domingo, 22 de julho de 2018

Do Fundo do Baú (François Truffaut)


Há exatos sete dias, a França levantava o cobiçado caneco de campeã na Copa do Mundo 2018. E como um grande fã de esportes que sou, decidi prestar uma singela reverência ao país que - dentre outros feitos cinematográficos - nos brindou com o precioso movimento da Nouvelle Vague. Indo de encontro ao modelo ‘hollywoodiano’ de se pensar o cinema, os críticos da revista Cahiers du Cinema, uma das mais importantes publicações do segmento, decidiram trocar a teoria pela prática. As redações pelo set de filmagens. Influenciados pelos conceitos defendidos pelo literário André Bazin, nomes como Jean-Luc Godard (Acossados), Alain Resnain (Hiroshima Meu Amor), Eric Rohmer (Uma Noite em Casa de Maude) e (claro!) François Truffaut surfaram numa “nova onda” mais democrática. Dispostos a refletir sobre a vida nos grandes centros urbanos, este seleto grupo passou a investir em histórias pequenas, mundanas, se debruçando sobre a inquietação humana em produções baratas, com cenários reais, atores desconhecidos e um íntimo viés naturalista. A realidade passou a ser o cerne da questão. Além disso, os principais porta-vozes deste celebrado movimento saíram em defesa da renovação estética, revigorando a forma de se fazer cinema ao investir em planos engenhosos, enquadramentos modernos e numa linguagem universal. Uma proposta “faça você mesmo” que inspirou diversos outros grandes realizadores e correntes, incluindo o nosso Cinema Novo, a Nova Hollywood e o bem-sucedido mercado ‘indie’ norte-americano. Dos integrantes da ‘Nouvelle Vague’, porém, Truffaut sempre me pareceu o realizador mais “acessível”. Não que os outros não sejam. Mas o homem por trás dos clássicos Farenheint 451 (1966) e A Noite Americana (1973) foi o que, a meu ver, mais buscou o contato com o grande público. Embora tenha falecido novo, aos 52 anos, vítima de um câncer no cérebro, ele não titubeou em dialogar com as grandes plateias, buscando ir além dos pequenos nichos, do pedante “cinema de arte”. Suas produções, ainda que tecnicamente virtuosas, eram puras, francas e universais. A simplicidade narrativa era a alma do seu negócio. Mais tarde, já na década de 1970, Truffaut chegou a flertar com a (remodelada) Hollywood, ganhando um papel de destaque no clássico Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1978). Ali, o então jovem Steven Spielberg, parecia prestar uma digna homenagem a uma das suas principais influências, um dos pilares na renovação cinematográfica na segunda metade do século XX. Dito isso, neste Do Fundo do Baú, decidi falar um pouco mais sobre a carreira do mestre François Truffaut analisando três das suas mais marcantes produções. 

- Os Incompreendidos (1959)


François Truffaut não precisou de muito tempo para mostra a força da sua maneira de enxergar o cinema. Logo no seu primeiro trabalho, o inestimável Os Incompreendidos, o realizador francês conquistou os seus ex-parceiros de profissão ao tirar do papel um relato comovente sobre as sequelas da disfuncionalidade familiar na rotina de um indomável adolescente. Com uma abordagem naturalista, um refinado senso de humor e uma indiscutível sensibilidade dramática, Truffaut pavimentou a estrada da ‘Nouvelle Vague’ ao narrar as desventuras de Antoine, um jovem inteligente e rebelde que, cansado de enfrentar os problemas no casamento dos seus pais, decide fugir de casa e “viver” de pequenos furtos. Numa abordagem a frente do seu tempo, o diretor mostra um inegável fascínio ao traduzir os conflitos por trás desta problemática família. Sem a intenção de julga-los, o longa é cuidadoso ao, sob a perspectiva do imaturo protagonista, expor as consequências de uma relação fracassada, transitando por temas genuinamente adultos enquanto acompanha as espontâneas reações do protagonista diante das ações do seus relapsos pais. Truffaut não parece disposto em encontrar vítimas e\ou vilões. Os pais “ferem” sem intenção. O filho “fere” sem intenção. A rigor, Os Incompreendidos é um filme sobre as falhas de comunicação dentro da estrutura familiar. Sobre como uma situação perfeitamente controlável ganha uma proporção naturalmente perigosa devido a uma sucessão de pequenos erros. Pouco a pouco, percebemos a face mais falha desta família, os motivos por trás da inquietação do esperto Antoine. Todos ali parecem dispostos a acertar, mas, na tentativa de encontrar atalhos e subterfúgios, acabam não enxergando os seus próprios erros. Vide a fantástica sequência da psicóloga, quando, pela primeira vez no longa, um personagem adulto parece finalmente disposto a ouvir uma das partes, a entender o que desencadeou tal situação. Uma revelação ingênua e carregada de mágoas que surge para partir o coração do espectador.


