Dois amigos saem numa caçada
comemorativa. Um tiro. Uma vítima inocente morta. O estopim para uma sucessão
de decisões inconsequentes. Sem a intenção de alimentar falsos mistérios,
Calibre choca pela forma com que valoriza um elemento frequentemente esnobado
dentro do gênero: o peso das consequências. Com a contundência necessária para
questionar, o suspense escocês dirigido e roteirizado pelo promissor Matt
Palmer enerva ao se concentrar nos dilemas morais da dupla de protagonistas,
criando uma obra com sólidas ramificações dramáticas. Um filme que, por
acreditar na força da sua história e na multidimensionalidade dos seus personagens,
esbanja maturidade ao traduzir com frieza a espiral de dor e desespero causado
por uma simples arma de fogo.
Sem a intenção de criar mocinhos ou vilões, Matt Palmer incomoda ao tornar tudo o mais real possível. Com um argumento que cresce gradativamente até o incisivo clímax, o realizador britânico é habilidoso ao inicialmente se concentrar no elo entre os protagonistas, o futuro papai Vaughn (Jack Lowden) e o expansivo Marcus (Martin McCann). Para celebrar o anúncio da gravidez, os dois decidem viajar para uma pequena cidade do interior, buscando aproveitar os últimos dias da temporada de caça num festivo reencontro. Isso até um trágico acidente mudar completamente os seus respectivos planos. Consciente que os conflitos morais propostos pelo filme estariam diretamente ligados ao vínculo entre os dois, Palmer oferece o ‘background’ necessário para que possamos criar uma identidade com eles, enxergar as suas respectivas índoles e entender até onde cada um deles iria para proteger este elo. Durante o contextualizador primeiro ato, o foco se mantém acertadamente na banalidade, realçando não só a sucessão de erros que os levaram até tamanha encruzilhada, como também o potencial problema que os cercava. Os fatos se dão instintivamente. O choque impede qualquer reação dramática ou sentimental. Num piscar de olhos eles deixam de ser turistas beberrões e passam a ser criminosos. A ameaça está em todo canto. Um passo em falso e a verdade poderá ser revelada.
Quando a trama parecia apontar
para um caminho mais frenético, entretanto, Calibre finca os seus pés no
suspense psicológico ao se concentrar nas consequências dos atos de Vaughn e
Marcus. Isolados numa pacata região, os dois se veem obrigados a sustentar um
álibi, enfrentando o sentimento de culpa e o crescente medo enquanto precisam
entender o quão frágil é o terreno em que estão pisando. Indo além dos
estereótipos, é interessante ver o esmero do roteiro no que diz respeito aos
personagens de apoio. Inicialmente resistentes, pouco a pouco os locais se
revelam aos olhos do público. Tipos como o justo Logan (Tony Curran, excelente),
o raivoso Brian (Ian Pirie) e o introspectivo Al (Cal MacAninch) adicionam elementos
humanos ao arco central. Mais do que simplesmente alimentar o sentimento de
insegurança\remorso da dupla, o trio surge como um ingrediente desestabilizador,
reforçando tanto a atmosfera de tensão, quanto o impiedoso subtexto moral. Paralelamente
ao arco central, inclusive, Matt Palmer é astuto ao investir em inesperadas
ramificações dramáticas. Primeiro ao se concentrar na crise de consciência dos
dois amigos diante das sequelas do fato em si. Depois ao ampliar a sensação de
vulnerabilidade da dupla. Um sentimento que ganha força, curiosamente, à medida
que os dois (a contragosto) passam a conquistar o afeto\hospitalidade dos
moradores da região. Um ‘mise en scene’ imersivo e angustiante que caminha
sorrateiramente ao visceral último ato. Sem querer revelar muito, Palmer é
astuto ao não sustentar o seu longa em segredos ou reviravoltas. Quando o
potencial problema se torna uma ameaça concreta, ele abraça a previsibilidade com
convicção, realçando a maturidade da sua obra ao propor uma contundente reflexão
acerca da banalização da violência, do revanchismo e do caótico círculo vicioso
iniciado com um simples tiro. Uma corajosa mensagem anti-bélica que soa
gritante na invasiva e silenciosa cena final.
Por mais que
os méritos narrativos sejam nítidos, parte do sucesso de Calibre se deve ao
equilibrado elenco. A começar pelo expressivo Jack Lowden, carismático na pele
do acuado\errático Vaughn. Num um tipo doce e comunicativo, o talentoso ator
inglês provoca um misto de sentimentos ao capturar o turbilhão de emoções
enfrentados pelo futuro pai, tornando as suas conflitantes reações parte da
construção do protagonista. O mesmo, aliás, acontece com Martin McCann,
magnífico como o reativo Marcus. Por mais que o roteiro se renda à algumas
soluções mais literais na tentativa de torna-lo um elemento menos cativante, o
intenso ator irlandês o faz com humanidade, impedindo que ele se torne um tipo
detestável. Assim como Vaughn, Marcus age sem medir as consequências, mas com
um toque de frieza sob pressão que soa absolutamente convincente. Ao se
distanciar tanto da vilanização, quanto da indulgência, Matt Palmer tira do
papel dois protagonistas reais, com falhas, virtudes, medos e remorsos, um
senso de humanidade que, volto a frisar, se torna decisivo para a construção do
desconcertante clímax. Um predicado, verdade seja vida, também potencializado
pelas escolhas estéticas\narrativas do diretor, vide a simplicidade dos tensos planos médios e a valorização do silêncio no
terço final, além da nebulosa fotografia rústica de Márk Györi.
Com a
propriedade necessária para tecer um precioso comentário sobre a consequência
da banalização das armas de fogo,
Calibre se debruça sobre inquietantes dilemas morais numa obra que não parece
interessada em contemporizar. Seguindo a linha toda ação gera uma reação, Matt
Palmer transita entre o drama e o suspense psicológico com intensidade, olhando
diretamente para o público ao refletir sobre o poder paralelo, a lei do mais
forte e a espiral de violência causada por um simples disparo. Uma obra que,
embora situada num cenário micro, tem muito a dizer sobre a violência urbana
num universo em que “acidentes” não são perdoáveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário