sexta-feira, 8 de junho de 2018

The Breadwinner - A Ganha-Pão

Um triste relato sobre a realidade feminina sob o regime talibã

Escrever sobre The Breadwinner é uma missão delicada. Muito mais do que uma simples obra de ficção, o longa dirigido pela irlandesa Nora Twomey surge como um desesperado grito de ajuda, um clamor feminino numa região dominada pelo medo e pela opressão. Inspirado na obra da escritora canadense Deborah Ellis, que, na segunda metade da década de 1990, viveu no Afeganistão e experimentou a triste realidade das mulheres sob o regime talibã, a delicada animação causa um misto de empatia e indignação ao narrar as desventuras de uma esperta menina obrigada a assumir uma nova identidade para assumir o sustento da sua família. Transitando brilhantemente entre o realismo e a fantasia, a realizadora esbanja propriedade ao expor a miserável condição feminina neste contexto. Ao realçar a resiliência das mulheres afegãs e a impotência do povo afegão numa obra que acerta ao refletir sobre o nobre passado, o desolador presente e o nebuloso futuro dos habitantes desta árida região. 


Num retrato realístico e corajoso, o argumento assinado por Anita Doron, com base na adaptação da própria Deborah Ellis, se distancia do viés maniqueísta ao dar voz ao reprimido povo muçulmano. Por mais que em alguns poucos momentos a diretora Nora Twomey pese a mão, investindo em tipos agressivos e aparentemente unidimensionais, não demora muito para percebermos o esmero dos envolvidos ao expor a rotina feminina em solo afegão a partir do pueril ponto de vista da corajosa Parvana. Sob o radical regime talibã, a pré-adolescente levava uma vida dura ao lado do seu sábio pai, um ex-professor que perdeu a perna durante um dos inúmeros conflitos na sua região. A condição da Parvana, entretanto, só piora quando um jovem denuncia o seu ‘Baba’ por esconder livros e imagens na sua residência. Com a prisão do pai e a reclusão da sua mãe e irmã mais velhas, que, por não terem o marido\pai por perto, não tinham o direito de andar pelas ruas sozinhas, a criança decide tomar uma decisão drástica para garantir o sustento da sua família. Consciente da sua “condição”, ela decide se vestir\agir como um menino, o destemido Otesh, colocando em prática um plano ousado e muito perigoso para conseguir o dinheiro necessário para resgatar o seu pai da prisão. 


Buscando inspiração em títulos como A Vida é Bela (1997) e O Labirinto do Fauno (2006), The Breadwinner causa um inegável desconforto ao tratar a fantasia como um refúgio para a realidade. Por mais que no incisivo primeiro ato a diretora Nora Twomey opte por se concentrar na perspectiva feminina, escancarando a arbitrariedade, a violência e a opressão dos talibãs sobre as mulheres locais, o roteiro é cuidadoso ao – pouco a pouco – conseguir ampliar o escopo da trama. Sob o despreparado ponto de vista da pequena Parvana, a realizadora é astuta ao revelar a realidade daqueles que a cercavam, ao enfatizar a sorrateira ação do regime na sociedade local. Com traços expressivos e uma construção de mundo extremamente verossímil, Twomey esbanja maturidade ao quebrar o silêncio, ao tratar os seus personagens como reféns de uma distorção cultural\religiosa. Na verdade, embora o foco esteja na crítica a miserável condição feminina, a realizadora eleva o nível da película ao entender que não bastava ouvir só um dos lados. Nas entrelinhas, o longa é delicado ao seja com uma simples expressão, seja com um arco mais bem desenvolvido, mostrar\justificar a inércia masculina. Um olhar de desconforto, uma acuada recusa, um aviso ressabiado, Twomey é sutil ao traduzir a onipresença do talibã, ao situar o público dentro de uma sociedade regida por regras totalitárias, tratando o medo como o principal agente por trás de tamanha repressão e desigualdade. O que fica bem claro, em especial, quando o assunto é a singela relação entre Otesh e Razaq, um séquito do talibã que, gradativamente, se revela um homem complexo e com dilemas genuinamente humanos. Apenas mais uma vítima, como Parvana, o seu ‘Baba’ e a maioria das pessoas que os cercavam.


