sexta-feira, 27 de julho de 2018

Extinção

Surpreendente

Pegue o argumento do épico Guerra dos Mundos (2008). Misture com o suspense psicológico do excelente O Abrigo (2008). Adicione o cativante ‘background’ familiar do magnífico Um Lugar Silencioso (2018). E tempere tudo isso com um inesperado subtexto Sci-Fi. Pronto. A Netflix finalmente acertou. Embora parta de uma premissa um tanto quanto saturada, Extinção surpreende ao construir uma visão original sobre o “nosso” apocalipse. Com alma de “filme B”, mas ousadia para criar em cima de uma temática tão explorada, o longa dirigido por Ben Young (Hounds of Love) é perspicaz ao não se seduzir pela megalomania da destruição em grande escala, valorizando o aspecto micro ao se concentrar na luta pela sobrevivência de uma pacata família diante de uma feroz invasão alienígena. Sob esta vulnerável perspectiva, o realizador é astuto ao tirar do papel um ‘mise en scene’ tenso e instigante, indo além do fator humano ao gradativamente preencher a trama com questões bem mais complexas do que a película parecia sugerir. O resultado é uma obra por si só nervosa que, quando parecia não ter muito mais a oferecer, surge com um dos ‘plot twists’ mais impactantes (e espertos) que o gênero viu nos últimos anos. 


Até por isso, Extinção é aquele tipo de filme que merece ter os seus segredos protegidos. Por isso vou me aprofundar bem pouco na história em si. Num primeiro momento, o argumento assinado por Spenser Cohen, Eric Heisserer e Brad Kane faz um feijão com arroz bem temperado ao situar o espectador num futuro nem tão distante. Apesar do nítido baixo orçamento, Ben Young (e a sua equipe de direção de arte) são inventivos ao estabelecer este futuro ‘hi-tech’, prezando pelos detalhes principalmente nos imersivos cenários. É nítido que, apesar do artificial CGI chamar a atenção nas escurecidas sequências externas, o diretor opta por valorizar os efeitos práticos, ponto para o requintado design de produção, o que ajuda a tornar esta realidade futurística verossímil aos olhos do público. Dentro deste cenário, digamos, familiar, Young é objetivo (até demais, vide o expositivo prólogo) ao introduzir os dilemas do errático Peter (Michael Peña), um funcionário de uma empresa de tecnologia que viu o seu bem-estar alterado por uma série de visões apocalípticas. Apesar da pressão da sua esposa, a executiva Alice (Lizzy Caplan), ele seguia relutando em procurar ajuda, já que aqueles presságios poderiam estar querendo dizer algo sobre o destino da sua esposa e filhas, a rebelde Hannah (Amelia Crouch) e a afetuosa Megan (Lilly Aspell). Quando todos começavam a duvidar da sanidade de Peter, entretanto, a Terra é repentinamente invadida por opressores alienígenas. No meio do fogo cruzado, ele decide buscar nas suas memórias um caminho para salvar a vida da sua família, sem sequer desconfiar do perigo que estava próximo de enfrentar. 


Com personagens cativantes, um arco central universal e uma valorosa construção de mundo, Extinção é o tipo de filme que não depende das suas reviravoltas. Mesmo sem “reinventar a roda”, Ben Young mostra talento ao extrair a tensão por trás da luta dos protagonistas pela sobrevivência, mostrando, a partir do desesperado olhar desta família, o rastro de destruição deixado pelos invasores. Por mais que o foco esteja obviamente na ação, o realizador é cuidadoso ao, nos momentos de respiro narrativo, explorar a disfuncionalidade famíliar, indo além dos arquétipos ao permitir que eles ganhem nuances próprias. Peter, por exemplo, está longe de ser um modelo de herói. O seu modo de agir errático\reativo confere a ele um grau de normalidade que o aproxima do público. É fácil se identificar com ele, com os seus medos, a sua angústia. Além disso, Young é incisivo ao potencializar a sensação de perigo iminente. No melhor estilo Cloverfield: O Monstro (2008), o realizador mostra talento ao realçar a sensação de caos, ao capturar a vulnerabilidade dos personagens, a onipresença dos aliens, mostrando um “desapego” que faz muito bem ao gênero. Por mais que, em alguns (poucos) momentos, Young peque pela confusão visual nos embates físicos dentro dos cenários mais escuros, em outros ele compensa ao usar a iluminação com elegância, fazendo um imersivo uso da vistosa fotografia noturna de Pedro Luque (O Homem nas Trevas) na construção de planos naturalmente enervantes. Outro ponto que agrada, e muito, é o palpável visual das criaturas alienígenas. Consciente das suas limitações, o diretor é criativo ao utilizar os efeitos práticos, tornando a “cascuda” aparência sombria dos humanoides extraterrestres naturalmente ameaçadora. Somado a isso, é legal ver como Young flerta com o ‘steampunk’ quando o assunto é a concepção das naves, fazendo um pontual uso do CGI com originalidade e bom gosto. O mesmo, porém, não acontece nas sequências panorâmicas, principalmente as de destruição, escancarando as limitações técnicas de um diretor que fez muito com bem pouco. 


Um deslize que se torna praticamente irrelevante diante do explosivo terço final da película. E aqui tenho que “pisar em ovos” para não dar qualquer spoiler. Quando tudo parecia caminhar para um desfecho megalomaníaco do tipo “nós contra eles”, Extinção esmaga as nossas expectativas ao surgir com (pelo menos) duas reviravoltas dignas dos melhores elogios. Com propriedade e sutileza narrativa, Ben Young é categórico ao trazer a ficção-científica para o centro da trama, ligando os pontos num ‘plot twist’ inteligente, sagaz e totalmente pertinente a raiz do Sci-Fi. Embora evite se aprofundar nas questões filosóficas por trás da descoberta, o que, diante do devastador cenário proposto, faz todo o sentido, o realizador é cuidadoso ao olhar para o gênero sob uma nova perspectiva, mostrando as consequências das nossas próprias ações dentro de um contexto frequentemente esnobado. Por mais que a reflexão proposta pelo roteiro não chegue a ser inédita, longe disso, a crível maneira encontrada pelo longa para debater a nossa existência num “universo” tecnológico é indiscutivelmente particular, justamente por preencher lacunas que ficaram apenas subentendidas em alguns dos maiores clássicos do segmento. E isso de maneira simples e convincente, comprovando que, ao contrário de títulos como o recente Tau (2018), é possível tirar do papel uma ficção-científica popular\acessível sem subestimar a inteligência do espectador. 


Embora as familiares conveniências narrativas “falem bem alto” dentro do agitado clímax e o roteiro subaproveite alguns dos interessantes personagens de apoio, Extinção surpreende ao extrair algo singular de uma premissa extremamente desgastada. Impulsionado pelo carisma da dupla Michael Peña e Lizzy Caplan, intensos na pele de um casal disposto a tudo para manter o bem-estar da sua família, Ben Young fisga a atenção do espectador com uma obra tensa, aparentemente inofensiva, mas que, numa inesperada mudança de rumo, instiga ao encontrar na raiz do Sci-Fi o combustível necessário para ocasionar uma explosiva (e empolgante) reviravolta.

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