terça-feira, 18 de setembro de 2018

Gente de Bem

Uma crônica impiedosa sobre a disfuncionalidade familiar americana

Ben Mendelsohn já estava por merecer um espaço aqui no blog. Um daqueles atores singulares que, sabe-se lá porque, não parecem cair no gosto popular, ele já está há pelo menos uma década entregando grandes performances, se destacando seja em produções menores, seja em imponentes blockbusters. Nascido na Austrália, Mendelsohn entrou em Hollywood sem grande alarde. Com versatilidade e uma indiscutível presença cênica, ele não demorou para conquistar um espaço pequeno (é verdade) em produções de alcance popular, se tornando um rosto conhecido dentro da indústria por participações em co-produções como Contratado para Matar (1990) e Sereias (1994), em blockbusters como Limite Vertical (2000) e Austrália (2008), e em filmes respeitados que pouca gente viu como O Mapa do Coração (1992) e O Novo Mundo (2005). Foi com o visceral Reino Animal (2010), entretanto, que pudemos conhecer o talento inexplorado deste já nem tão novo rosto. Na pele de um odioso membro de uma família formada por criminosos, Mendelsohn nos brindou com um antagonista memorável, um homem capaz de tudo para manter a sua família “unida”. 



Vencedor do prêmio do Júri no Festival de Cannes, o longa deu ao ator um novo status, o transformando num grande ladrão de cenas em títulos como o pretensioso O Homem da Máfia (2012), o grandioso Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), o surpreendente Oeste Sem Lei (2015) e o refinado O Destino de Uma Nação (2018). Se nas grandes produções o ator tem ficado reduzido ao estigma do vilão, o que fica claro no magnífico Star Wars: Rogue One (2016) e no divertidíssimo Jogador Nº 1 (2018), é no cinema ‘indie’ que ele tem encontrado espaço para brilhar em personagens complexos e genuinamente humanos. Foi assim no elogiado Encarcerado (2013), no envolvente Parceiros de Jogo (2015) e agora no seu mais novo projeto, o impiedoso Gente de Bem. Sob a chancela da Netflix, o desconfortável drama dirigido e roteirizado por Nicole Holofcener é incisivo ao refletir sobre a disfuncionalidade familiar nos grandes centros urbanos, questionando a falta de comunicação entre pais e filhos numa obra profunda, complexa e inesperadamente tragicômica. Uma produção que, apesar do ritmo por vezes frouxo, acerta ao mirar no público adulto, ao divagar sobre a inércia\acomodação parental diante de temas espinhosos.


Sem um pingo de condescendência, Gente de Bem (que bela tradução) é astuto ao apontar o dedo para àqueles que preferem julgar e não compreender. Numa crônica ferina sobre a vida de aparências familiar, Nicoler Holofcener esbanja propriedade ao fazer de Anders (Ben Mendelshohn) o seu inusitado interlocutor. Cansado da pressão do mundo dos negócios, de investir num casamento fracassado e na construção de um ‘status’ social aparentemente sedutor, este errático homem de meia idade decide largar tudo, se aposentar, se divorciar e levar uma descompromissada vida como solteirão. Seis meses após esta decisão, entretanto, as coisas não saíram como o esperado. Convivendo com o afastamento do filho, o problemático Preston (Thomas Mann, ótimo) e com o desdém da ex-esposa, a independente Helene (Edie Falco), Anders viu a sua inércia se transformar num problema, afetando os seus sentimentos, os seus ocasionais relacionamentos e os seus vínculos previamente construídos. Após ver o filho da melhor amiga da sua esposa, a fria Sophie (Elizabeth Marvel), sofrer uma overdose acidental, ele decide tentar reparar os seus erros recentes. Anders, porém, estava longe de ser o único elo imperfeito de uma disfuncional “teia” familiar.


Com uma consistente dose de ironia, uma opção corajosa diante da seriedade do tema proposto, o grande trunfo de Gente de Bem está na maneira com que o longa escancara as incoerências por trás de um “jogo dos sete erros” familiar. Ao narrar a história a partir do falho ponto de vista de Anders, Nicole Holofcener consegue refletir sobre as sequelas de uma negligente relação parental com profundidade e um generoso flerte com o sarcasmo, ampliando o escopo da película ao questionar o real valor dos saturados rótulos “pai de família” e “mãe de família”. Um “status”, hoje, frequentemente usado como um adjetivo, como se só por ter colocado um filho no mundo um indivíduo se tornasse um homem\mulher melhor. Seguindo uma lógica tipicamente americana, um impositivo senso comum em que, após os 21 anos, os filhos devem aprender automaticamente a voar com as suas próprias asas, é interessante ver como o argumento trata os (imaturos) jovens como verdadeiras vítimas. As suas falhas, embora evidentes, são investigadas como sequelas de uma criação “viciada”. O alvo, aqui, são os adultos e a completa falta de diálogo com os seus herdeiros. Sob uma perspectiva intimista, Holofcener esbanja sagacidade ao, num primeiro momento, expor o desdém para com a figura de Anders, o homem que decidiu romper com o ‘status quo’ social que o cercava. Tratado, nas entrelinhas, como um fracasso por ex-esposa e ex-amigos, ele não é levado a sério por um segundo sequer, o que rende situações um tanto quanto engraçadas. Ninguém parece compreender a decisão do vulnerável protagonista.


Aos poucos, porém, Nicole Holofcener é categórica ao tocar no cerne da questão. Ao expor, a partir dos desastrados gestos de reaproximação de Anders, a inércia e a falhas daqueles que se acostumaram a julga-lo. Enquanto os “adultos” pareciam não querer enxergar os problemas ao seu redor, o deslocado aposentado de meia idade surge como um compreensivo ombro amigo, o único capaz de desafiar um negligente círculo vicioso. Sem querer revelar muito, da relação entre Anders e o criativo ‘junkie’ Charlie (Charlie Tahan, puro carisma) nascem os melhores diálogos da película, justamente pela capacidade do roteiro em tratar os dois personagens como iguais. Algo impraticável para as demais figuras de maturidade do longa. Dois homens que, embora de gerações distintas, parecem cansados de lidar com as pressões impostas por terceiros. Sem medo de soar inclemente, Holofcener coloca o dedo na ferida ao questionar a falta de comunicação entre pais e filhos, ao defender que com um pouco de apoio e empatia algumas situações trágicas poderiam ser facilmente evitadas. Às vezes, definitivamente, os problemas estão bem mais próximos do que nós poderíamos esperar. Transitando entre a comédia e o drama com enorme maturidade, Gente de Bem não foge da raia ao apontar o dedo para os culpados, indo além dos típicos dramas agridoces ao propor uma crônica crítica sobre a inércia parental em “tempos de crise”.


Por mais que esteja longe de ser um filme fácil, a esquálida fotografia esbranquiçada e o ritmo por vezes vagaroso não ajudam muito, Gente de Bem compensa ao confiar na força do seu texto, das suas espertas metáforas (o jardim e a tartaruga não estão lá a toa) e do seu consistente elenco, encontrando no carisma ébrio de Andres\Ben Mendelsohn, na frieza distante de Sophie\Elizabeth Marvel e na firmeza contraditória de Helene\Edie Falco os ingredientes necessários para a construção de um retrato atual e indiscutivelmente verdadeiro sobre alguns enraizados conflitos familiares.

2 comentários:

Unknown disse...

Vou assistir!!!
muito bom comentário.

Unknown disse...

Vou assistir!!!
muito bom comentário.