Escrever sobre The Breadwinner é
uma missão delicada. Muito mais do que uma simples obra de ficção,
o longa dirigido pela irlandesa Nora Twomey surge como um desesperado grito de
ajuda, um clamor feminino numa região dominada pelo medo e pela opressão. Inspirado
na obra da escritora canadense Deborah Ellis, que, na segunda metade da década
de 1990, viveu no Afeganistão e experimentou a triste realidade das mulheres
sob o regime talibã, a delicada animação causa um misto de empatia e indignação
ao narrar as desventuras de uma esperta menina obrigada a assumir uma nova
identidade para assumir o sustento da sua família. Transitando brilhantemente
entre o realismo e a fantasia, a realizadora esbanja propriedade ao expor a
miserável condição feminina neste contexto. Ao realçar a resiliência das
mulheres afegãs e a impotência do povo afegão numa obra que acerta ao refletir
sobre o nobre passado, o desolador presente e o nebuloso futuro dos habitantes
desta árida região.
Num retrato realístico e corajoso,
o argumento assinado por Anita Doron, com base na adaptação da própria Deborah
Ellis, se distancia do viés maniqueísta ao dar voz ao reprimido povo muçulmano.
Por mais que em alguns poucos momentos a diretora Nora Twomey pese a mão,
investindo em tipos agressivos e aparentemente unidimensionais, não demora
muito para percebermos o esmero dos envolvidos ao expor a rotina feminina em
solo afegão a partir do pueril ponto de vista da corajosa Parvana. Sob o
radical regime talibã, a pré-adolescente levava uma vida dura ao lado do seu
sábio pai, um ex-professor que perdeu a perna durante um dos inúmeros conflitos
na sua região. A condição da Parvana, entretanto, só piora quando um jovem denuncia
o seu ‘Baba’ por esconder livros e imagens na sua residência. Com a prisão do
pai e a reclusão da sua mãe e irmã mais velhas, que, por não terem o marido\pai
por perto, não tinham o direito de andar pelas ruas sozinhas, a criança decide
tomar uma decisão drástica para garantir o sustento da sua família. Consciente
da sua “condição”, ela decide se vestir\agir como um menino, o destemido Otesh,
colocando em prática um plano ousado e muito perigoso para conseguir o dinheiro
necessário para resgatar o seu pai da prisão.
Buscando inspiração em títulos
como A Vida é Bela (1997) e O Labirinto do Fauno (2006), The Breadwinner causa
um inegável desconforto ao tratar a fantasia como um refúgio para a realidade.
Por mais que no incisivo primeiro ato a diretora Nora Twomey opte por se
concentrar na perspectiva feminina, escancarando a arbitrariedade, a violência
e a opressão dos talibãs sobre as mulheres locais, o roteiro é cuidadoso ao –
pouco a pouco – conseguir ampliar o escopo da trama. Sob o despreparado ponto
de vista da pequena Parvana, a realizadora é astuta ao revelar a realidade
daqueles que a cercavam, ao enfatizar a sorrateira ação do regime na sociedade
local. Com traços expressivos e uma construção de mundo extremamente
verossímil, Twomey esbanja maturidade ao quebrar o silêncio, ao tratar os seus
personagens como reféns de uma distorção cultural\religiosa. Na verdade, embora
o foco esteja na crítica a miserável condição feminina, a realizadora eleva o
nível da película ao entender que não bastava ouvir só um dos lados. Nas
entrelinhas, o longa é delicado ao seja com uma simples expressão, seja com um
arco mais bem desenvolvido, mostrar\justificar a inércia masculina. Um olhar de
desconforto, uma acuada recusa, um aviso ressabiado, Twomey é sutil ao traduzir
a onipresença do talibã, ao situar o público dentro de uma sociedade regida por
regras totalitárias, tratando o medo como o principal agente por trás de
tamanha repressão e desigualdade. O que fica bem claro, em especial, quando o
assunto é a singela relação entre Otesh e Razaq, um séquito do talibã que, gradativamente,
se revela um homem complexo e com dilemas genuinamente humanos. Apenas mais uma
vítima, como Parvana, o seu ‘Baba’ e a maioria das pessoas que os cercavam.