A força que move Os Incompreendidos, entretanto, é o pequeno Jean-Pierre Leáud e a maneira sutil com que François Truffaut reproduz os dilemas de um jovem da época. Por mais que o arco familiar funcione a contento, o realizador é particularmente cuidadoso ao valorizar a intensa performance do então promissor ator. Sem nunca tratá-lo como um jovem adulto, Truffaut esbanja sagacidade ao realçar a imaturidade por trás de gestos maduros. Antoine furta, fuma, bebe, é preso, mas, nunca, eu disse nunca, deixa de ser tratado como uma criança. Daquelas que teme a fúria dos pais. Que não perde a oportunidade de debochar do professor. De matar uma aula para se divertir com os amigos. Leáud cativa ao, através do seu olhar\expressão, revelar o desconforto por trás dos atos. O misto de ingenuidade, imaturidade, medo e perdição que guiam o arco do seu personagem até a fantástica sequência final. Sem querer revelar muito, a relação entre Antoine e o seu fiel amigo René (Patrick Auffay) é de uma beleza rara e diz muito. Como se ele, em meio ao frenesi urbano pincelado com genialidade por Truffaut nos seus fantásticos planos abertos, fosse o único capaz de entender os verdadeiros problemas do protagonista. Os incompreendidos, aos olhos de Truffaut, se reconhecem. Trazendo ainda um original subtexto artístico, o cinema surge como um breve oásis na rotina de Antoine, Les quatre cents coups (no original) se revela o cartão de visitas que, acredito, todo grande diretor gostaria de ter. Um relato profundo e recheado de sentimento sobre as desventuras de um garoto que só queria encontrar o seu lugar no mundo. Um espaço de relações familiares frágeis sustentadas por mentiras, promessas vazias e a desleixada sensação de que tudo está bem.

- Jules e Jim (1962)


O triângulo amoroso dos triângulos amorosos, Jules e Jim esbanja modernidade do primeiro ao último minuto de projeção. Num relato irônico sobre a face mais complexa do romantismo, François Truffaut se insurge contra alguns enraizados paradigmas do gênero ao construir uma história de amor com múltiplas camadas. Sem um pingo de condescendência, o realizador francês não se contenta em explorar os sentimentos\emoções mais recorrentes no segmento, entre eles a amizade, o companheirismo, a paixão, o afeto e eventualmente o ódio. Numa obra marcada pelo impressionante dinamismo, Truffaut prefere valorizar outras nuances comportamentais, refletindo sobre temas mais mundanos ao discorrer sobre a carência, o sentimento de posse, o egoísmo, o altruísmo e a instabilidade de uma volátil relação movida pelo impulso. Dividido em duas metades bem distintas, o longa cativa inicialmente ao construir a revigorante parceria entre os amigos Jules (Oskar Werner, reluzente) e Jim (Henri Serre, a nobreza em pessoa), dois simpáticos ‘bon vivant’ que compartilhavam quase tudo nas suas respectivas vidas. Menos, obviamente, os seus inúmeros interesses amorosos. Inseparáveis, os dois veem a sua rotina ganhar um novo rumo quando Jules conhece a independente Catherine (Jeanne Moreau, magnética), uma jovem independente que logo conquista a afeição dos dois com a sua liberal maneira de enxergar a vida e a sua expansiva personalidade. Neste primeiro momento, Truffaut é habilidoso ao solidificar o elo entre os personagens, ao estabelecer os sentimentos do trio sem sacrificar o equilíbrio da relação. É nítido que os dois nutrem mais do que uma simples admiração pela bela mulher, mas, ao contrário da grande maioria dos filmes do gênero da época, aqui não existia motivos para competição. Isso porque, numa opção totalmente à frente do seu tempo, o diretor é sagaz ao exaltar a igualdade entre eles, a aparente maturidade\submissão com que Jules e Jim reagem diante das decisões de Catherine. É ela que está no comando da ação.


