quarta-feira, 11 de julho de 2018

A Vida em Espera

Um marido em colapso

Howard Wakefield tinha praticamente tudo. Um emprego numa gigante do ramo da advocacia. Uma suntuosa casa no subúrbio. Carro do ano. Roupas de luxo. Um casamento duradouro. Uma vida perfeita, não? Não! Por trás das aparências existia um homem frustrado, um pai “invisível”, um marido enciumado, uma rotina sustentada pela conveniência. Pela necessidade de se manter o rótulo da família feliz. Isso, pelo menos, até Wakefield resolver “desaparecer”, largar a sua casa, sua esposa, filhas e viver como um sem teto no sótão da sua própria casa. Reflexivo e provocador, A Vida em Espera se revela uma debochada crônica sobre os dilemas do homem urbano. Com um refinado senso de humor, o longa dirigido pela diretora Robin Swicord (O Clube de Leitura de Jane Austen) é sagaz ao contestar as “responsabilidades” masculinas dentro de um matrimônio, as imposições estabelecidas pelo senso comum, se insurgindo contra os clichês do “homem provedor” ao tratar o protagonista como uma figura completamente dispensável. Ao investigar a sua parcela de culpa pela situação estabelecida acima. 



Inspirado no conto de E.L. Doctorow e Nathaniel Hawthorne, A Vida em Espera – guardada as devidas proporções – surge como uma atualização sintomática e um tanto quanto cínica de um dos maiores clássicos do cinema norte-americano, o magnífico A Felicidade Não se Compra (1946). Sob a otimista batuta do humanista Frank Capra, o drama, lançado no período do pós-guerra, conquistou gerações ao narrar a história de um homem altruísta (James Stewart) que, após falhar com família e amigos, decide tentar o suicídio. Num momento de relutância, ele cruza o caminho com um anjo sem asas, uma entidade celestial atrapalhada que, para comprovar a sua importância e demovê-lo desta ideia, decide mostrar como seria a realidade daqueles que o cercavam caso ele não existisse. Seis décadas depois, num contexto bem mais mundano e corrosivo, Robin Swicord envolve ao tirar do papel uma releitura involuntária desta agridoce película. Esqueça, porém, a fantasia, o pano de fundo natalino e a confiança de Capra na bondade humana. Com a intenção de questionar o ‘status quo’ masculino, o retrógrado rótulo do “macho alpha”, a realizadora extrai a ironia por trás do drama ao narrar a jornada de um homem infeliz (Bryan Cranston) que, cansado da sua rotina, decide se abrigar no seu sótão para fugir de (mais uma) iminente discussão com a sua recatada esposa (Jennifer Garner, subaproveitada numa personagem sem voz). Após um longo cochilo, ele percebe que passou a noite “fora de casa”, prolongando a sua estadia no espaço ao entender que aquilo poderia culminar numa rixa ainda mais drástica. Disposto a recuperar o seu status enquanto pai e marido, Howard decide se manter escondido no seu próprio sótão, acompanhando as reações da sua esposa por uma janela durante o seu “sumiço”. Para a sua surpresa, entretanto, não demora muito para ela retomar a sua rotina, uma reação dolorosa que passa a colocar em risco a própria sanidade do agora sem teto.