O grande trunfo narrativo de The
Breadwinner, entretanto, está na criatividade de Nora Twomey ao trazer a
fantasia para dentro de uma história tão realística. Muito mais do que um
simples respiro narrativo, os contos de Parvana e seu pai têm muito a dizer
sobre os personagens, a cultura local e a mensagem central da película. Num
primeiro momento, as fábulas ajudam o espectador a entender a riqueza regional,
as tradições e o passado dos afegãs, um período de paz que já parece não mais
fazer parte do imaginário ocidental. Sem querer revelar muito, a sequência em
que conhecemos a origem do pai da protagonista é de cortar o coração, uma cena
delicada que enfatiza o doloroso impacto da guerra sob um prisma genuinamente
lúdico. Já num segundo momento, a fantasia se torna o símbolo da resiliência
afegã, como se, dia após dia, Parvana\Otesh buscasse na ficção a força para
seguir trabalhando e ajudando no sustento da sua família. A educação\literatura
surge então como a luz em meio caos, um escudo na luta contra a ignorância e o
fundamentalismo. É na transição para o desconcertante clímax, porém, que
percebemos o verdadeiro sentido por trás deste subplot fabulesco envolvendo um
valente menino e um opressor elefante. Fazendo um inventivo uso dos símbolos, o
que pode gerar uma série de interpretações, Twomey emociona ao, através da fantasia,
mostrar a verdadeira face do muçulmano, ruindo com estereótipos e preconceitos ao
tentar pôr um fim a política do medo. Ao estreitar os elos entre os dois lados.
A meu ver, aqui, Twomey mira no povo do ocidente, naqueles que “alimentam” o
apetite do tirânico elefante “surrupiador”, refletindo sobre o drama das maiores
vítimas do regime talibã: o povo afegão.
Uma pequena pérola entre as
gigantescas produções dos estúdios Disney, Pixar e Dreamworks, The Breadwinner
é também uma animação esteticamente memorável. Além de resgatar o 2-D, Nora
Twomey aposta num trabalho de cunho artesanal, valorizando a expressividade dos
seus personagens através de traços simples, mas recheados de detalhes. Com uma
preocupação especial com o olhar, a realizadora faz questão de valorizar a
humanidade dos protagonistas no aspecto micro, a vulnerabilidade deles diante de
um cenário autoritário. Apesar dos traços lúdicos, o longa não poupa o
espectador ao traduzir a violência, ao mostrar a miséria sob um viés
reconhecível. Quando o assunto é o aspecto macro, entretanto, Twomey investe em
traços mais realísticos, reforçando o clima de destruição ao situar a sua trama
num cenário marcado por buracos de tiros, imóveis destruídos, sucatas de
tanques e veículos bélicos. Um contexto soturno potencializado pela amarelada fotografia
em tons pastéis, impactante ao capturar tanto a aridez desértica, quanto a
escassez de recursos dos habitantes locais. Curiosamente, porém, quando invade
o terreno da fantasia, Twoney é virtuosa ao investir em elementos mais texturizados
e coloridos, enfatizando a diferença entre ficção e realidade com extrema
originalidade.
Contundente ao nos mostrar a lastimosa
perspectiva de futuro de uma criança em solo afegão, The Breadwinner é o tipo
de trabalho que nos faz refletir também sobre a nossa realidade e o inestimável
preço da liberdade. Com a objetividade necessária para incomodar, vide o
emocionante clímax, Nora Twomey encanta ao valorizar o poder do diálogo, ao
usar a claustrofóbica posição da mulher num regime como o talibã para expor a
verdade por trás do totalitarismo. Ao dar voz aos sonhos de uma criança que só
queria ser tratada como uma igual, como uma pessoa capaz de tomar as suas
próprias decisões sem a necessidade do aval\presença masculina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário