Há exatos sete dias, a França
levantava o cobiçado caneco de campeã na Copa do Mundo 2018. E como um grande
fã de esportes que sou, decidi prestar uma singela reverência ao país que - dentre
outros feitos cinematográficos - nos brindou com o precioso movimento da
Nouvelle Vague. Indo de encontro ao modelo ‘hollywoodiano’ de se pensar o
cinema, os críticos da revista Cahiers du Cinema, uma das mais importantes
publicações do segmento, decidiram trocar a teoria pela prática. As redações
pelo set de filmagens. Influenciados pelos conceitos defendidos pelo literário
André Bazin, nomes como Jean-Luc Godard (Acossados), Alain Resnain (Hiroshima
Meu Amor), Eric Rohmer (Uma Noite em Casa de Maude) e (claro!) François
Truffaut surfaram numa “nova onda” mais democrática. Dispostos a refletir sobre
a vida nos grandes centros urbanos, este seleto grupo passou a investir em
histórias pequenas, mundanas, se debruçando sobre a inquietação humana em
produções baratas, com cenários reais, atores desconhecidos e um íntimo viés
naturalista. A realidade passou a ser o cerne da questão. Além disso, os principais
porta-vozes deste celebrado movimento saíram em defesa da renovação estética,
revigorando a forma de se fazer cinema ao investir em planos engenhosos,
enquadramentos modernos e numa linguagem universal. Uma proposta “faça você
mesmo” que inspirou diversos outros grandes realizadores e correntes, incluindo
o nosso Cinema Novo, a Nova Hollywood e o bem-sucedido mercado ‘indie’
norte-americano. Dos integrantes da ‘Nouvelle Vague’, porém, Truffaut sempre me
pareceu o realizador mais “acessível”. Não que os outros não sejam. Mas o homem
por trás dos clássicos Farenheint 451 (1966) e A Noite Americana (1973) foi o
que, a meu ver, mais buscou o contato com o grande público. Embora tenha
falecido novo, aos 52 anos, vítima de um câncer no cérebro, ele não titubeou em
dialogar com as grandes plateias, buscando ir além dos pequenos nichos, do
pedante “cinema de arte”. Suas produções, ainda que tecnicamente virtuosas,
eram puras, francas e universais. A simplicidade narrativa era a alma do seu
negócio. Mais tarde, já na década de 1970, Truffaut chegou a flertar com a
(remodelada) Hollywood, ganhando um papel de destaque no clássico Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1978). Ali, o então jovem Steven Spielberg, parecia
prestar uma digna homenagem a uma das suas principais influências, um dos pilares
na renovação cinematográfica na segunda metade do século XX. Dito isso, neste
Do Fundo do Baú, decidi falar um pouco mais sobre a carreira do mestre François
Truffaut analisando três das suas mais marcantes produções.
François Truffaut não precisou de
muito tempo para mostra a força da sua maneira de enxergar o cinema. Logo no
seu primeiro trabalho, o inestimável Os Incompreendidos, o realizador francês
conquistou os seus ex-parceiros de profissão ao tirar do papel um relato
comovente sobre as sequelas da disfuncionalidade familiar na rotina de um indomável
adolescente. Com uma abordagem naturalista, um refinado senso de humor e uma indiscutível
sensibilidade dramática, Truffaut pavimentou a estrada da ‘Nouvelle Vague’ ao
narrar as desventuras de Antoine, um jovem inteligente e rebelde que, cansado
de enfrentar os problemas no casamento dos seus pais, decide fugir de casa e “viver”
de pequenos furtos. Numa abordagem a frente do seu tempo, o diretor mostra um
inegável fascínio ao traduzir os conflitos por trás desta problemática família.
Sem a intenção de julga-los, o longa é cuidadoso ao, sob a perspectiva do
imaturo protagonista, expor as consequências de uma relação fracassada,
transitando por temas genuinamente adultos enquanto acompanha as espontâneas
reações do protagonista diante das ações do seus relapsos pais. Truffaut não
parece disposto em encontrar vítimas e\ou vilões. Os pais “ferem” sem intenção.
O filho “fere” sem intenção. A rigor, Os Incompreendidos é um filme sobre as
falhas de comunicação dentro da estrutura familiar. Sobre como uma situação
perfeitamente controlável ganha uma proporção naturalmente perigosa devido a
uma sucessão de pequenos erros. Pouco a pouco, percebemos a face mais falha
desta família, os motivos por trás da inquietação do esperto Antoine. Todos ali
parecem dispostos a acertar, mas, na tentativa de encontrar atalhos e
subterfúgios, acabam não enxergando os seus próprios erros. Vide a fantástica
sequência da psicóloga, quando, pela primeira vez no longa, um personagem
adulto parece finalmente disposto a ouvir uma das partes, a entender o que
desencadeou tal situação. Uma revelação ingênua e carregada de mágoas que surge
para partir o coração do espectador.
A força que move Os
Incompreendidos, entretanto, é o pequeno Jean-Pierre Leáud e a maneira sutil
com que François Truffaut reproduz os dilemas de um jovem da época. Por mais
que o arco familiar funcione a contento, o realizador é particularmente
cuidadoso ao valorizar a intensa performance do então promissor ator. Sem nunca
tratá-lo como um jovem adulto, Truffaut esbanja sagacidade ao realçar a
imaturidade por trás de gestos maduros. Antoine furta, fuma, bebe, é preso,
mas, nunca, eu disse nunca, deixa de ser tratado como uma criança. Daquelas que
teme a fúria dos pais. Que não perde a oportunidade de debochar do professor. De
matar uma aula para se divertir com os amigos. Leáud cativa ao, através do seu
olhar\expressão, revelar o desconforto por trás dos atos. O misto de
ingenuidade, imaturidade, medo e perdição que guiam o arco do seu personagem
até a fantástica sequência final. Sem querer revelar muito, a relação entre
Antoine e o seu fiel amigo René (Patrick Auffay) é de uma beleza rara e diz
muito. Como se ele, em meio ao frenesi urbano pincelado com genialidade por
Truffaut nos seus fantásticos planos abertos, fosse o único capaz de entender
os verdadeiros problemas do protagonista. Os incompreendidos, aos olhos de
Truffaut, se reconhecem. Trazendo ainda um original subtexto artístico, o
cinema surge como um breve oásis na rotina de Antoine, Les quatre cents coups
(no original) se revela o cartão de visitas que, acredito, todo grande diretor
gostaria de ter. Um relato profundo e recheado de sentimento sobre as
desventuras de um garoto que só queria encontrar o seu lugar no mundo. Um espaço
de relações familiares frágeis sustentadas por mentiras, promessas vazias e a desleixada
sensação de que tudo está bem.
- Jules e Jim (1962)
O triângulo amoroso dos
triângulos amorosos, Jules e Jim esbanja modernidade do primeiro ao último
minuto de projeção. Num relato irônico sobre a face mais complexa do
romantismo, François Truffaut se insurge contra alguns enraizados paradigmas do
gênero ao construir uma história de amor com múltiplas camadas. Sem um pingo de
condescendência, o realizador francês não se contenta em explorar os
sentimentos\emoções mais recorrentes no segmento, entre eles a amizade, o
companheirismo, a paixão, o afeto e eventualmente o ódio. Numa obra marcada
pelo impressionante dinamismo, Truffaut prefere valorizar outras nuances
comportamentais, refletindo sobre temas mais mundanos ao discorrer sobre a
carência, o sentimento de posse, o egoísmo, o altruísmo e a instabilidade de
uma volátil relação movida pelo impulso. Dividido em duas metades bem
distintas, o longa cativa inicialmente ao construir a revigorante parceria entre
os amigos Jules (Oskar Werner, reluzente) e Jim (Henri Serre, a nobreza em
pessoa), dois simpáticos ‘bon vivant’ que compartilhavam quase tudo nas suas
respectivas vidas. Menos, obviamente, os seus inúmeros interesses amorosos.
Inseparáveis, os dois veem a sua rotina ganhar um novo rumo quando Jules
conhece a independente Catherine (Jeanne Moreau, magnética), uma jovem
independente que logo conquista a afeição dos dois com a sua liberal maneira de
enxergar a vida e a sua expansiva personalidade. Neste primeiro momento,
Truffaut é habilidoso ao solidificar o elo entre os personagens, ao estabelecer
os sentimentos do trio sem sacrificar o equilíbrio da relação. É nítido que os
dois nutrem mais do que uma simples admiração pela bela mulher, mas, ao
contrário da grande maioria dos filmes do gênero da época, aqui não existia
motivos para competição. Isso porque, numa opção totalmente à frente do seu
tempo, o diretor é sagaz ao exaltar a igualdade entre eles, a aparente
maturidade\submissão com que Jules e Jim reagem diante das decisões de
Catherine. É ela que está no comando da ação.
Tratando a Primeira Grande Guerra
como um inteligente divisor de águas, François Truffaut não demora muito para adicionar
novos ingredientes nesta improvável relação. Apesar da ambientação de época, o
realizador francês é astuto ao gradativamente se concentrar nos dilemas
femininos, ao transformar Catharine no agente catalisador da trama. Longe do
arquétipo da “donzela conquistável”, é ela que toma as rédeas da relação,
colocando os seus anseios sentimentais acima dos românticos protagonistas. Na
verdade, através dela Truffaut dá uma bem-vinda voz as mulheres do seu tempo,
se insurgindo contra os padrões da época ao transitar por temas como a
infelicidade no casamento, a infidelidade e a deterioração sentimental dos
personagens. Com o seu afiado senso de ironia, o realizador é cuidadoso ao se
concentrar no crescente perigo que cerca esta inusitada relação. Antes leves e
joviais, os personagens vão se tornando opacos e tristes. Os sorrisos se tornam
mais esporádicos. Os conflitos mais latentes. A linha que os une se torna cada
vez mais tênue e frágil, culminando num clímax corajoso e acima de tudo
surpreendente. Um desfecho enfático ao debater as sequelas de uma relação movida
pela paixão. Indo além das virtudes temáticas, principalmente quando o assunto
é o estudo dos anseios femininos numa relação, François Truffaut brinca com o
experimentalismo estético da ‘Nouvelle Vague’ ao investir em visionárias
soluções narrativas. Com uma montagem frenética (para os padrões da época),
cortes ágeis e criativas transições de cena, o diretor constrói um magnético ‘mise
en scene’, flutuando entre o naturalismo de Os Incompreendidos e o vigor das
suas produções futuras num filme singular. Em suma, com um olhar pouco ortodoxo
sobre as crises matrimoniais, Jules e Jim reflete sobre os perigos de uma
(desconstruída) relação a três numa obra incisiva, atual e nada indulgente.
- O Último Metrô (1980)
Uma
verdadeira carta de amor à arte, O Último Metrô sintetiza a maturidade estética
e narrativa de François Truffaut. Embora não esteja entre os títulos mais
aclamados da sua fase pós-‘Nouvelle Vague’, o longa estrelado pela belíssima
Catherine Deneuve e pelo então promissor Gérard Depardieu envolve ao extrair a
tensão por trás de um drama de guerra sem esquecer de valorizar o seu precioso
subtexto. Em sua camada mais superficial, o roteiro assinado pelo próprio
Truffaut, ao lado de Suzanne Schiffman,
se revela um suspense imersivo sobre uma atriz que, em plena França ocupada
pelos nazistas, usa o seu teatro para esconder um perigoso segredo. Com um dinamismo
crescente e personagens brilhantemente desenvolvidos, o realizador francês é
cuidadoso ao estabelecer a vulnerabilidade dos artistas num contexto de
turbulência, refletindo sobre os seus medos, os seus anseios, as barreiras
impostas pelo nazismo e a difícil missão de tocar um teatro em meio a uma
guerra. Antes que Alejandro G. Iñarritu sonhasse em tirar do papel o seu
Birdman, Truffaut atestou o seu visionarismo cênico ao investir em magníficos planos
longos e\ou sequenciais, construindo um ‘mise en scene’ vigoroso e naturalmente
instigante. Durante o vai e vem proposto dentro do explorável cenário, o
diretor permite que pouco a pouco descortinemos os segredos deste pequeno e
brioso grupo de “resistentes”, as relações proibidas, o amor pelo teatro, a
cumplicidade, um relato condizente com os bastidores de uma peça. Tudo soa
muito real, muito convincente. A guerra é um oponente voraz, sorrateiro, que
parece assombrar a rotina dos personagens ao longo crescente história.
A grande sacada de O Último Trem,
entretanto, está na maneira sagaz com que François Truffaut usa o drama do
conflito como um ‘background’, o ponto de partida para uma inspirada crítica
envolvendo o mundo das artes. Nas entrelinhas, o realizador francês é astuto ao
refletir sobre a desvalorização dos teatros, o sucateamento da arte, o
preconceito, o machismo, a censura. Apesar da sua origem como crítico, Truffaut
é particularmente contundente ao questionar as motivações daqueles que julgam o
artista, os interesses escusos, a covardia, uma interpretação corajosa
principalmente por se tratar de alguém que dedicou bons anos da sua vida a
análise cinematográfica. O que fica bem claro quando nos deparamos com a
representação do crítico, o ardiloso francês antissemita interpretado por Jean-Louis
Richard. Na transição para o dinâmico clímax, aliás, Truffaut surpreende ao
resgatar a ironia dos seus primeiros filmes, testando as nossas expectativas ao
nos brindar com um desfecho inteligente e perspicaz. Um predicado
indiscutivelmente valorizado pelo gabaritado elenco, vide as intensas
performances da magnética Catharine Deneuve, do expansivo Gerard Depardieu, do
sensível Heinz Bennent e da charmosa Andréa Ferréol. Em suma, um relato íntimo
sobre um grupo de pessoas fiel a sua arte, O Último Metrô transita entre o
suspense e o drama de guerra com desenvoltura, mostrando um François Truffaut
ainda mais disposto em buscar o diálogo com as grandes audiências. Pena que,
quatro anos depois, a carreira deste celebre realizador viria a ser abreviada
tão precocemente, uma perda sentida, principalmente pela sua forma
passional\entusiasmada em defender o valor da arte, o dom da atuação.
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