Numa proposta carregada de cinismo, Robin Swicord é astuta ao estabelecer o estado de espírito de Howard sem a necessidade de se prender a explicações óbvias. Fazendo um invasivo uso do recurso da narração, que surge, tal qual num representante do cinema ‘noir’, como uma espécie de diário de bordo, uma visão íntima sobre os sentimentos do protagonista, a realizadora capricha (propositalmente) nos clichês ao pinta-lo como um insensível executivo. Com a expressão fechada, atitudes grosseiras de alguém que tem pressa e um evidente ar de cansado, Bryan Cranston precisa de poucas cenas para mostrar o desconforto do protagonista. A sua sensação de frustração. A sua convicta ideia de que a culpa estava num outro alguém. Na sua esposa, nas suas filhas, numa queda de energia. Se estivéssemos num desenho animado, Howard caminharia com uma nuvenzinha escura em cima da sua cabeça, despejando raios, trovões e muita chuva. Embora o argumento se concentre na perspectiva de uma camada abastada da sociedade, de um homem branco de classe média alta nos EUA, Swicord mostra maturidade ao universalizar o tema, ao tornar os seus problemas reconhecíveis aos olhos do espectador. Num primeiro momento, o roteiro é inteligente ao dar corda para o protagonista, ao trata-lo (como ele bem esperava) como o senhor da razão, testando as nossas expectativas ao apontar a sua mira para o outro lado. Num insinuante exercício de voyeurismo, o longa, tal qual o egoísta Howard, parece pronto para julgar a esposa, os seus atos, as suas decisões. Quantos dias ela precisará para sentir a sua ausência? Para se desesperar diante da perda do seu “provedor”? Ou então para voltar a socializar? Para se “entregar” a um novo homem? Com um eficaz ar de deboche, potencializado pelas hilárias dublagens de um entediado Howard, Swicord levanta estas e outras perguntas, confiando plenamente nas divagações do protagonista enquanto constrói a sua derrocada emocional. Os seus reveladores ‘insights’. A sua decepção ao perceber que a sua ausência não era sentida. Aos poucos, o personagem parece gradativamente se perder nas sombras, um viés soturno potencializado pela elegante fotografia de Andrei Bowden Schwartz.


É aqui, aliás, que A Vida em Espera quebra de vez as nossas expectativas. Por mais que a deterioração de Howard e as suas decisões ganhem contornos precipitadamente drásticos, coerentes (no entanto) com a pegada absurda defendida pela trama, Robin Swicord esbanja sensibilidade ao mudar discretamente o objeto de estudo. Após ouvir as repetitivas lamúrias paternalistas do protagonista, o argumento é perspicaz ao usar os seus próprios argumentos para contestar os clichês do homem provedor, ao duvidar da convicção de Howard. Num imersivo estudo de personagem, a realizadora busca se aprofundar nos conflitos do marido “invisível”. À medida que se desconecta da sua antiga realidade, Howard se torna um homem mais lúcido, consciente das suas reais responsabilidades. Diante da verdade que insistia em contestar, ele se afunda numa insana espiral de lembranças e frustrações, uma jornada densa capturada com intimismo pelas lentes de Swicord. Apesar do excessivo uso dos flashbacks, que, por vezes, prejudicam o andamento da história e nos distanciam exageradamente do tempo presente, a diretora é cuidadosa ao mudar o tom da película, ao substituir o cinismo pela compaixão. Sem um pingo de condescendência, vide o reflexivo desfecho, Swicord mostra perspicácia ao reduzir o teor de acidez, ao realçar também a face mais gentil de Howard, ao torna-lo visível novamente. Neste sentido, a autista Emily (Pippa Bennett-Warner) e o portador de síndrome de down Hebert (Isaac Leyva) surgem como um promissor alívio narrativo, uma lembrança que existe esperança no cenário afetivamente frio e regido por interesses proposto pela película. Um atenuante que, felizmente, pontua a trama com maturidade, impedindo que o viés crítico perca força durante o provocante último ato.


Apesar da intensidade do texto e da refinada condução de Robin Swicord, porém, a alma de A Vida em Espera está na expansiva performance de Bryan Cranston. Mesmo com um tipo egocêntrico em mãos, o astro de Breaking Bad contorna os excessos ao tornar tudo muito verdadeiro aos olhos do público. Num tipo repleto de nuances, o versátil ator convence seja como um detestável advogado, seja como um enciumado marido, seja como um relutante observador, seja como uma insano sem teto, provocando um misto de reações ao conseguir olhar para dentro do seu personagem. Ao desconstrui-lo perante o público com dramaticidade e bom humor. O seu afiado ‘timing’ cômico, aliás, fica claro quando Howard resolve “traduzir” as conversas alheias, uma volta às origens já que Cranston, no início da sua carreira, trabalhou como dublador. Em suma, embora não seja um filme fácil, principalmente pelo seu constante flerte com o absurdo e pelo excesso de ‘voice over’, A Vida em Espera se insurge contra a cultura paternalista ao, a partir do ponto de vista masculino, refutar a suposta “dependência” feminina dentro de um casamento. Afinal de contas, pior do que ser substituído, é ser esquecido.

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