O grande trunfo narrativo de The Breadwinner, entretanto, está na criatividade de Nora Twomey ao trazer a fantasia para dentro de uma história tão realística. Muito mais do que um simples respiro narrativo, os contos de Parvana e seu pai têm muito a dizer sobre os personagens, a cultura local e a mensagem central da película. Num primeiro momento, as fábulas ajudam o espectador a entender a riqueza regional, as tradições e o passado dos afegãs, um período de paz que já parece não mais fazer parte do imaginário ocidental. Sem querer revelar muito, a sequência em que conhecemos a origem do pai da protagonista é de cortar o coração, uma cena delicada que enfatiza o doloroso impacto da guerra sob um prisma genuinamente lúdico. Já num segundo momento, a fantasia se torna o símbolo da resiliência afegã, como se, dia após dia, Parvana\Otesh buscasse na ficção a força para seguir trabalhando e ajudando no sustento da sua família. A educação\literatura surge então como a luz em meio caos, um escudo na luta contra a ignorância e o fundamentalismo. É na transição para o desconcertante clímax, porém, que percebemos o verdadeiro sentido por trás deste subplot fabulesco envolvendo um valente menino e um opressor elefante. Fazendo um inventivo uso dos símbolos, o que pode gerar uma série de interpretações, Twomey emociona ao, através da fantasia, mostrar a verdadeira face do muçulmano, ruindo com estereótipos e preconceitos ao tentar pôr um fim a política do medo. Ao estreitar os elos entre os dois lados. A meu ver, aqui, Twomey mira no povo do ocidente, naqueles que “alimentam” o apetite do tirânico elefante “surrupiador”, refletindo sobre o drama das maiores vítimas do regime talibã: o povo afegão.


Uma pequena pérola entre as gigantescas produções dos estúdios Disney, Pixar e Dreamworks, The Breadwinner é também uma animação esteticamente memorável. Além de resgatar o 2-D, Nora Twomey aposta num trabalho de cunho artesanal, valorizando a expressividade dos seus personagens através de traços simples, mas recheados de detalhes. Com uma preocupação especial com o olhar, a realizadora faz questão de valorizar a humanidade dos protagonistas no aspecto micro, a vulnerabilidade deles diante de um cenário autoritário. Apesar dos traços lúdicos, o longa não poupa o espectador ao traduzir a violência, ao mostrar a miséria sob um viés reconhecível. Quando o assunto é o aspecto macro, entretanto, Twomey investe em traços mais realísticos, reforçando o clima de destruição ao situar a sua trama num cenário marcado por buracos de tiros, imóveis destruídos, sucatas de tanques e veículos bélicos. Um contexto soturno potencializado pela amarelada fotografia em tons pastéis, impactante ao capturar tanto a aridez desértica, quanto a escassez de recursos dos habitantes locais. Curiosamente, porém, quando invade o terreno da fantasia, Twoney é virtuosa ao investir em elementos mais texturizados e coloridos, enfatizando a diferença entre ficção e realidade com extrema originalidade.


Contundente ao nos mostrar a lastimosa perspectiva de futuro de uma criança em solo afegão, The Breadwinner é o tipo de trabalho que nos faz refletir também sobre a nossa realidade e o inestimável preço da liberdade. Com a objetividade necessária para incomodar, vide o emocionante clímax, Nora Twomey encanta ao valorizar o poder do diálogo, ao usar a claustrofóbica posição da mulher num regime como o talibã para expor a verdade por trás do totalitarismo. Ao dar voz aos sonhos de uma criança que só queria ser tratada como uma igual, como uma pessoa capaz de tomar as suas próprias decisões sem a necessidade do aval\presença masculina. 

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