Tratando a Primeira Grande Guerra como um inteligente divisor de águas, François Truffaut não demora muito para adicionar novos ingredientes nesta improvável relação. Apesar da ambientação de época, o realizador francês é astuto ao gradativamente se concentrar nos dilemas femininos, ao transformar Catharine no agente catalisador da trama. Longe do arquétipo da “donzela conquistável”, é ela que toma as rédeas da relação, colocando os seus anseios sentimentais acima dos românticos protagonistas. Na verdade, através dela Truffaut dá uma bem-vinda voz as mulheres do seu tempo, se insurgindo contra os padrões da época ao transitar por temas como a infelicidade no casamento, a infidelidade e a deterioração sentimental dos personagens. Com o seu afiado senso de ironia, o realizador é cuidadoso ao se concentrar no crescente perigo que cerca esta inusitada relação. Antes leves e joviais, os personagens vão se tornando opacos e tristes. Os sorrisos se tornam mais esporádicos. Os conflitos mais latentes. A linha que os une se torna cada vez mais tênue e frágil, culminando num clímax corajoso e acima de tudo surpreendente. Um desfecho enfático ao debater as sequelas de uma relação movida pela paixão. Indo além das virtudes temáticas, principalmente quando o assunto é o estudo dos anseios femininos numa relação, François Truffaut brinca com o experimentalismo estético da ‘Nouvelle Vague’ ao investir em visionárias soluções narrativas. Com uma montagem frenética (para os padrões da época), cortes ágeis e criativas transições de cena, o diretor constrói um magnético ‘mise en scene’, flutuando entre o naturalismo de Os Incompreendidos e o vigor das suas produções futuras num filme singular. Em suma, com um olhar pouco ortodoxo sobre as crises matrimoniais, Jules e Jim reflete sobre os perigos de uma (desconstruída) relação a três numa obra incisiva, atual e nada indulgente.

- O Último Metrô (1980)


Uma verdadeira carta de amor à arte, O Último Metrô sintetiza a maturidade estética e narrativa de François Truffaut. Embora não esteja entre os títulos mais aclamados da sua fase pós-‘Nouvelle Vague’, o longa estrelado pela belíssima Catherine Deneuve e pelo então promissor Gérard Depardieu envolve ao extrair a tensão por trás de um drama de guerra sem esquecer de valorizar o seu precioso subtexto. Em sua camada mais superficial, o roteiro assinado pelo próprio Truffaut, ao lado de Suzanne Schiffman, se revela um suspense imersivo sobre uma atriz que, em plena França ocupada pelos nazistas, usa o seu teatro para esconder um perigoso segredo. Com um dinamismo crescente e personagens brilhantemente desenvolvidos, o realizador francês é cuidadoso ao estabelecer a vulnerabilidade dos artistas num contexto de turbulência, refletindo sobre os seus medos, os seus anseios, as barreiras impostas pelo nazismo e a difícil missão de tocar um teatro em meio a uma guerra. Antes que Alejandro G. Iñarritu sonhasse em tirar do papel o seu Birdman, Truffaut atestou o seu visionarismo cênico ao investir em magníficos planos longos e\ou sequenciais, construindo um ‘mise en scene’ vigoroso e naturalmente instigante. Durante o vai e vem proposto dentro do explorável cenário, o diretor permite que pouco a pouco descortinemos os segredos deste pequeno e brioso grupo de “resistentes”, as relações proibidas, o amor pelo teatro, a cumplicidade, um relato condizente com os bastidores de uma peça. Tudo soa muito real, muito convincente. A guerra é um oponente voraz, sorrateiro, que parece assombrar a rotina dos personagens ao longo crescente história.


A grande sacada de O Último Trem, entretanto, está na maneira sagaz com que François Truffaut usa o drama do conflito como um ‘background’, o ponto de partida para uma inspirada crítica envolvendo o mundo das artes. Nas entrelinhas, o realizador francês é astuto ao refletir sobre a desvalorização dos teatros, o sucateamento da arte, o preconceito, o machismo, a censura. Apesar da sua origem como crítico, Truffaut é particularmente contundente ao questionar as motivações daqueles que julgam o artista, os interesses escusos, a covardia, uma interpretação corajosa principalmente por se tratar de alguém que dedicou bons anos da sua vida a análise cinematográfica. O que fica bem claro quando nos deparamos com a representação do crítico, o ardiloso francês antissemita interpretado por Jean-Louis Richard. Na transição para o dinâmico clímax, aliás, Truffaut surpreende ao resgatar a ironia dos seus primeiros filmes, testando as nossas expectativas ao nos brindar com um desfecho inteligente e perspicaz. Um predicado indiscutivelmente valorizado pelo gabaritado elenco, vide as intensas performances da magnética Catharine Deneuve, do expansivo Gerard Depardieu, do sensível Heinz Bennent e da charmosa Andréa Ferréol. Em suma, um relato íntimo sobre um grupo de pessoas fiel a sua arte, O Último Metrô transita entre o suspense e o drama de guerra com desenvoltura, mostrando um François Truffaut ainda mais disposto em buscar o diálogo com as grandes audiências. Pena que, quatro anos depois, a carreira deste celebre realizador viria a ser abreviada tão precocemente, uma perda sentida, principalmente pela sua forma passional\entusiasmada em defender o valor da arte, o dom da atuação.

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