi omitido
durante a maior parte da película, refletindo com mais peso sobre a real
situação de Robin ao evidenciar que a paralisia não era a única das sequelas impostas
pela poliomielite. Numa perspectiva agora agridoce, Serkis é cuidadoso ao
investigar as intenções do protagonista diante do agravamento da doença,
refletindo sobre os seus “direitos” com sutileza e intimismo. Mais do que
apertar os botões certos na hora certa, o realizador enche a tela de sentimento
ao mostrar o impacto do tempo na rotina daqueles que o cercaram durante toda a
sua jornada, fugindo das lágrimas fáceis ao defender a sobriedade britânica até
os minutos finais de película. O resultado é um clímax denso e bonito, um
desfecho à altura dos feitos de Robin e Diana. Além disso, Serkis mostra
recursos técnicos ao traduzir a desconfortável posição do protagonista, fazendo
um criativo da câmera subjetiva e dos planos fechados na tentativa de permitir
que o espectador experimentasse um pouco da sua inércia. Em suma, com um elenco
entrosado, um visual refinado e acolhedora reconstrução de época, Uma Razão
para Viver segue a cartilha do gênero ao tirar do papel uma inspiradora
história de superação. Na sua primeira grande experiência atrás das câmeras,
Andy Serkis oferece ao espectador um drama com uma aura pura e otimista, uma
abordagem que, com raríssimas exceções, parece ter caído em desuso em
Hollywood. O que, de certa forma, ajuda a explicar o injustificável desdém com
que a obra foi tratada.
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